CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

Locais e ambientes, pessoas e costumes, histórias, curiosidades e acontecimentos.

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domingo, julho 31, 2005

CONCURSO DE MONSTRUOSIDADES

A televisão é uma imensa fonte de contradições na nossa sociedade.
Ligada, pode ser útil ou prejudicial. Desligada, pode igualmente trazer benefício ou inconveniente.
Desligada, pode proporcionar o diálogo entre as pessoas, ou servir de pedestal para contemplação de objectos que nos resgatam o passado. Desligada, pode, mesmo assim, perpetuar o subdesenvolvimento. Nos anos sessenta, os EUA, querendo escoar o
stock excedentário de receptores a preto e branco, venderam apreciável quantidade deles para um atrasado país dos confins da África. Era, então, um espectáculo de meter dó, ver famílias inteiras, miseráveis, sentadas na palhoça em frente de um televisor mudo e escuro, pois as aldeias nem electricidade tinham.
Ligada, pode ser um excelente veículo de informação noticiosa, cultural e pedagógica. Ligada, pode servir, por outro lado, de mau exemplo de costumes, conduzindo à alienação; servir de mau exemplo para assaltos e violência, disseminando o crime; servir de mau exemplo na forma de pensar, modelando o embrutecimento individual ou colectivo.
No Brasil, a principal cadeia de televisão transmite um programa rotulado de recreativo que preenche as tardes de domingo, logo a seguir ao almoço até um pouco antes do jantar. Horário nobre e, portanto, de elevada audiência.
É construído na base do grosseiro e do primário. Puxando ao sentimentalismo, muito fácil de estimular neste povo, ao vedetismo, em particular do apresentador, ele próprio grosso de modos e estreito de ideias, e ao exibicionismo despido das bailarinas que decoram sem graça o ambiente, por aqui se vê que tipo de programa poderá ser: sem outra coisa para ofertar, terá de esbanjar no sensacionalismo rafeiro e imediato.
No entanto, como será fácil de entender e aceitar, num país com elevado índice de analfabetismo como é o Brasil, ele constitui um prato suculento para certa camada da população, arredada de leituras, cansada da semana extenuante, e sem alternativas atraentes para contrapor àquele caixote de lixo animado.
Uma das rubricas traz a biografia de um artista da moda, geralmente um cantor, carregada de comoventes e inesquecíveis episódios. Todos os homenageados são, invariavelmente, tidos como pessoas de excepção. A sua bondade e outras qualidades morais, que deles irradiam como uma aura incandescente, são testemunhadas em inúmeras gravações de familiares e amigos, às vezes, até, de desconhecidos. O distinguido chora, o chefe de família verte uma lágrima a cheirar a cerveja, escondido do resto da família que, de resto, está a chorar também, e o apresentador, babado, sorri com superior complacência. Um quadro néscio.
Outro item do cardápio, merecedor de grande aplauso, é a mostra de alguns vídeos com as piores cenas de sado-masoquismo imagináveis: bebés batendo em obstáculos com estrondo (ampliado pelos efeitos especiais do programa), velhos a estatelarem-se desamparados, noivas a derrubarem a mesa onde pretendem cortar o bolo. Tudo isto é acompanhado por comentários boçais do apresentador, pérolas de estupidez que mais agravam os dramas presenciados.
Enfim, um entretenimento bronco para gente que já o é ou se candidata a isso.
Outro artigo muito apreciado, aquele que motivou esta crónica, consiste na apresentação, por parte de concorrentes seleccionados, de habilidades, umas risíveis, outras deprimentes, para as quais cada autor e demonstrante dispõe de 30 segundos. Confesso que ignoro qual seja o prémio, mas deve ter algum interesse, face à triste e humilhante sujeição a que se submetem.
Vale tudo, rigorosamente tudo. Saltar de pé coxinho equilibrando um prato de feijoada na cabeça sem entornar, aguentar o máximo de marradas dum bode furioso, conseguir cuspir a impensáveis distâncias, produzir ruídos corporais e com eles imitar outros sons, constituem alguns dos artigos que se evadem desta arca de Pandora. Para um observador noutra frequência, salvam-se os trejeitos simiescos que nos remetem para a humildade de reconhecer o tronco comum da nossa origem ancestral.
Em Março morreu um homem, o que em si nada tem de estranho, porque todos os dias e a toda a hora isso acontece.
A certidão de óbito indicava "causa não determinada", o que também ocorre com alguma frequência, pois a Ciência nem sempre dispõe de meios e utensílios para explicar as razões por que um qualquer cidadão se retira intempestivamente deste mundo.
Mas, de repente, alguém se lembrou de que esse homem, na rubrica dos 30 segundos do programa em causa, na fase dos testes que antecedem a gravação, bebera 1 litro de cachaça. Uma garrafa de puríssima aguardente em 30 segundos.
O nordestino, pois de um nordestino se tratava, alcoólatra muito conhecido na sua terra, tinha 43 anos. Por certo queria, para além do prémio, ficar para a história, ao menos dos netos. E ficou. Só que da pior maneira.
Depois da viagem de regresso, algumas centenas de quilómetros, caiu redondo na praça principal que fica a poucos metros de sua casa.
Não é difícil acreditar em coma alcoólico. O que é difícil crer é que ninguém no hospital onde morreu se tenha apercebido do forte cheiro etílico que do homenzinho emanava, com toda a segurança.
Ocultar um crime, doloso ou culposo, é crime também. Por isso, a Justiça mandou exumar o corpo e proceder à respectiva autópsia.
Seja qual for a possibilidade de agora chegar a um resultado concludente, torna-se suspeito, desde já, o procedimento de um dos produtores do programa que mandou apagar a fita onde se encontrava a gravação da façanha.
A emissora diz que está a investigar o caso, e declara que não permitiria que um seu programa veiculasse estímulos ao consumo de álcool. Mentira. Este programa usa e abusa de referências à cachaça nacional.
Numa observação tosca, um dos responsáveis diz que não se sabe se o homem morreu algumas horas depois, se alguns dias depois, ou, mesmo, se morreu. Bem, que morreu, morreu, assim o atesta a certidão de óbito do hospital, apesar de o clínico que a passou não ter conseguido determinar-lhe a causa, malgrado o estado de alcoolização em que a vítima com certeza se encontrava, com a correspondente sintomatologia colateral.
Tudo isto é muito suspeito, tal como é suspeito o silêncio feito à volta do caso. Um familiar próximo do concorrente, depois de ter garantido que era mesmo cachaça que ele bebera, e de se queixar que quiseram fazer mal ao seu parente, descarta a hipótese de processar o programa e a emissora.
A crítica interna, para isso servem os testes prévios à apresentação do programa, quanto ao que pode e não pode, deve e não deve ser apresentado, é da competência de toda uma equipa que desenha e realiza o programa, e da própria emissora que o transmite. Neste caso lamentável, todos conferiram permissão para aquilo que acabou num suicídio, embora se presuma sem intenção. Não vale a pena, portanto, tentar abandonar o barco ou pôr as barbas de molho.
Quanto a nós, telespectadores, enquanto falar mais alto tudo aquilo que possa, de imediato, elevar as audiências, ou seja, os lucros do capital investido, continuaremos alegremente no caminho da reportagem ao vivo de atentados e actos terroristas, incluídos na programação normal, tão bem representada por Woody Allen num dos seus primeiros filmes,
República das Bananas. Isto, claro, comodamente instalados em poltronas ao lado de pipocas e refrigerantes, mais próximo de uma República das Bananas do que alguma vez Allen terá imaginado.



quinta-feira, julho 28, 2005

"O BRASIL NÃO MERECE O QUE LHE ESTÁ A ACONTECER"

"O Brasil não merece o que lhe está a acontecer" foram palavras proferidas pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, em França, no último dia da visita a convite do presidente Jacques Chirac, por ocasião da festa nacional francesa, 14 de Julho.
Em boa verdade, está por decidir se ele tem autoridade moral para o dizer ou não.
A crise política que deflagrou no país após uma denúncia de corrupção na estatal Correios e Telégrafos (v. crónicas anteriores em
Especial Brasil) continua a alimentar-se do mar de lama que vai varrendo todos os dias pessoas e instituições.
No Partido dos Trabalhadores (PT), principal apoio social e político do presidente Lula, que foi seu fundador e presidente, e que é hoje o seu presidente de honra, a Direcção caiu por completo.
A Comissão Parlamentar Mista (senadores e deputados) de Inquérito (CPMI) criada para investigar o caso, conhecida por CPI dos Correios, deparou com um trabalho nunca esperado, quer pela quantidade de pessoas, factos e documentos envolvidos, quer pela condição desses mesmos intervenientes que, muitas vezes, dificulta o apuramento de conexões e responsabilidades.
Nem sempre as entidades solicitadas se mostram cooperantes com a Comissão.
É o caso do Banco Rural, a instituição donde se verificou a maioria dos saques de dinheiro cuja origem e destino se pretende apurar, que parece ter manipulado discos informáticos, sonegando informação sobre os movimentos verificados nas contas de uma das principais personagens do enredo: o empresário Marcos Valério.
A Polícia Federal (PF) foi, então, chamada a investigar o Banco. Vinte especialistas da PF analisam as contas do empresário, com a colaboração de Francisco Tomás Rego, ex-tesoureiro do Banco Rural.
Outras vezes, é no seio da própria CPI que se geram contratempos e embaraços.
Com frequência ocorrem vazamentos para a comunicação social de notícias e documentos considerados ainda confidenciais, cuja divulgação pode levar ao retraimento de testemunhas e à dissipação de pistas, para além de serem aproveitados como arma política deste ou daquele partido contra aqueloutro.
Já por duas vezes desapareceram papéis importantes, sem que se saiba que sumiço levaram. Sabe-se, sim, que alguns deles forneciam justificativos para os saques bancários efectuados pela mulher de um elemento do Partido dos Trabalhadores.
Para além dos atrasos que estes desaparecimentos causam às investigações, lançam a desconfiança entre os membros de um órgão, e no próprio órgão, que deveria ser a imagem impoluta da transparência, embora se saiba que transparência no Brasil é coisa difícil de encontrar.
A própria Justiça embarga esforços da Comissão.
Sílvio Pereira e Delúbio Soares, respectivamente ex-secretário-geral e ex-tesoureiro do PT, figuras chave em todo este processo, conseguiram, antes de serem ouvidos pelos membros da CPMI, que o Supremo Tribunal Federal lhes concedesse
habeas corpus preventivo. Com isto, ficaram protegidos de ser presos durante as declarações, podendo mentir descaradamente – o que fizeram – e negar-se a responder a questões cruciais – o que fizeram também.
Incompreensível, esta decisão judiciária, e, no estado em que as coisas se encontram, suspeita, até.
Depondo em dias diferentes, ambos se fizeram acompanhar do mesmo advogado, contratado pelo PT, um especialista em casos de grandes falcatruas, em particular desvios de dinheiros públicos. Sugestivo.
O ex-secretário-geral Sílvio Pereira não explicou por que razão recebeu um jipe
Land Rover, no valor de 73 mil reais (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros), de um empreiteiro que ganhou contratos milionários de obras com empresas estatais (GDK), e cujo principal cliente é a petrolífera brasileira Petrobrás.
Um dos contratos recentes celebrados entre a GDK e a Petrobrás, no valor de 19 milhões de reais, está agora a ser investigado por indícios fortes de sobrefacturação.
Pouco depois de ter estalado o escândalo dos Correios, o carro oferecido, com 45 mil quilómetros, foi posto à venda num concessionário que, ao saber da sua origem, o devolveu.
O ex-tesoureiro Delúbio Soares, procurando proteger outras figuras grandes do partido, quis convencer a Comissão de que era ele o único responsável pelo esquema pouco ortodoxo de arrecadação de dinheiros. Assumiu tudo, sozinho, o que veio a provar-se ser mais uma mentira sem vergonha. Não é de estranhar, num homem que prega publicamente que "transparência demais é burrice".
Em simultâneo, contrariou o depoimento que o seu colega Sílvio Pereira anteriormente prestara na mesma Comissão, afirmando que este tinha pleno conhecimento de uma caixa 2 para o financiamento de campanhas do PT e da base aliada, ou seja, fundos de origem "desconhecida" e, no mínimo, duvidosa. A esta caixa 2 chama Delúbio Soares, eufemisticamente,
empréstimos não contabilizados.
Passado pouco tempo, em 22 de Julho, Sílvio Pereira pediu a sua desvinculação do partido.
Mas nem só para financiamento de campanhas servia esse dinheiro, uma vez que já se provou existir o tão falado
mensalão, mesada de 30 mil reais, em média, com que o PT subornava parlamentares da oposição, para que eles votassem favoravelmente as propostas governamentais.
Na época de maior intensidade do
mensalão, entre Setembro de 2003 e Janeiro de 2004, 41 parlamentares trocaram de partido.
Além disso, há verbas oferecidas a outros grupos, como sejam a Associação dos Juízes Federais da 1ª Região, e a Frente Nacional dos Prefeitos (presidentes autárquicos em Portugal), que, em nota divulgada no próprio dia da revelação, não esclareceram de forma convincente o motivo de tais ofertas.
Foi já tornada pública uma lista, embora ainda não completa, em que constam 120 nomes de quem sacava dinheiros disponibilizados por este esquema.
O segundo maior sacador das contas do empresário Marcos Valério, referido no início, 6 milhões de reais no Banco Rural, é uma empresa com um sócio que possui uma
offshore [empresa de intermediação com impostos baixíssimos ou mesmo zero] no Uruguai, a ser investigada por remessa ilegal de dólares para o exterior.
Os 70 milhões de reais que, entre 2002 e 2004 saíram das contas do empresário beneficiaram partidos da base aliada e de outros quadrantes, grupos diversos, como os atrás citados de Juízes e de Prefeitos, e foram sacados por deputados, assessores, chefes de gabinete, funcionários e, até, familiares de políticos.
Um polícia que brevemente vai ser ouvido retirou da boca do caixa de um banco cerca de 5 milhões de reais.
Provavelmente, muitos dos sacadores seriam apenas
correios dos verdadeiros destinatários.
Marcos Valério é um empresário especialmente dedicado à publicidade, em particular publicidade de empresas estatais.
Amigo recente do ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, era ele que conseguia empréstimos para este partido junto da banca, empréstimos garantidos pelos contratos de publicidade com aquelas empresas públicas. Segundo afirmou, foi o próprio Delúbio que lhe pediu para se constituir tomador dos empréstimos.
O ex-tesoureiro era homem de grande influência no aparelho do partido e do Estado, e não custa a crer que também os contratos de publicidade das empresas públicas passassem pelo seu aval. Foi assim que o PT arrecadou 50 milhões, 47 dos quais no Banco do Brasil (um banco do estado, mas que não é o banco central).
Para além disso, Marcos Valério efectuava depósitos de quantias definidas pelo então tesoureiro do partido, Delúbio, em contas de beneficiários que aquele designava.
Todo o dinheiro angariado, fosse qual fosse a origem, passava, assim, por uma lavagem prévia nas empresas de Marcos Valério.
Das 21 empresas que o empresário possui, algumas foram criadas para substituir outras com problemas fiscais (fuga aos impostos) e de segurança social (não pagamento à Previdência). Recentemente, a Justiça congelou-lhe 18 milhões de reais para pagamentos deste último tipo de dívidas.
Antes da tomada de posse do actual presidente, Lula da Silva, os bens de Marcos Valério estavam avaliados em pouco mais de 300 mil reais. No primeiro ano do governo de Lula passaram para 3,8 milhões. No ano seguinte, 2003, contabilizavam 6,7 milhões. Em 2004 chegavam aos 18 milhões.
Incapaz de justificar de forma inequívoca a origem dos seus bens, o empresário ensaia, então, várias manobras.
Nos depoimentos à CPI, com a televisão presente, chora a morte de um filho ocorrida há uma série de anos.
Afirma-se colaborador da CPI, mas, quando inquirido, ilude as questões, mente ou não responde, também ele protegido pela impunidade reconhecida por um habeas corpus concedido pelo mesmo tribunal que facultara os de Sílvio Pereira e Delúbio Soares.
Dando a entender que se sente traído, ameaça contar tudo à Justiça. Concretiza, mas esse tudo parece ser nada de novo para o promotor que o ouviu.
Propõe-se, então, ajudar a CPMI, contra a anulação dos depoimentos que sua mulher e uma funcionária terão de fazer na comissão de inquérito. Recusado. Dirige a mesma proposta ao Ministério Público. Recusado também.
Para se defender das pressões a que as suas contas bancárias estão a ser sujeitas, procura sacar o mais que pode, mas a imprensa e o poder judiciário não o largam.
No intuito de aliviar a pressão da vigilância, vem a público dizer que não pensa fugir do país (quem falou nisso?) porque é um cidadão honesto, e, com dois braços para trabalhar, não se importa de ir vender bananas na rua.
Renilda de Souza, sua mulher, tenta levantar da própria conta num banco a gorda soma de 1,8 milhões. Em vão. A conta é congelada. Não só essa, porém. À ordem do procurador geral da república, todas as suas contas estão agora bloqueadas.
Em desespero, Marcos Valério vira-se para o PT e pede 200 milhões em troca do seu silêncio. Tal verba seria a que ele julga necessária e suficiente para começar uma nova vida no estrangeiro.
Para isso, propõe-se intermediar o encerramento do Banco Económico, processo obscuro que tramita há bastante tempo, e que poderá saldar-se num ganho de 1 bilhão para o seu proprietário. Os 200 milhões pedidos pelo empresário seriam a sua comissão de intermediação.
O partido vacila, empata tempo, dá a entender aos advogados de Marcos que pondera a proposta, e a acusação de chantagem cai na rua pela pena de jornalistas da
Veja, a revista que levantou o véu do escândalo com uma reportagem publicada em Maio.
Valério nega que tenha chantajado, e diz que vai pedir à Justiça o reembolso do que o PT lhe deve. Seria qualquer coisa como 40 milhões, se os números até agora divulgados forem fidedignos. As dívidas totais do PT estarão em 91 milhões (fora os juros), 50 dos quais à banca, como se disse atrás.
As aflições do empresário aumentam por não conseguir explicar a movimentação de 200 milhões nas suas empresas e de 30 milhões nas contas pessoais, em dois anos.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal abre inquérito para investigar todas as suas actividades empresariais.
Na terça-feira 26, sua mulher, Renilda, é ouvida na comissão de inquérito.
Acompanhada pelo mesmo advogado do marido, apresenta-se com um discurso bem ensaiado, e procura atirar poeira para os olhos dos deputados e senadores que a interrogam. A imagem de ingenuidade que quer fazer passar para os membros da Comissão é desmascarada, quer na própria Comissão, quer em entrevistas dadas pelos parlamentares.
Pretende mostrar distanciamento em relação às empresas de que, de resto, ela também é sócia, alegando que sempre preferiu dedicar-se à família do que aos negócios. Diz que só agora sabe da movimentação de milhões nas contas do marido. A sua memória selectiva mostra uma riqueza de pormenores ao referir alguns episódios distantes e complexos, em contraponto com o esquecimento de coisas comezinhas como o número do telefone celular (telemóvel, em Portugal) do marido.
Renilda não traz consigo um
habeas corpus, mas foi dispensada de assinar o compromisso habitual de dizer a verdade. Ridículo.
Então, para além de simular com brilhantismo, mente. E mente sem peias quando nega levantamentos de alguns milhares de reais. Confrontada com a cópia dos dois cheques, reconhece a sua assinatura.
Mas a questão não está em alguns milhares de reais. Foi provado que entre 2002 e 2005 movimentou 14 milhões em 4 bancos. Um deles é o Banco Rural, onde os saques são mais elevados.
Renilda oferece à Comissão e à imprensa um doce. Afirma que José Dirceu sabia de tudo.
Dirceu, actualmente deputado do PT, até há pouco tempo ministro Chefe da Casa Civil de Lula e amigo íntimo do presidente (amigo até há pouco tempo, também, pois agora, isolado, é raiva surda que manifesta contra Lula da Silva), foi apeado na sequência deste escândalo, a pretexto de um outro escândalo que envolveu um seu assessor, Waldimiro Diniz, que extorquia dinheiro a Carlinhos Cachoeira, um empresário de jogos electrónicos, ilegais no país.
Renilda relata, com o rigor da sua memória selectiva, datas e locais de encontro entre Dirceu, enquanto ministro, e altos responsáveis do Banco Rural e do banco BMG, ambos envolvidos, e muito, nos acontecimentos.
José Dirceu confirma imediatamente aos jornalistas que o interpelam o encontro com os banqueiros, mas nega que tal tivesse alguma coisa a ver com empréstimos.
Perante isto, o PT quer explicações de Dirceu, até porque Delúbio Soares, o ex-tesoureiro do PT, era o seu homem de confiança. Foi Dirceu que o elevou a tesoureiro do partido.
Se Dirceu sabia, seria pouco provável que Lula não soubesse. A aproximação entre os dois era grande. Os respectivos gabinetes ficavam lado a lado.
No próximo fim-de-semana Delúbio será ouvido na Comissão de Ética do PT. Militantes reclamam que o mesmo aconteça a José Dirceu, após a audiência na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados.
Renilda termina um dos seus depoimentos dizendo que reza para que o marido não seja preso.
No dia seguinte é votado favoravelmente na CPMI um requerimento a enviar ao Procurador Geral da República, pedindo a prisão preventiva de Marcos Valério e o bloqueio de todos os seus bens, por supressão de provas.
Documentos semidestruídos, alguns pelo fogo, foram encontrados ocasionalmente, bem como um arsenal bélico militar, em casa de Marco Túlio Prata, um ex-polícia acusado de homicídio. O polícia é irmão de Marco Aurélio Prata, o contabilista (contador, no Brasil) de Marco Valério.
Para além disto, defendem alguns que a prisão preventiva poderia preservar a vida do arquivo reservado ambulante que é Marcos Valério.
Curiosidade: o Procurador Geral da República, António Fernando de Souza, diz que ainda não é a hora de prender Valério, por faltar fundamentação de provas consistentes.
Ouve-se dizer sem reservas que o presidente Lula sabia do
mensalão e de tudo o resto. E as evidências disso aumentam a cada dia.
O governador do estado de Goiás, Marconi Perilho, do Partido Social-Democrata Brasileiro (PSDB) declarou que já em Março de 2004 avisara o presidente Lula sobre o pagamento de mesadas a deputados da base aliada do Partido do Progresso (PP) e do Partido Liberal (PL).
Segundo revelação de um jornalista numa mesa redonda do programa
Roda Viva da TV Cultura, transmitido na segunda-feira 25, um esquema semelhante, embora em escala reduzida, já funcionava em 1996 nas autarquias controladas pelo PT, com base em assessores. Seria, põe-se a hipótese, um balão de ensaio para o esquema alargado agora descoberto.
A ser assim, é mais uma prova de que Delúbio, o ex-tesoureiro do PT, não foi o responsável, ou, pelo menos, o mentor do esquema actual, pois naquela data ainda não era politicamente nascido.
Nessa época, um membro do PT teria denunciado ao presidente do partido o que estava a passar-se em determinado município. O resultado foi a demissão imediata dos cargos que ocupava. O presidente do partido era, então, Lula da Silva.
Lula, as poderosas cúpulas do Partido dos Trabalhadores e o não menos poderoso e cinzento José Dirceu estariam por dentro do que se passava, e, mais do que conhecedores coniventes, seriam avalizadores.
O sistema presidencialista constitucional, aos poucos foi resvalando para um parlamentarismo chefiado por José Dirceu, uma espécie de Richelieu do Palácio do Planalto (sede da Administração).
Nessa época amigo íntimo de Lula, deixou inimizades pelo caminho até ao seu afastamento por exigência dos oposicionistas, que reclamavam que nunca fora ministro, mas sim um gerador de divisões e controvérsias no governo. A sua exoneração foi uma cedência inevitável do presidente.
O caso, acima mencionado, de extorsão em que se meteu o seu assessor Waldimiro Diniz junto de um proprietário de uma rede de bingos originou uma outra CPI em que Dirceu vai ser ouvido, por certo. Mas a sua próxima audiência, marcada para breve, será na comissão de ética da Câmara dos Deputados.
Em entrevistas de rua, a população mostra-se atónita e aturdida. Afirma-se lesada. As eleições de 2002 que deram uma incontestável vitória a Lula mostraram o desejo inequívoco de mudança. Lula era a mudança, a diferença, o combate à corrupção na sociedade, em particular no aparelho do Estado. A corrupção foi a maior de que há memória.
Os militantes mais antigos do PT declaram-se envergonhados e constrangidos. Começaram já a abandonar o partido e têm encontro marcado para definir novos caminhos.
Sondagens mostram que desceu a percentagem de eleitores que considera Lula uma pessoa honesta e o seu governo uma Administração de bem. Muitos outros índices que traduzem a imagem do Executivo vêm piorando rapidamente.
Os parlamentares da CPMI falam em "eclipse moral do governo", e confessam abertamente que as investigações podem chegar a Lula da Silva.
Sindicatos fortes como o dos metalúrgicos contrapõem com o seu apoio incondicional e musculado, ameaçando, em grandes concentrações de associados, todo aquele que se atrever a tocar naquele que foi seu associado e presidente.
Tais medidas de intimidação não passam, por enquanto, disso mesmo, mas podem complicar mais a situação se começarem a ter alguma expressão real.
O
impeachment (julgamento do presidente pelo Congresso, plenário de senadores e deputados) tem sido mencionado sem reservas como uma possibilidade, o que não acontecia há 15 dias atrás.
Uma eventual aliança de quatro grandes partidos para garantir, em torno de pilares económicos e sociais, a chegada a bom termo do actual mandato, parece ter ficado sem efeito.
A oposição pretende a renúncia ou eleições antecipadas para Fevereiro de 2006, oito meses antes do legalmente previsto.
A última solução é a mais acarinhada, já que a primeira levaria o vice-presidente José Alencar (Partido Liberal – PL) ao poder, coisa que os oposicionistas não querem ver concretizada, em particular o PSDB e o PFL (Partido da Frente Liberal), ambos com profundas ligações ao empresariado. Eles temem que o vice possa tomar medidas populistas sem sustentação técnica, complicando mais a situação da economia do país.
Avelar, ele próprio um grande industrial, detentor da maior têxtil do Brasil, mostrou, publicamente e por diversas vezes, a sua discordância em relação à política económica do governo, designadamente quanto à taxa de juros em vigor.
Contra o
impeachment manifestou-se quinta-feira 28 Nelson Jobim, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (o tribunal que tem concedido habeas corpus a alguns depoentes da CPI dos Correios), atemorizando com o espectro de um país ingovernável durante 10 anos (porquê 10 anos, 2,5 mandatos presidenciais?), caso Lula da Silva seja apeado. O recado colheu reacções de crítica azeda, quer por parte da imprensa, quer de alguma oposição.
Lula da Silva evita os jornalistas, mesmo para falar de actos de gestão corrente. Mas, em cerimónias públicas, vai dizendo com ar sério que "ainda está para nascer alguém capaz de discutir ética" com ele. Na tomada de posse do novo director-geral da Petrobrás (os petróleos do Brasil), declarou solenemente que conquistara "o direito de andar de cabeça erguida". O tempo se encarregará de o confirmar ou infirmar.
Para mostrar alguma iniciativa moralizadora, o presidente cortou 70% dos 20 mil cargos de confiança que existiam a nível nacional, substituindo-os, progressivamente, por funcionários de carreira.
No entanto, indiferentes a estas profissões de fé, os parlamentares da CPMI, mesmo os afectos ao governo, procuram descobrir os contornos do negócio para, segundo dizem, punir, tanto os corruptos, como os corruptores. Mas, para isso, é preciso descobri-los, em especial estes últimos, os doadores livres, ou forçados, das astronómicas verbas em jogo.
Na CPI fala-se em máquina de corrupção, lavagem de dinheiro e associação criminosa.
A juíza deputada federal pelo Rio de Janeiro Denise Frossard, do Partido Popular Socialista (PPS), dá uma explicação maquiavélica para o esquema. Segundo ela, todo o processo teria como objectivo a captura do Estado para uma perpetuação no poder. Através do suborno e outros métodos, o PT asseguraria a sua presença nos centros vitais dos três pilares da governação: legislativo, executivo e judicial. Assim, o país viveria numa ditadura a que a mudança periódica de nomes e o funcionamento aparentemente constitucional das instituições dariam a legitimidade (e a ilusão) de um regime democrático.



segunda-feira, julho 25, 2005

QUADRO DE HONRA, PRECISA-SE

Tudo neste mundo tem um fim. As baterias dos automóveis, porque fazem parte desse mundo, estão incluídas nesse tudo. Também há um dia em que, exaustas, se recusam irreversivelmente a trabalhar.
Dantes era possível prolongar com alguns cuidados a vida de uma bateria. Um pouco de massa nos terminais, verificação periódica do nível de água, enfim, coisas simples que eram retribuídas como uma eficaz prestação de serviço e maior longevidade.
No tempo actual do descartável, a bateria é orgulhosamente blindada e recusa cuidados. De interior inacessível, vá lá saber-se quando está perto do esgotamento. Um dia, desligada depois de uma viagem sem suspeitas, vai permanecer inerte para todo o sempre. Por mais voltas que se dê à chave de ignição, o silêncio da morte é a única resposta que se obtém.
Como não calha só aos outros, aconteceu comigo, desconhecendo eu do que se tratava.Depois de uma demorada compra de emergência de que tinha sido incumbido, dirigi-me ao parque de estacionamento onde deixara o carro, acomodei-me ao volante e agradeci mentalmente a bênção de poder usufruir um privilégio daqueles para meu uso pessoal.
Dei à chave. Como que por castigo pela vaidadezinha de posse, o motor manteve-se calado. Não precisei de muito para perceber de que dali não sairia pelos meus próprios meios. Sem disfarçada raiva, disse mal desse amontoado de lataria que tanto aborrecimento nos dá.
Passado o choque inicial, lembrei-me de que o seguro de acidentes contemplava assistência em caso de avaria na estrada, incluindo reboque.
O telefone de bolso estava comigo. À cautela não agradeci nada mentalmente.
Liguei para o seguro. Ao fim de uma angustiante eternidade, uma atendente com voz de quem boceja ouviu o meu pedido de ajuda. Falava da sede da companhia, a 3.000 quilómetros de distância. Por certo nunca tinha visitado a cidade em que eu vivia. Talvez até ignorasse a sua existência. Perguntou, anotou e pediu-me para esperar de 20 a 40 minutos pela chegada do pronto-socorro.
Entretanto escurecia. O estacionamento situava-se numa zona mal iluminada do Recife, propícia a assaltos. Aliás, a partir de determinada hora, é difícil, se não impossível, encontrar no Recife um lugar que não seja propício a assaltos. Liguei de novo, expliquei a insegurança do local e pedi que se apressassem. Aconselhou-me paciência sem nada me dar em troca.
Ao longe eu via a estrada de acesso, iluminada por dezenas de luzes em marcha lenta. Trânsito embaraçado. Noite de sexta-feira. Por certo, o reboque não chegaria tão cedo.
Encolhi-me no banco oposto ao do motorista, chave no bolso, vidros fechados apesar da temperatura elevada, portas trancadas, em silêncio, tentando confundir-me com o vazio do interior.
Passou meia hora. Espreitei a estrada. Oferecia a mesma triste visão de sonolenta cadência, agora mais compacta de luzes. Tentei descortinar algum farol rotativo que anunciasse o meu reboque. Nada.Decorreu mais algum tempo. Já custava respirar dentro do carro. Lá fora, apesar do cair da noite, a temperatura deveria estar perto dos 30 graus para uma humidade de 80%.
De súbito senti duas pancadas no vidro. Olhei. De pé, à minha porta, um homem de capacete integral e macacão de motoqueiro fazia-me sinais que não entendi. Assalto. Chegara a minha vez.
Abri devagar a porta e saí sem gestos bruscos. Reparei então no peito do macacão do homem: reboques não sei quê. Quase desmaiei.
Não vi reboque algum. Que história era aquela? Como iria eu sair dali? O homem tirou o capacete e deixou cair uma cabeleira jovem que afastou dos olhos.
- Qual o problema, perguntou amável.
Expliquei o que se tinha passado, ou melhor, o que não se tinha passado e era suposto acontecer quando dei à chave de ignição.
Experimentou ele próprio. Abriu a capota do motor. Retirou a minha bateria e substituiu-a por uma nova que trazia no avantajado malote de uma motorizada que arrumara ali perto sem eu ter dado por isso. Diagnosticou. Bateria, claro. Ao saber que a bateria estava quase com quatro anos, sorriu benevolente: muito fizera ela.
Rápido, numa curta ligação telefónica deu algumas referências técnicas e do local. Dez minutos depois chegava outra motorizada, de outra empresa, conduzida por outro jovem de macacão com um dístico no peito: baterias não sei quantas.
A troca de palavras foi rápida, tão rápida quanto a troca das baterias. Com gestos seguros de bom profissional, o segundo rapaz calibrou a abertura e fecho das portas e o comando dos vidros. Verificou, por fim, o resto dos instrumentos eléctricos, do painel aos faróis e farolins.
Assinei os papéis do seguro, paguei a bateria em cujo preço estava incluído o transporte e o serviço, guardei o recibo e a garantia, e vi-os afastarem-se rapidamente para atenderem outros clientes. A bateria velha ia com eles para ser entregue num depósito de reciclagem de materiais.
Uma tal limpeza de procedimentos quase me levou a esquecer em que país estava. Havia, afinal, coisas que funcionavam, e eu tive a sorte de topar no meu caminho com uma dessas coisas quando mais precisava.
Dois meses depois, num sinal vermelho o carro deu dois esticões e o motor apagou-se. Eu já tinha notado no painel uma luz vermelha em forma de bateria permanentemente acesa. Andava a protelar a ida à oficina, quase tão dolorosa para mim como a ida ao dentista para outras pessoas. Foi ali mesmo, no meio do trânsito de uma movimentada avenida do mesmo Recife, a hora matutina de ponta.
Ao som da buzina de motoristas mais impacientes que eram obrigados a parar atrás de mim, consegui telefonar para o seguro explicando a situação. De imediato, tentando ganhar tempo, telefonei para a casa das baterias. Chovia. As buzinas massacravam-me.
Dez minutos depois chegaram os dois mecânicos, quase em simultâneo. O que se passou foi rápido e sem história muito diferente da anterior. Fizeram o teste e concluíram que o alternador estava queimado. Enquanto um deles seguia à sua vida, o das baterias substituiu a minha, já descarregada, por uma nova, e escoltou-me até à oficina aonde eu já deveria ter ido há mais tempo. Debaixo de chuva, sem descolar.
Na oficina retomou a bateria que era sua e explicou ao mecânico qual o problema. Depois, com uma saudação amistosa desapareceu. Nada paguei. O serviço fazia parte da garantia, embora o estrago não tivesse sido causado pela bateria nova.
Aqui está um exemplo do que é prestar bom serviço quando se quer bem servir o público.
Antes de sair de Portugal, ouvi inúmeras queixas de patrícios que descreviam a baixa qualidade da prestação dos profissionais brasileiros, a quem imputavam, generalizando, a falta de espírito de compromisso e assistência. Eu próprio tive a infeliz oportunidade de comprovar isso vezes sem conta, quer ao nível de empresas privadas, quer ao nível de instituições públicas.
Perante episódios como os que acabei de relatar, acho que seria interessante haver um quadro de honra no Brasil, bem divulgado, para afixar estes casos. São casos pequeninos, sem dúvida, mas é com pequenas parcelas que se chega a grandes resultados.
Os brasileiros têm de saber que se pode construir um país diferente, melhor para todos. Os brasileiros precisam de saber que alguns brasileiros já constroem esse Brasil diferente.
Apesar dos fracos exemplos mostrados na praça pública pelos que têm a seu cargo a administração do país, aos brasileiros deve ser dada a oportunidade de restaurar a auto-estima, a confiança em si próprios e a dignidade que ainda lhes resta. Essa oportunidade alimenta-se de coisas aparentemente insignificantes como a do reboque virtual materializado em duas simples motorizadas. Ou, para ser mais rigoroso e justo, na pessoa de dois modestos mecânicos que trabalham à chuva com brio e competência.



sábado, julho 23, 2005

DISTRIBUIÇÃO DE RENDA NO BRASIL E VOTO OBRIGATÓRIO

Numa crónica anterior, publicada em 28 de Junho p. p., foi aqui mostrado o colossal desequilíbrio que caracteriza a distribuição de rendimentos no Brasil.
Essa crónica revelava uma notícia da agência britânica Reuters, referindo um estudo publicado no dia 1 de Junho pelo Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (IPEA), órgão ligado ao Ministério do Planejamento, segundo o qual a distribuição da renda neste país é a 2ª mais injusta do mundo. O último lugar pertence a um apagado país dos confins da África chamado Serra Leoa, menor que o estado de Santa Catarina (cerca de 70 mil km2), com menos de 6 milhões de habitantes, dos quais 60% vivendo em situação de pobreza, o menor índice de Desenvolvimento Humano do mundo, esperança de vida de 35 anos para homens e 38 para mulheres, e acabado de sair de uma guerra civil que durou 10 anos, até 2002.
Denunciava aquele Instituto que "1% dos brasileiros mais ricos detém uma renda equivalente aos ganhos dos 50% mais pobres". E por falar em pobres, o seu número é de 53,9 milhões, sendo 44% negros, 24 milhões, e 20,5% brancos, 11 milhões. Os indigentes são 22 milhões.
Ainda nessa crónica, dum artigo do professor de Economia Ricardo Bergamini, transcrevia que (...) "metade dos trabalhadores brasileiros ganha até 2 salários mínimos, e mais de metade da população ocupada não contribui para a Previdência. (...) A desigualdade de rendimentos no Brasil não apresentou sinais de melhora nos últimos 20 anos. A comparação entre a renda média familiar per capita das famílias que se encontram no último décimo da distribuição (as 10% mais ricas), que em 2001 era em torno de R$ 1.770,00, e as que se encontram nos quatro primeiros décimos da distribuição (as 40% mais pobres), que no mesmo período tiveram rendimento médio per capita de aproximadamente R$ 80,00, mostra que a renda dos primeiros é 22 vezes maior que a dos últimos. Essas relações sofreram poucas mudanças desde a década passada, indicando a permanência da desigualdade na distribuição de rendimentos" (...).
Como se chega a esta extraordinária distribuição? Isto é, quem a faz e como a faz?
Quem a faz são os governantes, claro: Presidente da República e governo propriamente dito, senadores, deputados federais e deputados estaduais. Quais as ferramentas? As leis propostas, discutidas e aprovadas nas assembleias específicas e promulgadas pelos órgãos competentes.
Em resumo, aquele número restrito de cidadãos que o povo elege para o representar, uma vez empossado nas funções que é suposto contribuírem para o desenvolvimento e a qualidade de vida de quem o elegeu, trata de se governar, e bem, e depressa antes que alguma coisa mude, sem olhar a meios, deitando pelo cano abaixo as promessas feitas durante a campanha eleitoral. Que me desculpem as excepções, mas tão poucas são que passam despercebidas na regra geral.
Compare-se a miserabilidade dos 300 reais do salário mínimo, com a abastança dos 11 mil dos deputados, só de salário, sem os acréscimos de direito. Mesmo assim, o presidente da Câmara dos Deputados propôs alegremente um aumento de mais de 83% (de 11 mil para 23 mil reais). Não interessa que tenha sido vetado. O que conta é a filosofia que enquadrou a proposta.
Periodicamente, lá está o povo a ser chamado para tornar a eleger os representantes que, no fim das contas, ninguém mais representam para além de si próprios, e nada mais defendem para além dos seus próprios interesses.
E se o povo, farto de mentira e oportunismo, decidisse não votar? Nesse caso, os políticos ficariam sem representatividade, não poderiam invocar a vontade do povo, como tantas vezes fazem, para justificar a torpeza das suas acções. A essas acções faltaria toda e qualquer legitimidade. Cairia a máscara. Toda a gente poderia dizer sem medo "o rei vai nu".
Perante o país e perante o mundo, sim, porque, felizmente, ainda há um mundo atento a estas coisas, um acto eleitoral sem votos ou com elevado índice de abstenção lança o descrédito nas instituições e desautoriza os políticos. Porventura regime e sistema têm de ser revistos, talvez, até, substituídos ou, pelo menos, profundamente alterados.
Em tal caso, é quase certo que muitos políticos perderiam o emprego, ou, melhor dizendo, perderiam as benesses e as mordomias; não pode chamar-se emprego à forma como desempenham as funções de que foram investidos.
Eles sabem disso. E porque fazem as leis mais em seu benefício do que em benefício de quem dizem representar, para que possam criá-las e aplicá-las precisam do aval dos representados. Esse aval é dado pelo voto que lhes confere, então, a legitimidade legislativa, executiva e judicial.
Mas o político desconfia da boa-vontade do povo para participar no acto eleitoral. Primeiro, porque reconhece ao povo o mérito de se ter apercebido há muito dos interesses que se movem no lodo da baixa política praticada, e reconhece no povo o desencanto pelos resultados dessa prática. Segundo, porque sabe que a esta inércia por desmotivação se junta a inércia física tão característica deste mesmo povo.
Então, o político usa um artifício que a tal legitimidade propicia. Assegura ele próprio a sua legitimidade. Obriga a votar. Decreta o voto obrigatório com sanções pesadas para quem infringir a lei, para quem não votar.
Ele sabe que não votar é uma opção política e tem medo que essa opção seja levada por diante. Não votar sempre foi, e continuará a ser, a opção política que os políticos mais temem numa democracia.
Este medo aliado à falta de ética, à falta de escrúpulos, à falta de sentido de Estado produz atrocidades na liberdade e na consciência dos cidadãos, como seja o voto obrigatório.
Ao político não repugna fazer isto num país que ele diz ser um estado de direito. O político não se acanha de fazer isto num país que ele defende ser democrático, com uma Constituição democrática que ele ajudou a elaborar. Pelo contrário, isto é a sua tranquilidade. Assim consegue uma imbatível participação nas urnas, pese embora a taxa de abstenção apresentar, mesmo neste contexto, resultados significativos.
Em Portugal, no tempo do fascismo, o ditador Salazar utilizava truques de gabarito semelhante. Com uma diferença, porém: ele não se atrevia a dizer que o regime político do país era uma democracia.
São absurdos deste tipo que contribuem para desacreditar ainda mais a já de si, por outros motivos, desacreditada democracia. E é também por esta razão que o Brasil hoje é visto no exterior como um imenso caldeirão em que cozinham em fogo vivo temperos como a corrupção, a trapaça e o ganho pessoal com prejuízo de terceiros, públicos ou privados.
Distribuição de rendimentos pervertida e obrigatoriedade de voto são as duas faces da mesma moeda cunhada pela indigna e vergonhosa gente que, para infelicidade deste povo, tem sido o construtor do seu caminho.



terça-feira, julho 19, 2005

ESCLARECIDOS, OU ILUDIDOS?

Num canal de tv essencialmente voltado para a cultura, assisti recentemente a uma mesa redonda constituída por diversos profissionais do Direito.
Programa transmitido do Rio de Janeiro, vestido de sério e, ao mesmo tempo, acessível e sem os convencionalismos e as imponências que a palavra magistrado nos propõe na cabeça, visava o tema da Justiça no Brasil, em várias vertentes.
Moderava um advogado. Todos os intervenientes eram jovens, apesar das funções de que já estavam investidos nos diversos sectores que representavam. Constituíam um bom leque de competências.
A possibilidade de o público participar por telefone gratuito, fazendo perguntas ou comentários, tornava mais interessante a apresentação e a discussão dos assuntos propostos.
Enfim, o tipo de programa que, passados 5 minutos, nos leva a pensar que gostaríamos de ver com frequência repetido o respectivo figurino naquelas matérias, tantas, sobre que temos dúvidas e queremos ser esclarecidos.
Porém, desilusão, decorridos outros 10 minutos, não foi preciso mais, tive de perguntar a mim mesmo se o que se desenrolava perante os meus olhos era esclarecer ou iludir.
Não se trataria de iludir por má-fé. Pelo contrário, pareceu-me que todos estavam empenhados em descobrir pistas que conduzissem a algumas das soluções que se tornam urgentes, face aos variados e complexos problemas que a Justiça coloca aos cidadãos – e que os cidadãos lhe colocam.
Quando digo iludir, refiro-me ao facto de que nem sempre os presentes na mesa falavam de realidades factuais. Muitas vezes as suas sugestões ou esclarecimentos (pseudo) baseavam-se naquilo que está regulamentado, estabelecido, mas que na prática não acontece. Ora, só se pode discorrer sobre situações se elas ocorrerem. Tudo para além disso é virtual e não tem utilidade para a vida das pessoas. Da intenção à acção vai uma distância apreciável.
Permitam-me uns exemplos.
Foi abordada a questão do acesso à Justiça nas suas variáveis preço, qualidade, demora e eficácia. No que respeita à demora, saltou para o debate o horário de funcionamento dos tribunais. Por que razão os tribunais no Brasil só funcionam metade do dia? Se trabalhassem durante o dia todo, não seriam despachados mais casos, já que a queixa principal, neste aspecto, é a escassez de tempo para tratar tantos processos apresentados? O presidente da Escola de Magistratura veio em defesa da dama que, afinal era de todos os intervenientes, argumentando que, na verdade, os tribunais abrem às 11 horas para o público, mas desde as 8 horas que os funcionários se encontram nos seus postos a trabalhar.
Que me desculpe o Sr. presidente da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro. Pode ser que tal horário esteja determinado no regime geral de funcionamento dos tribunais. Pode ser, até, que isso aconteça no Rio de Janeiro. Porém, não é essa a prática habitual.
Numa cidade em que vivi durante ano e meio, em Santa Catarina, estado do sul do país, o tribunal abria às 13 horas. Durante toda a manhã não havia vivalma dentro dele, nem sequer segurança.
No Recife, precisamente no dia da mesa redonda de que falo, tinha assuntos a tratar em dois órgãos da Justiça. A eles me dirigi de manhã, o que constituiu um desastre completo para a minha agenda.
O primeiro foi o tribunal conhecido como fórum de Joana Bezerra, por ficar no bairro com este nome. Um dos principais tribunais da cidade, às 10h20 tinha os portões completamente fechados. Por detrás de um deles, um agente da polícia militar, dos muitos que fazem guarda ao edifício, esclareceu-me que lá dentro não havia ninguém. Só a partir do meio-dia.
Desconsolado, dirigi-me, então, ao Ministério Público da avenida Visconde Suassuna, onde deveria resolver a segunda questão que tinha em carteira. Às 11 horas um grupo de serventes lavava o piso em frente da entrada. Consegui falar com uma recepcionista que já se encontrava no balcão de atendimento. Esclareceu-me que os serviços só abriam ao meio-dia, mas os promotores não começariam a chegar antes das 14 horas.
Se aquilo que o presidente da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro pretendeu fazer passar como verdade é lei, ou seja, se a partir das 8 da manhã os funcionários dos tribunais têm de estar nos seus postos de trabalho, onde se encontram então os do Recife e de outras cidades brasileiras? Estaremos perante um problema de indisciplina generalizada? Tão generalizada mesmo que nem há chefes para tomar conta dessa ocorrência? Ou terão sido os chefes os primeiros a dar o exemplo?
Não me esquecerei nunca daquele episódio que já aqui foi referido, em crónica anterior. No fórum Tomás de Aquino, também no Recife, aonde me desloquei numa tarde de insuportável calor, pouco passaria das 3 horas, encontrei as portas fechadas. Um mal encarado e desatencioso polícia militar, que por ali espreguiçava o seu descontentamento da vida, quando lhe perguntei o motivo do encerramento apontou com o queixo para uma coluna fronteira à porta. Aí, um papel composto em computador avisava que nessa sexta-feira o tribunal encerrava às 13 horas devido à procissão do Senhor dos Passos.
Não entendi porquê. Indaguei junto do ministério da Justiça, por e-mail, qual a relação entre uma procissão, seja lá de quem for, e o funcionamento dum tribunal. Já lá vão vários meses. A resposta nunca chegou.
As mesas-redondas, deixem-me repetir, só serão úteis se esclarecerem sobre factos, sobre a realidade, e não sobre como as coisas deveriam ser. A não ser assim, as mesas-redondas não passarão de feiras de vaidades e mercados de ilusões.
O povo tem direito a melhor, quanto mais não seja porque é ele que sustenta a preguiçosa incompetência que se arrasta pelo funcionalismo público deste país.



sábado, julho 16, 2005

JE T'AIME, MOI NON PLUS

Com a crise política no Brasil a rebentar em várias frentes que nem foguetório em santos populares, o presidente Luís Inácio Lula da Silva tirou três diazitos de férias e foi a banhos de cultura e civilização na bela Paris de França.
Convidado especial do presidente Jacques Chirac para a festa nacional francesa, claro que não poderia ter dito "obrigadinho, ó companheiro, mas agora tô c'oa casa toda desarrumada; fica pa outra vez; prometo que um dia destes apareço". Claro que não.
Além disso, e, cá para mim, principalmente por isso, a sedutora Paris é irrecusável.
Então lá foi, e aproveitou para fazer negócios e comprar uns
souvenirs, coisa de pouca monta, uma dúzia de aviões de combate Mirage. Para o povo ver como o seu presidente se lembra dele e se preocupa com ele, principalmente o povo da aeronáutica militar, lá deixou 60 milhões de dólares americanos aos amigos franceses, inimigos de sempre dos americanos.
Os
states ficaram de cara à banda porque estavam já a contar com uma encomenda gorda de sucata aérea. Pois em vez de aviões, ficaram a ver navios. Bem-feito para não serem aldrabões, a tentar vender gato por lebre. Julgavam que poderiam ganhar aos brasileiros... Conversa...
Interrogado ao segundo dia sobre como se sentia, Lula da Silva respondeu "a França está a tratar-nos com muita dignidade". Esta agora!... Esperava o quê? Ser corrido a cacete como cachorro vira-lata, rafeiro tinhoso?
Talvez Lula não esteja muito habituado a gentilezas, mas é bom não esquecer que a França é uma nação que pertence à Europa civilizada. Uma das mais antigas deste continente, a sua cultura foi guia e influência para boa parte do mundo durante séculos.
Depois, como anfitriões, os franceses têm mestria na arte de receber, ou não fossem eles os pais do culto do
charme.
Finalmente, bons nos negócios, os franceses sabem como fidelizar os bons clientes.
O Brasil é um bom cliente, um cliente especial. Em 2001 comprou o porta-aviões
São Paulo, velho de 40 anos que em França dava pelo nome de Foch. Agora, retomado o comércio militar, foram os aviões de caça, também em segunda mão, mas operacionais. A seguir se verá. Depende do entusiasmo suscitado pelo catálogo que, por certo, o amigo Chirac meteu na bagagem do amigo Lula.
Entretanto, do outro lado do Atlântico, não se poderá dizer que o tempo esteve muito nublado. Em boa verdade, e continuando a usar linguagem de meteorologista, a nebulosidade foi de 9/8, isto é, céu completamente escuro, fazendo do pleno dia uma plena noite.
A crise avolumou-se e adensou-se com pesadas nuvens de borrasca. Sucederam-se episódios escandalosos, mortíferos para o governo.
Começou, ou continuou a piorar, com o caso do assessor do irmão do ex-presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), principal grupo de apoio político do governo. O ex-presidente fora apeado há pouco tempo, na sequência das investigações sobre a corrupção que grassa como peste na estatal Correios, e que já derrubou mais gente dos poleiros do que bola ao alvo em barraquinha de feira. A seguir foi o mano, também destacado dirigente do PT, quando o seu assessor, apanhado num aeroporto com 200 mil reais numa mala e 100 mil dólares escondidos na cueca, declarou à polícia que as notinhas provinham de uma venda de hortaliças que fizera no mercado local... Deixo ao leitor o saudável exercício de descobrir a relação entre dólares na cueca e vegetais. Após três versões diferentes quanto à proveniência do dinheiro, a polícia resolveu mantê-lo à sombra para ver se melhora dos delírios.
Depois foi a vez de um deputado do Partido da Frente Liberal (PFL) por denúncia anónima ser interceptado, também num aeroporto, com sete malas contendo 10 milhões e 200 mil reais em notas pequenas. O deputado, economista aposentado, bispo e presidente no Brasil da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), preparava-se para seguir com mais seis pessoas para São Paulo, a bordo do jacto particular que a IURD coloca à sua disposição. Declarou à polícia que o dinheiro era o resultado de um peditório realizado no fim de semana, algures, por ocasião do aniversário daquela Igreja. A polícia, após a contagem das notas, operação que levou mais de 10 horas com máquinas de contagem emprestadas por uma instituição bancária, não engoliu essa tamanha generosidade dos fiéis, e o dinheiro, com bastantes notas falsas à mistura, foi apreendido e entregue ao banco central para averiguações. Ademais, se houve denúncia, alguma coisa não estará completamente certinha. O mesmo pensa o PFL que, embora de forma pouco democrática, expulsou do partido o deputado, sem mesmo lhe dar o benefício de se explicar no segredo das cúpulas. Lá saberão porquê. Talvez não queiram mais lenha na fogueira, uma vez que o inquérito a decorrer sobre a corrupção nos Correios apurou que neste partido havia também deputados a receber uma mesada (conhecida como mensalão) para votar na Câmara dos Deputados a favor das propostas favoráveis ao governo. Tudo mãos limpas...
A seguir, o director-geral da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), teve a triste ideia de, em nota interna, chamar aos membros do Congresso na comissão de inquérito dos Correios, "bestas-feras em picadeiro". O problema foi que a nota de circulação restrita vazou para o exterior, e os senadores e deputados da comissão, aí sim, ficaram mesmo bestas-feras. Em linchamento verbal na praça pública, exigiram de imediato a cabeça (pedir mais, embora lhes apetecesse, seria selvageria) desse amigo pessoal e íntimo do presidente. O sururu foi tal, que, mesmo de Paris, Lula da Silva teve de o demitir. Que diabo, estes brasileiros são tão emotivos...
Entretanto, as cadeias de televisão divulgavam uma fita gravada de uma conversa telefónica entre duas funcionárias bem colocadas, na qual uma revelava à outra um esquema de pagamento para que as empresas estatais do Rio de Janeiro, pelo menos, não fossem fiscalizadas no cumprimento das suas obrigações quanto ao INSS, Instituto Nacional de Segurança Social. Sem papas na língua e entre risadas divertidas, a delatora punha na mesa o nome de um antigo ministro chefe da Casa Civil de Lula, também seu amigo do peito, recentemente demitido por causa de um escândalo envolvendo um seu assessor. Que diabo, estes brasileiros não sabem mesmo escolher os assessores... O rapaz simplesmente extorquia dinheiro a um empresário do jogo, e queria, ainda, forçá-lo a que ele o aceitasse como sócio. Sobre isto decorre outra comissão de inquérito. Dizia, então, a funcionária que o ex-ministro, enquanto em funções governamentais, sabia da tramóia toda. Não sei se deva acreditar... O problema não estará nos assessores?...
Ainda o presidente não tinha tido tempo de percorrer os Champs Elisées, quando um tal empresário abastado, espertalhão consumado e mentiroso impenitente, sobejamente conhecido dos brasileiros e já aqui referido por diversas vezes, em crónicas anteriores, farto de ser bode expiatório dos senhores do PT, agora afastados também, e não tendo ele qualquer ligação política com este partido, resolveu pôr a boca no trombone, até porque a Justiça está fazer-lhe a cama de lavado. Contra a vontade do ex-tesoureiro do PT com quem mantinha estreitas ligações financeiras de altíssimo nível, rumou ao primeiro promotor de justiça que o quis ouvir, o que não foi difícil, e contou tudo acerca das manigâncias bancárias em que fora envolvido, não ingenuamente, claro. Ficámos a saber que uns milhões largos de reais foram conseguidos pelo empresário junto de várias instituições de crédito. O dinheirito passou, então, para o PT, e não só, ao que parece, estando o benemérito credor incumbido de fazer depósitos em contas indicadas pelo ex-tesoureiro, seu amigo de longa data. Credo! Estes brasileiros têm cada amigo...
Para fim de festa, o presidente teve de ouvir em terras de França aquilo que todo o mundo desperto ouviu também, berrado aos microfones por um senador colérico, líder de um dos partidos da oposição, o PSDB, Partido Social Democrata Brasileiro. Afirmou o parlamentar, e com o devido respeito por ambas as partes o transcrevo, que ele, Lula da Silva, o presidente, "ou é idiota ou é corrupto". Disse e, não satisfeito com uma só vez, bisou. Como mulher honrada não tem ouvidos, até agora o presidente nada retorquiu. Provavelmente olhou para o lado, assobiou e foi tomar um purgante.
Festa feita, ou desfeita, Lula da Silva chorou ao assistir a um espectáculo público com a sua patrícia Elba Ramalho. Bom, perante tal cenário político eu também choraria, mesmo sem Elba Ramalho, mas não há dúvida, por outro lado, que estes brasileiros são cá uns chorões... Em 15 dias já vi 4 figuras públicas chorando na tv. E, curiosamente, pouco tempo depois todos elas estavam demitidas dos seus cargos...
Quase, quase no encerramento desta visita, Lula da Silva filosofou: "o Brasil não merece o que lhe está a acontecer".
Seria de rebentar a rir, se estivéssemos assistindo a uma ópera bufa na Comédie Française. Mas não. Trata-se de um país do tamanho da Europa, com mais de 180 milhões de habitantes, com muita fome, muito analfabetismo e muita doença. Agora, sim. É caso para chorar.
O principal responsável pelo país, o homem que desonrou as promessas feitas ao povo há 4 anos, o homem cujo partido que fundou e a que pertence lançou o descrédito sobre a já tão desacreditada classe política, comenta o estado da nação como quem palita os dentes entre dois bocejos, como quem nada tem a ver com o assunto, como um desinteressado e apático observador instalado noutro continente.
No entanto, é tristemente verdade aquilo que disse em Paris, com uma ressalva de maior rigor: não é todo o Brasil que não merece o que lhe está a acontecer; é uma grande parte do Brasil que não merece o que lhe está a acontecer. Mas se há alguns milhões de cidadãos com autoridade moral para o proclamar, o cidadão Lula da Silva não é um deles, com toda a certeza, pois já de há muito se encontra na outra margem do rio.



quarta-feira, julho 13, 2005

COMÉRCIO INFORMAL: PROIBIÇÃO SERÁ SOLUÇÃO?

O comércio informal no Recife, capital do Estado nordestino de Pernambuco, está proibido desde o passado dia 10, domingo.
Segundo informação divulgada, a polícia tem instruções para apreender toda a mercadoria que não possua a respectiva nota fiscal. Que destino terá essa mercadoria, não foi dito.
A informalidade é uma das características do Brasil.
No sector do trabalho por conta de outrem, por exemplo, em Janeiro deste ano registavam-se 16,9% de assalariados sem contrato assinado. Uma das razões, por certo a mais determinante, é o facto de os encargos tributários com os empregados terem disparado de 23 para 36% em poucos anos. Por outro lado, dada a magreza da oferta de trabalho, os candidatos não fazem reivindicações.
No que toca a segurança social, mais de metade dos trabalhadores activos não desconta para a Previdência. Isso propicia situações angustiantes se a doença ou o despedimento bater à porta.
No respeitante ao comércio informal, ele constitui uma significativa quota de economia paralela a interferir com a economia da conjuntura. De tal maneira interfere, que acaba de surgir esta proibição.
Quanto menor for o estado de desenvolvimento de um país, maior será a desregulamentação deste tipo de comércio, do mesmo modo que quanto menor for a taxa de emprego, maior será a sua presença no mercado.
Por vezes o seu desenvolvimento é tão intenso e tão complicada a rede dos seus suportes, que se torna difícil criar uma legislação eficaz em termos operacionais e disciplinadores. Então, opta-se pela proibição, método mais rápido e cómodo, ainda que nem sempre os resultados sejam condizentes com o que se esperava obter quando se tomou aquela medida.
O comércio informal existe por todo o Brasil. No Recife, cidade com cerca de 1,6 milhões de habitantes, ele está implantado há muitos anos. Embora especialmente localizado no centro da cidade, na zona mais antiga, ultimamente tem crescido muito, por razões fáceis de reconhecer.
A própria autarquia criou ou remodelou espaços na cidade destinados a este tipo de comércio. Em grandes áreas chamadas camelôdromos, nalguns casos divididas em minúsculas lojas, noutros absolutamente abertas, dispõem-se bancas de todo o tipo de mercadoria, onde os camelôs (vendedores e vendedoras) discutem com o cliente artigo e preço, condições de venda e garantia de troca. Sem papéis que não sejam os de embrulho ou os das notas de banco, tudo funciona na base da confiança. Há preços tentadores, mas acontece, muitas vezes, comprar gato por lebre. Depende do tipo de artigo, bem como dos conhecimentos do comprador e do grau de relacionamento a que ele tenha chegado com o camelô.
Nos locais já instalados, a autarquia criou infraestruturas para maior comodidade de proprietários e utentes.
O combate com o comércio convencional é feroz. Tanto assim que algumas das lojas de pedra e cal das imediações dos camelôdromos que vendam produtos similares, são obrigadas a baixar o preço dos artigos, ou a fechar. Outras, beneficiando da multidão de potenciais compradores que sempre vagueiam pelo local, disparam campanhas de promoções alardeadas por avantajadas colunas de som que, porta com porta, transformam o ambiente numa babilónia ensurdecedora.
Outro motivo para o crescimento do comércio informal é o baixo índice de oferta de emprego. A mão-de-obra excedentária não é absorvida pela quantidade de empregos postos à disposição do mercado de trabalho. O ritmo de crescimento é lento, muito abaixo do nível desejável e necessário, e cada vez mais são exigidas qualificações, gerais ou especiais, que o pessoal que se instala nos camelôdromos não possui.
Existem, ainda, razões culturais. Os camelôs são, na maioria, pessoas dos estratos sociais mais baixos. Para além de terem dificuldade em conseguir trabalho em certos patamares, eles próprios preferem a liberdade do ar livre; a liberdade de serem patrões de si próprios, ou empregados de um patrão com quem possam ter uma relação especial, de um modo geral um familiar, um amigo ou um vizinho; a liberdade de não terem de se sujeitar a horas para abrir ou fechar as tendas. Enfim, segundo o velho lema daqui, esperam fazer dinheiro fácil com o mínimo de trabalho.
A baixa renda per capita incentiva também este tipo de mercado. Estima-se que o salário mínimo necessário para fazer face ao custo de vida indexado aos preços actuais seria de 1538 reais por mês. A realidade é bem outra e fica-se nos 300 (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros). A cesta básica representa 53% do salário do trabalhador. Pois em 6 meses o seu valor subiu mais de 4 vezes a inflacção prevista para todo o ano (6%).
Finalmente, a burocracia pesa na decisão pela informalidade destes comerciantes. Do ponto de vista jurídico-administrativo, constituir uma empresa no Canadá é coisa que demora 2 horas. No Brasil custa 150 dias.
O governo, que tem permitido e, até, ajudado logisticamente este tipo de comércio, agora diz basta, ameaçando apreender toda a mercadoria ilegal, isto é, sem autorização da Fazenda para circular.
Se essa autorização não existe, então, qual a proveniência dos produtos? Poderá pensar-se em três fontes distintas que, em percentagens diferentes consoante a época, o artigo e o lugar, alimentam esta circulação: o roubo ou o furto de bens de particulares, o desvio alfandegário e o contrabando. Sem estatísticas precisas, pelo menos publicamente disponíveis, o contrabando parece ser o fornecedor principal, em especial nos camelôdromos.
Todas estas três vias pertencem ao foro da acção criminosa. Para além disso, os vendedores poderão incorrer em eventuais processos por perdas e danos causados por concorrência desleal ao comércio legalizado, e por fuga aos impostos.
Se é verdade que se torna necessário pôr cobro a injustiças, moralizando e disciplinando todas as actividades numa sociedade já tão desgastada por desequilíbrios e escândalos da Administração e da prática política e económica, cabe perguntar também que alternativas podem ser propostas a este tipo de comércio, em paralelo com a interdição decretada, alternativas para alguns milhares de cidadãos comerciantes, não falando já dos habituais consumidores.
Face à quantidade de parâmetros em jogo e à linguagem dos números, a proibição poderá, só por si, constituir solução para o mal que se pretende erradicar?
Que garantias há de que a proibição pura e simples seja suficiente para pôr cobro ao comércio informal, melhor dito comércio ilegal? Que legislação complementar de apoio foi promulgada? Que fiscalização foi preparada para o efeito? A polícia, que parece não ter mãos a medir no combate ao crime violento, estará apta a dar resposta, com os mesmos meios, a este crime de algibeira?
Proibir uma actividade sem extinguir as origens que a alimentam não surtirá qualquer efeito.
Proibir o comércio informal sem estancar o fluxo proveniente de assaltos, desvios nas alfândegas e contrabando, só servirá para sofisticar os meios de abastecimento e tornar aquele comércio cada vez mais ilegal.
As autoridades porventura possuem aptidão para desarticular e neutralizar em definitivo aqueles meios clandestinos de fornecimento? Seja a resposta ingenuamente afirmativa, ou mais objectiva admitindo que precisam de meios suplementares em várias frentes, cabe sempre perguntar por que nada de visível se fez até agora.
Para além da lacónica notícia, sem pormenores, que escutei na televisão no início da semana passada, nada mais ouvi sobre o assunto. Nem ouvi, nem vi.
Uma medida destas, exige, pelo menos, um esclarecimento junto do público interessado, quando não uma campanha pedagógica junto de toda a sociedade civil. A menos que não se pretenda, ou seja indiferente, a colaboração dos contribuintes.
Como irão reagir os consumidores, estes consumidores de baixos rendimentos que constituem o grosso da clientela do comércio informal? Compreenderão o alcance da medida, ou verão nela mais um atentado aos seus magros recursos? Colocar-se-ão ao lado do legislador, colaborando, ou tornar-se-ão cúmplices activos de novos processos que surjam para iludir a lei e perpetuar o sistema?
Aparentemente, a proibição não vai beneficiar em nada o consumidor deste tipo de comércio. As razões de fundo que possam ser invocadas deslizarão na imagem, tida como generalizada, de corrupção que o país oferece dos seus dirigentes. Ou seja, o poder não tem autoridade moral para moralizar.
É preciso, pois, alternativas para vendedores e compradores.
Proibir e punir poderá parecer o recurso mais imediato para chegar a um objectivo, mas, em certos casos, não será o mais adequado nem o mais eficaz.
De uma vez por todas, é preciso entender que governar não é fácil, e, acima de tudo, governar bem não se compadece com imediatismos.



domingo, julho 10, 2005

AINDA A CORRUPÇÃO NOS CORREIOS BRASILEIROS

As conclusões a que tem chegado a Comissão Parlamentar Mista (formada por senadores e deputados) de Inquérito às denúncias de corrupção nos Correios brasileiros (CPMI ou, mais vulgarmente, CPI dos Correios), retira propriedade a que se fale em corrupção apenas nessa empresa pública, tal é a dimensão do extravasamento dessa corrupção que se propaga pelo interior de partidos políticos, obriga à quebra de segredo profissional e de outros sigilos de abastados empresários e de influentes políticos, e demite destacadas figuras públicas das suas funções.
Um respeitado jornalista, âncora de uma conhecida cadeia de televisão, chama aos acontecimentos, prosaicamente, "chuva de lama" e "rio de lama".
O que deu origem a tamanho caudal de impurezas está relatado nas crónicas aqui publicadas em 27 de Maio e 22 de Junho passados, respectivamente. Sobre elas terei de fazer uma rectificação e uma confirmação.
A primeira tem a ver com um cálculo meu de que os ânimos se acalmariam depois das primeiras revelações, e que um qualquer acontecimento mundano, na ocasião sugeri que pudesse ser uma nova telenovela, faria desviar as atenções do cidadão comum, apesar de se tratar de um escândalo de avantajadas proporções. De tal modo estava eu convencido, que pensei não tornar a falar mais ao assunto, por ele, certamente, cair no esquecimento. Bem me enganei. À medida que os trabalhos da CPI progridem, mostram um enredo que faz parecer aprendiz o melhor roteirista de telenovelas do país da telenovela.
Quanto à confirmação, é a de que o funcionário dos Correios responsável pelo departamento de compras, flagrado a receber comissões, aqui chamadas "propinas", por uma câmara escondida, não era mais do que um simples peão no tabuleiro do jogo, um peixe miúdo, como costuma dizer-se. Dele é que nunca mais se falou.
De então para cá, o que sucedeu de relevante?
O secretário-geral e o tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT), principal apoio organizado do presidente Lula da Silva e de seu governo, demitiram-se na semana passada dos respectivos cargos, conforme pretendia a linha mais à esquerda do partido, crítica feroz do governo, em particular no que toca ao projecto económico, e contrariamente ao que a maioria petista advogava. Os governistas sempre quiseram protegê-los contra tudo e contra todos. Principalmente contra as evidências. Esse foi um erro fatal para a imagem do partido.
Saíram, negando qualquer conhecimento do que se passava no PT. Posição no mínimo estranha, dadas as funções privilegiadas que desempenhavam, a rede de relações que mantinham, a amplitude e a gravidade dos factos narrados, e a dimensão das verbas envolvidas.
Se essas demissões tivessem ocorrido há mais tempo, poderiam ter sido tomadas como um reconhecimento implícito da sua responsabilidade no processo, mas também poderiam ter sido explicadas à opinião pública como um acto de boa vontade para desimpedir o caminho a uma investigação profunda e objectiva. Restava o benefício da dúvida.
Agora não. Os dois parecem cada vez mais implicados e comprometidos no esquema do "mensalão", a verba paga pelo PT (30 mil reais por mês) a deputados da oposição para que estes votassem favoravelmente as propostas vantajosas ao governo.
A Superintendência da Polícia Federal (PF), em São Paulo, fez questão de os ouvir. Embora interrogados isoladamente, ambos se fizeram acompanhar de um dos maiores criminalistas brasileiros, o mesmo que defendeu casos recentes de desvio de dinheiros públicos e de fuga de capitais para o estrangeiro, por parte de um ex-presidente de autarquia de uma das maiores cidades do país. Escândalo gordo que, pelo andar da carruagem, vai ficar em águas de bacalhau.
Os dinheiros movimentados serão de origem duvidosa. Segundo denúncias que se avolumam diariamente, poderão provir de fontes privadas e públicas.
Surge em cena, entretanto, uma figura cinzenta, próspero empresário, dono de uma empresa de publicidade e de mais 14 sociedades, algumas das quais, segundo afirmou, foram criadas para substituir outras que tinham problemas com a Receita Federal e com a Previdência. Há suspeita de que estas empresas fariam lavagem de dinheiro público para o PT.
Amigo pessoal e íntimo do tesoureiro deste partido, parece ter sido o operacional do "mensalão". Sem qualquer cargo político ou partidário, dispunha, no entanto, duma forte e estendida influência, a ponto de negociar com o governo a atribuição de cargos políticos.
Entre 1999 e 2005, o empresário terá movimentado em bancos, pelas suas empresas, 1,2 bilhões de reais (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros), dos quais 21 milhões sem justificativo aparente, e 500 milhões sem proveniência determinada. A quebra do sigilo bancário revelou que tais movimentos não se coadunam com o património existente.
O PT conseguiu empréstimos de alguns milhões junto de vários bancos brasileiros, um dos quais aquele por onde circulavam as verbas do "mensalão". O empresário aparece como negociador desses empréstimos. Em dois deles, respectivamente de 2,450 milhões e de 3 milhões de reais, foi mesmo avalista, tendo liquidado uma primeira prestação de 350 mil que o PT não honrou. No último empréstimo, o presidente do PT era o tomador, e o tesoureiro entrava como avalista também.
Após o pagamento daquela prestação, retirou o seu nome como fiador, segundo revela. No entanto, ninguém é capaz de indicar quem o substituiu junto da entidade bancária credora. Um dos bancos atingidos vem a terreiro dizer que todas as operações foram efectuadas de forma transparente e legal, mas, entretanto, exonerou dois vice-presidentes da área financeira.
Ouvido pela CPI dos Correios durante mais de uma dezena de horas, esta nebulosa personagem apresentou-se no plenário munido de um habeas corpus preventivo que o protegeria de prisão, caso o seu comportamento durante o interrogatório o justificasse. Medida suspeita, pois se quem não deve não teme, que cautelas motivaram o empresário?
Poderá parecer estranho a anuência do Supremo Tribunal Federal em tal concessão. Para um leigo, assemelha-se a um acto da Justiça a entravar a Justiça.
Com este documento na mão, o empresário limitou-se a negar tudo aquilo de que era acusado, e a não responder àquilo que poderia ser esclarecedor. Para abrilhantar a actuação, não se acanhou de chamar ao momento a morte de um filho, passada há muitos anos, por doença fatal, como se isso fosse relevante para o caso em apreço. E chorou, chorou comovidamente.
Aliás, o choro está a tornar-se uma constante nas emissões televisivas, por parte das figuras que vão sendo indiciadas neste processo.
Há dias foi a vez do presidente do PT que, sem mais nem quê, numa entrevista desatou a chorar, lembrando-se subitamente de como tinha sido torturado nos tempos da ditadura militar, ente 1964 e 1984. Nada a ver com o assunto em pauta, claro.
Anteontem pudémos assistir a uma sessão de choro por parte de uma deputada do PT, acusada pelo ex-motorista de ter recebido de São Paulo 200 mil reais para efeitos de compra de favores políticos. Este motorista defraudou-a em 400 reais por uso abusivo do seu cartão de crédito, mas ela não apresentou queixa. O silêncio dourado que agora se quebrou.
Diariamente se assiste a cenas que desafiam a imaginação, e se toma conhecimento de notícias insólitas.
Um secretário do PT no Ceará, assessor do irmão do presidente do partido, é apanhado no aeroporto de São Paulo com 200 mil reais numa mala, e 100 mil dólares americanos escondidos nas cuecas. Mente à polícia, dizendo que é agricultor e que o dinheiro provinha da venda de produtos agrícolas. Pretendia deslocar-se para Fortaleza, capital do Ceará. Encontra-se preso. Relação ou não com o caso Correios? O estado de desconfiança é tal, que na cabeça do homem da rua tudo se associa.
Descobriu-se que o empresário amigo do PT ludibriou a comissão de inquérito. Mercê do habeas corpus, não será preso como se esperaria; apenas se repetirá o interrogatório, provavelmente para continuar a iludir a verdade. Entretanto, contas bancárias suas no valor de 8,5 milhões de reais foram recentemente congeladas por ordem judicial para regularização de dívidas à Previdência.
A secretária do empresário fez declarações reveladoras na CPI, e foi por ele acusada de tentativa de extorsão.
Uma multidão de notáveis incrimina outra multidão de notáveis. Mas todos os notáveis são unânimes em afirmar que de nada sabiam. Ministros são apontados. Porém, continuam negando e permanecem tranquilamente no ministério. Tanto no PT como no Governo, todos concordam em que ignoravam por completo o que se estava desenrolando debaixo dos seus narizes.
Mas os factos vão desmentindo os desmentidos, e à medida que se puxam os fios da manta, mais ela se desmancha, deixando a descoberto muitos e alargados buracos.
Os acontecimentos precipitam-se.
O secretário das comunicações do PT é substituído.
Numa reunião das cúpulas do partido em São Paulo, sábado 9, de manhã, o presidente do partido deixa o lugar, perante a concordância e o aplauso unânimes do directório. Ainda na noite anterior garantira à comunicação social que não renunciaria e que, ao contrário, prosseguiria na liderança do PT. Talvez as lágrimas oferecidas na tv, dias atrás, por razões despropositadas no contexto da entrevista, fossem uma antecipação sentida dos efeitos da resolução agora tomada – de moto próprio ou por imposição politico-partidária.
As demissões sucessivas que se têm verificado abrem uma nova frente na já difícil e conturbada situação governativa. É que algumas das personalidades escolhidas para recompor o topo fazem parte da equipa ministerial de Lula da Silva. Nem o partido o poupa.
O ministro da Controladoria Geral da União declara, finalmente, no mesmo sábado, à noite, que há corrupção nos Correios.
A crise política, que mais do que política é uma crise ética e de valores, numa sociedade que tem por lema "dinheiro fácil", já deu lugar a mais CPI´s, para além da dos Correios: a do Banestado, um caso antigo que dormia em águas mornas, de um banco com ligações a um outro dos que agora estão directamente envolvidos nos dinheiros do PT; o do "mensalão", que alberga, também, o inquérito à compra de votos supostamente realizada em 1997 para a emenda da reeleição presidencial, no tempo do anterior presidente, Fernando Henrique Cardoso; e o dos bingos, outro que estava congelado, e que diz respeito à extorsão de dinheiro a um empresário de jogo, por parte do adjunto do ex-ministro chefe da Casa Civil, recentemente demitido, amigo íntimo e braço direito do presidente Lula da Silva.
Por este andar, não haverá senadores nem deputados em número suficiente para integrar e fazer funcionar as comissões de inquérito constituídas, sem falar nas que ainda possam vir a ser criadas. Além disso, o país parou do ponto de vista legislativo.
A comunicação social, ainda que discretamente, fala em impeachment, pelo menos para afirmar que esse não deverá ser o caminho. Mas fala. Alguns analistas adiantam que a oposição optará, de preferência, pela sangria do presidente até o deixar incapaz de uma recandidatura. Lula é considerado já um presidente à mercê dessa oposição, como um rato distraído apanhado pelas unhas de um gatarrão astuto e sem pressas.
Parece aproximar-se o aniquilamento político para Lula da Silva.
Saberia o presidente de tudo o que estava a acontecer? Essa, uma razão plausível porque, inicialmente, obstaculizou a criação e o funcionamento da CPI dos Correios. Outra possível reside na tentativa, afinal falhada, de cobertura política para os seus homens de confiança e para o partido. E não pensemos em mais nenhuma.
Como se diz em Portugal, ainda agora a procissão vai no adro. Mas a verdade é que, pelos vistos, a cabeça de alguns santos já saltou do alto dos andores. À cautela, outros bem-aventurados apearam-se e puseram o altar à disposição.
O povo desiludido espera e aguenta.
-Próximo!...



sábado, julho 09, 2005

O(S) TELEGRAMA(S) DO(S) VATICANO(S)

Londres recebeu condolências e manifestações de solidariedade de governos e grupos de cidadãos de muitos países do mundo.
A desgraça une incondicionalmente as pessoas, enquanto a diplomacia cumpre o seu papel de formalizar a unidade das nações.
Vaticano, o mais pequeno e peculiar dos Estados do mundo, foi um dos que fez chegar àquela capital europeia a expressão de pesar que os acontecimentos do passado dia 7 lhe inspiraram. É certo que em Roma está a sede da Igreja Católica Apostólica Romana, e em Londres a da Igreja Anglicana. Porém, para lá das diferenças filosóficas e teológicas, existem as raízes cristãs comuns; existe, quero acreditar, compaixão para com as vítimas do massacre; existe, claro, o protocolo e uma imagem a defender de pregador e guardião da paz.
Seja qual for a hierarquia das razões, humanitárias ou de estado, o facto é que SS Bento XVI enviou em seu nome, através do secretário de estado da Santa Sé, cargo equivalente a ministro dos negócios estrangeiros, cardeal Angelo Sodano, um telegrama dirigido ao cardeal arcebispo de Londres, Murphy O´Connor.
No noticiário da noite de uma cadeia de tv vista no Recife, Brasil, ainda no dia 7, pareceu-me ter ouvido o locutor falar em actos anticristãos, referindo-se ao telegrama papal.
Fiquei na dúvida, pela inconveniência que tal representaria, a ser verdade, e porque o jornalista dissera a expressão de uma forma rápida e atropelada.
Procurei documentar-me sobre o assunto. Encontrei o texto do telegrama reproduzido por várias agências noticiosas, com pequenas diferenças resultantes da tradução. Para só citar algumas, a portuguesa Lusa, a espanhola EFE, a francesa France Press e a brasileira Estado diziam: "O Papa recebeu com dor a notícia dos actos terroristas cometidos em Londres e enquanto deplora estes actos desumanos e anticristãos, manifesta a sua solidariedade e proximidade para com os familiares das vítimas, implorando a Deus o seu conforto".
Actos anticristãos... Então, sempre é verdade. Uma das agências acrescentava que o telegrama fora um balde de água fria nos terroristas e nos muçulmanos. Nos terroristas, não sei. Nos muçulmanos foi com certeza. Contudo, para quem esteja atento, o deslize decorre da lógica de um homem que defende que só há salvação possível no cristianismo.
Um especialista brasileiro que tive oportunidade de ouvir em entrevista à televisão, garantiu que, a essa hora e nas estações de metropolitano onde as explosões se sucederam, os utilizadores seriam, na maior parte, trabalhadores das classes mais pobres, oriundos de África e da Ásia. Portanto, com grande probabilidade, muçulmanos. Assim, os actos anticristãos não diziam respeito a estas pessoas.
Mas a minha surpresa foi ainda maior quando, durante a pesquisa, deparo com uma página de Internet da Rádio Televisão Portuguesa (RTP), canal do Estado, onde se diz que "o texto oficial do telegrama de Bento XVI não inclui, no entanto, a palavra ´anticristãos´ como chegou a ser divulgado" (...). E avança com a seguinte prosa: "O Papa recebeu com profunda dor a notícia dos atentados terroristas no centro de Londres. O Pontífice reza pelos que estão de luto e deplora estes actos de barbárie contra a humanidade".
Bonito! E agora? Qual dos telegramas é o verdadeiro? Ou haverá dois telegramas - um telegrama de um Vaticano retrógrado, falando em actos anticristãos como se, vivendo em plena idade média, condenasse os Infiéis que pelejavam com os Cruzados, e outro telegrama de um Vaticano moderado e mais aberto, mais contemporâneo, condenando um acto de violência gratuita, não contra cristãos, mas sim contra pessoas, seja lá qual for o credo religioso?
A RTP fala em "texto oficial do telegrama de Bento XVI". Será que existe um texto oficial e um texto oficioso, cada um para diferentes públicos?
Quem saberá, poderá e quererá esclarecer isto?
Se SS Bento XVI não expediu o telegrama que foi divulgado pelas agências noticiosas que referi, embora o discurso esteja de acordo com o pensamento do Pontífice, revelado por ele próprio, então é direito e dever do Estado do Vaticano exigir a reposição da verdade, pelos meios que julgar mais adequados.
Se SS Bento XVI não expediu o telegrama que foi divulgado pela RTP, então a RTP, melhor do que ninguém, saberá o que tem de fazer.
Por mim, fico à espera. Não retirando, por enquanto, uma vírgula àquilo que disse, acrescento, ainda, que tenho por princípio tecer considerações sobre factos e não sobre conjecturas. Se os factos são controversos, então, por favor, que me esclareça quem está habilitado a fazê-lo.



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