CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

Locais e ambientes, pessoas e costumes, histórias, curiosidades e acontecimentos.

Statistiche sito,contatore visite, counter web invisibile TRANSLATE THIS PAGE

sexta-feira, maio 27, 2005

CORRUPÇÃO NOS CORREIOS BRASILEIROS. SÓ AÍ ?...

"Ricos e pobres brasileiros são igualmente desonestos. (...) Somos um país corrupto".
Quem o afirma é um brasileiro da Bahia. Chama-se João Ubaldo Ribeiro, 64 anos, jornalista e escritor com 3 milhões de volumes vendidos.
Na mesma desenvoltura e frontalidade que assume para falar de si, em entrevista recente à revista "Veja" desanca sem dó nem piedade o governo, de quem é um dos mais ácidos críticos, em particular na pessoa do presidente Luís Inácio Lula da Silva. As suas declarações fazem todo o sentido quando passamos a pente fino os actos da governação de que conseguimos ter conhecimento.
O último escândalo, em Brasília, tornado público pela mesma revista "Veja", e quase em simultâneo com as afirmações do escritor, envolve personalidades da cena política e altos funcionários da estatal ECT, Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Os factos são, já de si, escandalosos, mas a forma como o governo reagiu, e está a reagir, torna a situação ainda mais embaraçosa. Tão embaraçosa que se fala à boca cheia em crise política.
Tudo começa com uma reportagem da revista, na semana passada, em que o ex-chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material dos Correios é confrontado com uma gravação, na posse da "Veja", em que ele próprio, na sede da empresa estatal, negociava com três empresários o estabelecimento de comissões (aqui chamadas "propinas") como contrapartida de futuros favores a conceder pelos Correios. A gravação mostra a entrega, por parte dos empresários, de 3 mil reais que seriam uma primeira parcela das comissões exigidas por aquele chefe de departamento. Perante a evidência, afirmou, então, haver um esquema de corrupção na empresa, esquema esse que teria o comando do presidente do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), um deputado pelo Rio de Janeiro.
A bomba rebenta. Estamos em vésperas da partida do presidente Lula para a sua viagem à Coreia do Sul e ao Japão.
Afastado do lugar de chefia que ocupava, o funcionário é ouvido pela Polícia Federal (PF) e cai em sucessivas contradições. Começa por isentar o presidente do PTB, dizendo que só o vira duas ou três vezes, ocasionalmente, e apresenta-se como único e total responsável pela negociação das propinas. Depois diz que o dinheiro provém de um seu trabalho de consultoria. Mais adiante, afinal o dinheiro destinava-se à formação de uma sociedade a que ele se dedicaria quando se aposentasse; já teria pedido, até, o afastamento do cargo, por doença. Declara a seguir que nunca teve nenhum envolvimento com qualquer empresário, o que contraria as imagens da gravação. Finalmente, afirma que não há nenhum esquema de corrupção e que o episódio constituiu uma "armação" contra ele, engendrada por uma multinacional (não diz qual, nem para quê). Por seu lado, o advogado de defesa avança com "uma armação com motivações políticas" e com "uma armação da direita militar" (melhor seria deixar a direita militar dormir o seu sono descansado, antes que a fera acorde).
O delegado que conduz o inquérito não acredita em nada do que lhe pretendem vender e indicia o ex-funcionário de coisas bem mais realistas do que possíveis intentonas: fraude em licitação e corrupção passiva.
Entretanto a PF faz buscas e apreende documentos e memórias de computador em oito endereços de dirigentes afastados dos Correios, todos eles denunciados por envolvimento no esquema de cobrança de comissões. Políticos do PTB e funcionários dos Correios indicados pelo partido parecem ser também coniventes. Um ex-director desaparece. No meio da confusão, o ex-funcionário declara que vai doar o dinheiro recebido a uma instituição de caridade para o combate ao cancro (câncer, no Brasil).
Das figuras mais sonantes que aparecem na imprensa como arrastadas no caso destacam-se: um ex-candidato à presidência em 89, muito amigo de entidades de proa do presente governo; o ministro das comunicações; o presidente do Senado; o secretário executivo do Ministério das Comunicações, que já foi ministro noutra presidência; o presidente dos Correios; um administrador dos Correios; o presidente de uma empresa de informática, que fazia acertos para reajustar contratos com os Correios e que ganhou em 2004 a licitação para venda de computadores ao governo federal. Ligado a estes, ainda aparece na história um chantagista que quis negociar a gravação comprometedora, em troca de favores em contratos com os Correios.
A administração dos Correios é composta por 1 elemento do PTB, 2 do PT (Partido do Trabalho, sustentáculo do presidente Lula da Silva) e 3 do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), partido da oposição, mas que entra actualmente na base social de apoio do governo. O presidente da administração é, também, do PMDB, o que cria um incómodo acrescido na situação. Quando tocar a lavar a roupa suja, poder-se-á sempre argumentar que a maioria da responsabilidade é da oposição. Isto preocupa o PMDB, a ponto de virem já, embora veladamente, ameaçando desenterrar um processo aparentemente arquivado, em que um ex-acessor do actual ministro da Casa Civil, o mesmo que diz "este governo não rouba nem deixa roubar", foi flagrado a pedir comissões a um empresário de jogo.
Quando o caso "Correios" escapou para a opinião pública, o presidente Luís Inácio Lula da Silva prometeu rigor e isenção nas investigações. Mas tão logo o Senado e a Câmara dos deputados assinaram um pedido de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) às actividades dos Correios, foi montada uma operação para barrar a constituição ou, pelo menos, o funcionamento de uma possível CPI, e Lula da Silva recusou-se a emitir mais declarações.
Senadores e deputados sofreram pressões para retirarem as respectivas assinaturas do requerimento de criação da CPI. Muitos o fizeram, outros o fizeram e voltaram a assinar, e alguns que nunca tinham assinado subscreveram o documento.
Na noite de quarta-feira, 25, no Japão, Lula da Silva tomou conhecimento da derrota do seu governo.
A operação de boicote ostensivisou-se e hostilizou-se. O presidente nacional do PT, partido no poder, deu a entender claramente que o senador e os 11 deputados que assinaram o pedido de CPI serão isolados pelo partido (fim da carreira política naquela filiação). O governo diz que a CPI é uma tentativa de desestabilização. O líder do governo no parlamento afirma que vai lutar para que a base aliada obtenha a presidência e a relatoria da CPI (para melhor e mais tranquila manipulação, claro) – e acrescenta que pretende que as investigações se limitem aos Correios (parece haver, portanto, outras histórias ainda não contadas...).
Em 2006 teremos eleições para a presidência da República, para senadores e para deputados.
É sabido que no Brasil as razões de Estado são subvertidas por razões pessoais. A CPI, se funcionar e se conseguir entender-se, disporá de 6 meses para se pronunciar. O povo tem a memória curta, e outros interesses de circunstância, talvez uma nova telenovela, ofuscarão o "caso dos Correios".
"Este governo não rouba nem deixa roubar", diz o estadista.
"Somos um país corrupto. (...) Ricos e pobres brasileiros são igualmente desonestos", diz o jornalista escritor.
Não parece difícil concluir quem tem razão.



quarta-feira, maio 25, 2005

A BURLA DO CENTAVO NO BRASIL

Aceita que o comerciante o engane no troco quando faz uma compra, dando-lhe menos dinheiro do que lhe é devido? Com certeza que não. Admite pagar na caixa um produto por um preço superior ao que está marcado no expositor? Não, com certeza. Pois, ao visitar o Brasil, prepare-se para fazer valer os seus direitos.
Suponha que desembarca no Recife, ponto da América do Sul mais próximo da Europa e, por isso mesmo, cidade privilegiada para a recepção do turismo do velho continente.
Aqui, como para todo o Brasil, a divisa é o Real, apresentado em notas de 1, 2, 3, 5, 10, 20 e 50 reais (também há de 100, mas ninguém sabe onde estão, parece que nem os bancos), e moedas de 50, 25, 10, 5 e 1 centavos.
Aqui, como no resto do país, será confrontado com preços acabados em 9, seja qual for o produto: o medicamento que custa 99 centavos, o chocolate em pó que custa 3,29 reais, o almoço económico que custa 4,49 reais, o fato pronto-a-vestir que custa 99,99 reais.
Se esta prática nacional incide no comércio em geral, e já a vi, também, em prestação de serviços, onde ela se torna mais flagrante é nos mercados, sejam eles hiper, super ou mini. Quase não há preço na prateleira que não seja da mesma família, a família do 9.
Esta predilecção, quase obsessão, comercial pelo 9 não me mereceria tempo de escrita se não fosse o pesar-me no bolso, pesar no bolso dos meus concidadãos, pesar no bolso do país em que vivo, e ser, em última análise, um problema de moral comercial pública.
A questão é esta: compro um dentífrico que está marcado por 2,89 reais, mas pago 2,90 porque o caixa não tem troco. Multiplico isto por todas as compras que faço diariamente e verifico, consternado, que muito passa, gratuitamente, do meu bolso para o do comerciante – passaria se eu deixasse que isso me acontecesse.
Mas se isso não me acontece porque me oponho frontal e ferozmente a essa prática, o mesmo não se passa com a generalidade do brasileiro, acomodado por preguiça, ignorante dos seus direitos por cultura, avesso a questionar por deformação.
Centavo aqui, centavo ali, os comerciantes vão aumentando o seu património sem disso terem de prestar contas à República sob a forma de impostos.
Façamos uma pequena simulação completamente empírica. Imaginemos um supermercado com 12 caixas por onde passam por dia 500 clientes em cada uma delas, ou seja, 6000 clientes no total. Se a cada cliente forem sonegados, em média, 1,5 centavos por dia, o supermercado recolheu 90 reais no fim do dia e 32.400 reais no ano de 360 dias, admitindo que estas superfícies fecham 5 dias por ano (algumas nem isso). São 32.400 reais (10.125 Euros, à cotação de hoje) de lucro livre de impostos, repito, com base numa burla feita ao cliente.
Não sei quanto valerá esta importância na fuga ao fisco, mas posso atrever-me a pensar num número significativamente grande de zeros quando extrapolo esta situação verificada num supermercado de médio/grande porte para o conjunto da economia do país – comercial e não só, já que os serviços públicos usam o mesmo tipo de lógica aritmética.
Ao governo não escapa o truque. A prová-lo está uma campanha efectuada há poucos anos, que incentivava o brasileiro a não deixar o seu centavo na loja. Mas, como muito do que se faz por cá ao nível da moralização dos costumes, foi inoperante, inconsequente, ineficaz.
Usufruem deste esquema de extorsão 99% dos comerciantes do Brasil. Este número que adianto não é o resultado de algum estudo com resultados estatísticos que alguém, incluindo eu, tenha levado a cabo. Significa, sim, que cada um de nós tem qualquer coisa como uma quase impossibilidade de encontrar neste lindo país um comerciante honesto no troco (e só estou a falar de trocos).
A campanha feita pelo governo não surtiu efeito, principalmente porque esta questão tem de ser tomada a peito por cada um dos consumidores. Com origem nas razões atrás apontadas – e outras que não vêm agora ao caso – este povo não tem sentido cívico. É a fortuna, em todas as acepções, dos comerciantes.
Se cada um deve – tem de – zelar pelos seus direitos, eu neste aspecto também zelo, cuidadosa e insistentemente, pelos meus, exigindo sempre o meu centavo de volta.
Por esta prática apurei que o comerciante utiliza uma de duas técnicas (ou as duas combinadas) quando confrontado com o cliente que exige 1, 2 ou os 3 centavos de troco que, com a maior naturalidade contabilística, ficaram na gaveta. Uma é dizer que não tem trocado para poder restituir, e tentar, assim, dar o assunto por encerrado. A outra é fazer esperar o cliente para ver se este desiste. Contra isto, neste caso, eu, cliente, faço o seguinte: insisto em que pretendo o meu troco certo, sem falhas; posso argumentar que, do mesmo modo que ele, fornecedor, não me dará a mercadoria se eu não tiver o seu dinheiro correspondente, também eu, consumidor, não sairei da loja sem o meu troco correspondente; falo alto e desinibidamente para toda a gente perceber o que se passa e poder, de certa forma, ficar contaminada pela minha legítima exigência; nunca saio da fila do caixa até a questão estar resolvida (assim apresso-os para conseguirem os centavos que faltam); se necessário, ameaço-os com a administração da empresa e/ou com a inspecção das actividades económicas; além disso, ando sempre com uma boa provisão de centavos no porta-moedas para, em desespero de causa, esgotadas as demais possibilidades, facilitar o meu troco.
Nunca tive necessidade de utilizar mais do que um dos argumentos acima enumerados. Basta perceberem a minha determinação, para que a loja se mobilize na busca – com sucesso – do centavo, ou, mais raramente mas com alguma frequência, a importância seja arredondada para os dez centavos abaixo.
Poderá, à primeira vista, parecer ridículo fazer tamanho escândalo por 1 centavo. Não entendo assim, por diversas razões.
Admito a falta de 1, 2 ou mesmo 3 centavos num troco, esporadicamente. Mas não posso nem devo aceitar o sistema, o esquema, a instituição do furto encapotado. Em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, no sul, no balcão de uma grande companhia rodoviária tiveram a ousadia de tentar subtrair-me, na passagem de uma viagem de 45 minutos, 43 centavos. É preciso combater a fraude dos preços enganadores. É preciso moralizar o comércio. É preciso combater a má gestão de tesouraria que me é prejudicial: as caixas têm de ser providas do número suficiente de trocos em centavos. É preciso combater a preguiça – a minha, como comprador, de pedir o troco que me é devido, e a deles, como comerciantes, de encontrar soluções, de que a mais óbvia seria a apresentação de um preçário honesto. É preciso combater a retenção ilegal do centavo, porque 36 centavos não é o mesmo que 35 centavos. E, finalmente e acima de tudo, é preciso denunciar e combater a burla do centavo porque o dinheiro é de cada um de nós, e com o dinheiro alheio não se pode brincar – eu, nem com o meu brinco.



sábado, maio 21, 2005

SERVIÇO POSTAL BARSILEIRO, OU...

Ao ler a notícia de que brevemente os Correios de Portugal passarão a funcionar 24 horas por dia, todos os dias, em todo o território português, ocorreu-me que os Correios do Recife deveriam ter por sigla SPB, não de "Serviço Postal Brasileiro", mas de "sem pressas Brasil". Eu explico porquê.
No passado dia 2 de Maio tive necessidade de expedir uma carta registada com aviso de recepção. Tratava-se de uma urgência, pois da resposta do destinatário a essa carta dependia eu apresentar ou não à Justiça, em tempo útil, o pedido de reembolso de uma verba que me fora cobrada indevidamente por incúria de terceiros.
Pago o respectivo serviço na estação dos Correios do meu bairro, aguardei, tranquilo, a devolução do aviso, aqui chamado "de recebimento", que me comprovaria a entrega a tempo e horas da carta para mim tão urgente e importante.
É preciso dizer e reter que da estação de correios de origem à de destino distam 20 minutos, deixem-me repetir, 20 minutos, de automóvel à velocidade permitida através das ruas da cidade.
Fiquei a saber, posteriormente, pelos carimbos apostos no tal aviso, que o meu destinatário recebera a carta dois dias depois da expedição. Dois dias para percorrer 20 minutos; mas enfim, desconhecedor das burocracias internas dos Correios do Brasil, aceitei – de qualquer forma, teria de aceitar o acto consumado. O que não pude aceitar impassível foi que o aviso de recepção tivesse demorado a percorrer os 20 minutos de retorno nada mais nada menos do que 13 dias – de novo peço que me deixem repetir, 13 (treze, TREZE) dias. Perdera a oportunidade da acção na Justiça, razão da carta que enviara.
Não me contive. Abri a Internet e varri a página dos Correios do Brasil. Numa apresentação simpática, acolhedora e bonitinha, deparei com uma extensa lista de serviços à minha disposição. Um deles tratava de indemnizações por atrasos na entrega de correspondência. De tal maneira estavam (e estão) os Correios seguros da eficiência, eficácia e competência dos seus serviços, que, sem delongas, prometem reembolsar o cliente que proteste por recepção atrasada de qualquer objecto.
Fiquei agradado. Não era a verba que me fazia lavrar a reclamação. Era, isso sim, a necessidade de repor a justiça, segundo os meus padrões de moralidade, e o ensejo de proporcionar aos Correios a adequação da prática à deontologia anunciada na sua página de Internet.
Dois dias depois recebi o e-mail que abaixo transcrevo:
"Caro Cliente,
Conforme consta, o objeto foi entregue no tempo hábil, no endereço indicado, não cabendo indenização ao remetente. O Aviso de Recebimento também foi entregue, ao remetente no prazo de 13 dias, fato normal para a devolução de AVISOS DE RECEBIMENTO *AR*, o que torna improcedente a reclamação".
Em Portugal, nos meus tempos de menino, quando alguém ou algum serviço público demoravam demais a concluir uma tarefa, dizia-se dele que "era bom para ir buscar a morte".
Pois bem, caro leitor: se conhece, ou vier a conhecer, quem tenha sido incumbido dessa função de "ir buscar a morte", por favor, recomende-lhe os Correios do Recife. É que assim o destinatário terá garantidos, na pior das hipóteses, mais 15 dias de vida.



sexta-feira, maio 20, 2005

"TENHO DE SALVAR A HONRA DOS MEUS FILHOS"

Depois de oito horas de viagem, o roncar dos motores do airbus tinha-se tornado numa zoada distante, perdida algures dentro da cabeça.
O meu vizinho do lado, um brasileiro de regresso à terra, tocou-me no braço: "Olhe lá para baixo".
Olhei. Uma vasta massa de monótona cor cinzenta, eriçada de torres de escritórios e apartamentos era a paisagem.
- "Concreto e mais concreto sem espaços verdes, a não ser os do aeroporto" – comentou o meu vizinho.
São Paulo. Uma metrópole de 1509 km2 no sudeste do Brasil, onde se acotovelam para cima de 10 milhões de residentes.
A mais povoada e desenvolvida (segundo parâmetros macroeconómicos) cidade brasileira é, também, um dos mais violentos territórios de crime, organizado ou de circunstância, devido ao afastamento cada vez maior entre o pico e a base da distribuição de rendimentos.
Concentram-se aqui as sedes das mais fortes multinacionais a operar no país e das empresas domésticas de reconhecida dimensão em todos os sectores económicos, da indústria às comunicações, das finanças ao entretenimento.
O seu aeroporto é, em todo o território, o que factura mais elevado movimento de pessoas e cargas, de e para o exterior. No terminal rodoviário interestadual, placa giratória de um dos principais eixos do Brasil, concentram-se, por algumas horas, os nordestinos que chegaram em busca de melhores condições de vida e os que voltam às origens, desiludidos, falhados, frustrados.
O custo de vida é castigador. Quem tem emprego certo, principalmente se remunerado em condições de algum desafogo nesta selva de cimento, dá graças ao seu Deus, todas as noites e todas as manhãs, pela generosidade.
Era isto que fazia Aílson, um pai de família casado com uma advogada bem sucedida. O que ganhava como bancário de mais de 15 anos de casa em lugar de destaque, acrescido das regalias que o sector concede aos seus empregados, permitia, com o ordenado da mulher, que a família tivesse os quatro filhos a estudar em bons colégios, dois automóveis na garagem do apartamento adquirido num bairro confortável da cidade, planos de saúde tranquilizadores para todos e férias numa bem conhecida estância do litoral.
A estabilidade da vida serena e os bons momentos de lazer gozados nas férias, decidiram o casal a comprar uma casa fora do alvoroço da cidade, onde pudessem passar os fins-de-semana e algumas mini férias por ocasião de feriados distendidos. Puseram-se à procura e encontraram o lugar apropriado. Aílson pediu um empréstimo bonificado ao seu banco para a compra do imóvel.Entretanto, chegaram as férias escolares de Janeiro, e a família partiu para a costumada estância à beira-mar.Um mês depois, no regresso a casa, havia uma carta do Banco à espera deles.
Ainda de bagagens esparramadas pelo chão, precipitaram-se para a carta. De quanto seria o empréstimo? Quando estaria disponível?
Num estilo directo e formal, claro e conciso, a carta informava Aílson de que dentro de 30 dias já não faria parte dos quadros do Banco, mercê de um processo de reestruturação que tinha como um dos principais objectivos a contensão de custos. Nessa linha, o Banco via-se “obrigado a dispensar algumas centenas de colaboradores, cujos prestimosos serviços, lealdade e abnegação jamais seriam esquecidos” etc., etc., etc.
Dispensar era o eufemismo de despedir. Daí a menos de um mês, Aílson estaria sem emprego, com uma indemnização magra, acordada numa negociata entre o Banco e o Sindicato.
Três meses depois, Aílson continuava procurando trabalho. Com 44 anos era difícil arranjar colocação.
"Há uma crise muito grande, meu amigo". "Estão muitos jovens para entrar no mercado de trabalho". "Se souber de alguma coisa, digo-lhe". "Não perca a esperança".
Tiveram de reduzir despesas. Venderam um dos carros. Dos seguros de saúde, conservaram apenas os das crianças.
Foi por essa altura que a mulher começou a sofrer de dores abdominais. A princípio, incomodativas; pouco depois, lancinantes.
Fila nos hospitais desde as cinco da manhã para marcar consulta. As dores aumentando. Análises. Mais exames. Contraprovas. Necessidade de cirurgia. Como era urgente, o hospital agendou para daí a três semanas.
Tinham decorrido dois meses desde os primeiros sintomas, e as despesas aumentavam, em grande parte pelos medicamentos, caríssimos. As economias esvaíam-se. Os rendimentos da mulher diminuíam por constantes faltas ao escritório. Os clientes procuravam outros advogados.
Os filhos passaram para escolas públicas. Sem dramas. O que era preciso era a mãe curar-se e o pai conseguir um emprego.
Oitenta e cinco dias depois a mãe morreu, entre doses generosas de morfina para atenuar as dores do cancro disseminado pelo abdómen.
Aílson vendeu o apartamento e mudou-se com os filhos para um lugar modesto, nos subúrbios, onde às vezes a polícia faz incursões à procura de traficantes. O automóvel da família também foi vendido, logo após o funeral da mulher.
Hoje, os filhos continuam na escola; são bons alunos. Aílson trabalha. Puxa pelos varais duma carroça em que vai recolhendo latas, garrafas vazias, papel e papelão que cata nas lixeiras ao longo de ruas e avenidas.
Foi assim que o encontrou a reportagem de uma grande cadeia de televisão em entrevistas de rua. Contada a história, com mágoa mas sem vergonha, Aílson, puxando com esforço o pesado carro de entulho, terminou a conversa com o repórter: "Perdi quase tudo na vida. Restaram-me a dignidade e quatro filhos para criar. Tenho de salvar a honra dos meus filhos".

voltar para "Aparas de Escrita"



domingo, maio 08, 2005

PROMOÇÕES - PERMANENTES E INSÓLITAS

Se no Recife, ponto mais oriental do nordeste brasileiro, você acordar aos primeiros alvores do dia, o que significa pouco depois das 5 da manhã, pode crer que até à hora de se deitar, cerca das 10 da noite, é um potencial beneficiado por uma qualquer promoção.
Eu lhe digo: a vida comercial nesta cidade, capital do Estado de Pernambuco, é uma permanente promoção.
Embora não haja estações do ano, tal como podem sentir-se no sul do Brasil, ou na Europa, a gente do Recife, mesmo sabendo que a temperatura muito dificilmente desgrudará dos 30° C à sombra, divide os 365 dias climáticos em Calor e Fresco. A primeira grande classificação das promoções é, pois, por época de roupas.
Vêm a seguir épocas mais curtas, mas nem por isso menos promocionais: natal, entrudo e páscoa. Aqui poderá dizer-se que cada artigo é uma promoção.
Nas grandes lojas há o artigo do mês: uma televisão do tamanho dum cinema, um automóvel ou, mesmo, um apartamento. Muitas das empresas de serviços também fazem promoções mensais; por exemplo, um servidor de Internet pode conceder 30 ou 45 dias de acesso gratuito, a título de experiência para o cliente. Chamam a isto cortesia ou gentileza.
As promoções da semana já englobam artigos mais baratos, uns de primeira necessidade, grande consumo, outros não: leite, açúcar, arroz ou feijão de determinados fornecedores, detergente ou sabonete que dão prémios, livros, ou um livro em particular com sessão de autógrafos.
No fim-de-semana, muitos postos de gasolina baixam vertiginosamente o preço dos combustíveis; a gasolina normal pode passar de 2,38 para 2,05 Reais por litro. Os restaurantes aproveitam, por seu lado, para promover alguns pratos ou refeições completas.
Também se encontram promoções por dias. É frequente os supermercados terem o dia dos legumes, o dia da carne, o dia das bebidas. No que toca ao comércio de roupas e calçado, de vez em quando ostenta nas vitrines grandes cartazes, anunciando atraentes descontos com a indicação só hoje. É claro que, nestes casos, o "só hoje" se prolonga por vários dias, permanecendo actualizado, às vezes, por semanas.
E até por horas há promoções. Durante uma, duas, quatro ou sete horas um artigo pode oferecer-se ao público em condições de aquisição consideradas excepcionalmente vantajosas (pelos promotores). Geralmente são as rádios locais que veiculam este tipo de publicidade.
Promove-se tudo, produto de farmácia (sem qualquer receita médica), supermercado, cosmética, pronto-a-vestir, sapatos, oculista (médico incluído), por todo o período imaginável, e todos os meios de promoção são válidos.
É possível e usual acordar sobressaltado pela passagem de uma carrinha tipo furgão, em que o tejadilho desaparece, imerso por todos os lados em alto-falantes de grandes dimensões. Apesar do mau humor, bem cedo se fica a saber da primeira promoção do dia, talvez uma festa na sexta, no sábado e no domingo, no clube do bairro. A altura do som é de tal ordem que, em muitas cidades do sul, não tão dadas a estas manifestações extremadas, esses veículos foram proibidos, ou obrigados a reduzir o número de alto-falantes e o volume da gritaria. Durante uma campanha anti-ruído que envolveu várias autoridades da cidade, foram confiscadas aparelhagens que produziam volumes próximos dos de um avião a jacto de longo curso.
Ao sair de casa tem de tomar a máxima cautela para não ser atropelado por uma bicicleta em sentido contrário, armada de uma caixa de som sobre a roda da frente e outra sobre a roda de trás, avisando que D. Xangá faz nessa tarde um desconto especial no tarô ou nos búzios.
No centro da cidade, a zona comercial mais antiga exibe clima de Babilónia. Todas as portas, da farmácia à joalharia, da livraria evangélica à oficina do afiador de alicates de unhas, apregoam, pelo seu próprio equipamento sonoro, os artigos promovidos nesse dia. É um verdadeiro "entrar senhorias, a ver o que cá se passa". Ninguém entende nada, a não ser no exíguo tempo de passagem pela porta da loja, e o que está sendo anunciado leva, muitas vezes, a mordaça dos ecos das portas vizinhas.
Os vendedores ambulantes garantem que as capas de telemóveis (aqui chamados celulares) que estão a vender por dois Reais – só hoje! – custam cinco na loja.
A rua está juncada de papelotes que lá para trás uma dúzia de distribuidores ofereceu à multidão que passava, aliciando para empréstimos na hora, ao "módico" juro de 1,75 ao mês.
Promoções, promoções, promoções...
Um destes dias dei por que se tinha acabado a margarina que habitualmente uso no pão, e fui até ao supermercado do bairro para comprar uma embalagem. Nas prateleiras estava ostensivamente anunciada uma grande promoção, precisamente da minha margarina. Comparei a caixa habitual com a da promoção e nada vi de diferente. Virei e revirei as duas caixas: nada, tudo igual, a forma das embalagens, o produto, a composição, a quantidade. Chamei um empregado e expliquei-lhe a minha dúvida: se tudo era igual, porquê a promoção?
Virou e revirou também as duas caixas, com ar atento e profissional. Leu as respectivas composições. Conferiu as datas de fabrico e validade. Pediu um momento e desapareceu num cubículo envidraçado onde o gerente conferia listas. Demorou algum tempo. Voltou, finalmente, com um sorriso triunfante.
- A promoção é da caixa.
- Como? – perguntei, atordoado.
- Da caixa. Repare: a da promoção tem uma lista amarela.
Emudeci, agradeci com um gesto, paguei e voltei para casa com a caixa promocional, mais barata e com uma lista amarela...
Pelo caminho recordei aquelas simpáticas figurinhas gaulesas da banda desenhada que exclamam, no auge da distribuição de tabefe, "estes romanos são loucos"... Por que me terei lembrado disto?... Vá lá a gente saber porque se lembra do que se lembra...
Bom, talvez o fabricante quisesse despachar um lote anterior, escondido nos confins do armazém, ou, simplesmente, aumentar as vendas, forçando-as com uma publicidade que, não sendo propriamente enganosa, poderia chamar-se, no mínimo, de bizarra.
Após a primeira dentada no pão barrado, não pensei mais no assunto: o gosto era igual.
Até que...
Meses depois, fazia compras num supermercado de grande porte dum centro comercial e comecei a conferir preços de papel higiénico, artigo de que estava desfalcado em casa. Artigo urgente, portanto. A tarefa não era fácil, dada a quantidade de marcas e preços em presença. Escolhi um pacote grandão, geralmente os mais económicos, com papel de textura aparentemente adequada à função principal.
Soou uma campainha na minha memória. Eu já vira aquele mesmo papel em promoção num expositor à parte, na área das bebidas. Para lá me dirigi com o pacote debaixo do braço.
Virei e revirei as duas embalagens em confronto: a mesma marca, o mesmo fabricante, o mesmo distribuidor, o mesmo tipo de papel, a mesma quantidade de rolos, o mesmo número de folhas por rolo, a mesma embalagem, sem qualquer lista amarela, ou verde, ou sinal que pudesse estabelecer uma distinção.
À cautela, não chamei nenhum empregado, não fosse ele dizer-me que a promoção consistia em poder utilizar também o papel lustroso e escorregadio do invólucro na mesma função do miolo.
Lembrei-me de novo dos meus amigos gauleses... Realmente, estes recifenses são loucos...
Caro leitor: se vier ao Recife, tenha em conta que todos os dias, a toda a hora, há promoções. E o que poderá contribuir para uma passagem por cá ainda mais divertida é que muitas dessas promoções são promoções-mistério.
Confira.



sexta-feira, maio 06, 2005

NO CAMINHO DE SANTIAGO

Reescrito a partir de um texto de Maio de 1998.
Santiago de Compostela exerce um fascínio à distância. Mesmo que nunca se tenha visto qualquer imagem da cidade, todo o contexto histórico-geográfico em que se integra desperta o desejo de a conhecer e de idealizar no local o ambiente de uma das épocas mais vivas das peregrinações, o que equivale a recuar quase nove séculos.Fui tocado por essa sedução e não perdi uma oportunidade inesperada de fazer a viagem.Assim foi que num Outubro ainda sem Outono me fiz ao caminho de Lisboa a Compostela, armado do que eu chamo os meus utensílios de aventura (entre outras coisas, bússola, mapas, barómetro / termómetro de viagem, meios de registo de imagem e de som, papel e lápis, notas prévias dos locais a visitar e... uma boa dose de curiosidade e atenção).
Embora sejam agora seis e meia da manhã, não há frio no fim da madrugada desta sexta-feira sem nuvens, em Lisboa.
Meia hora depois, o autocarro que fará o percurso por que optei já tem dificuldade em furar para sair da capital.
Os meus companheiros, desconhecidos, bocejam, dormitam e resignam-se a esperar alguns quilómetros pelo cafezinho que ficou no desejo à porta dos cafés e restaurantes fechados.
Decorridos oitenta quilómetros, o céu está limpo e brilhante, sem vestígios da neblina que nos acompanhou até Vila Franca de Xira.
Avista-se Minde e Mira de Aire. Mais à frente o castelo de Ourém, onde o engenho de hoje recria, periodicamente, um ambiente de festas e banquetes medievais.
Na área de Leiria, primeira paragem, antes das nove da manhã o ar já está a 27,5 ºC. O meu barómetro de viagem prevê bom tempo, o que há-de vir a confirmar-se ao longo de toda a jornada; enquanto nesse fim de semana vastas áreas de Portugal foram castigadas com fortes temporais, para nós, da partida à chegada, os ares mostraram-se generosos, com céu quase sempre azul mediterrânico e temperaturas que, por vezes, queimavam como se estivéssemos no pino do mais soalheiro Verão.
Muitos caminhos vão dar a Santiago de Compostela. E, tal como em pleno sec. XII os peregrinos iam construindo e fixando-se em cidades ao longo desses trilhos, também nesta rota de algumas centenas de quilómetros verdejantes, alegres e de grande beleza. Apetece parar aqui e além, admirar a paisagem, entrar nas casas, conhecer as gentes, ouvir as histórias e construir a História dentro de nós.
Temos três horas de estrada quando atravessamos o Mondego (conhecido entre os estudantes de Coimbra pelo "Bazófias"). Do aglomerado citadino destaca-se, erecta, a "cabra", velha torre da Universidade.
Mais tarde é o Douro, recortando o vale em Vila Nova de Gaia sob a ponte da Arrábida. Começam a aparecer as vinhas em latada, características do Minho.
Metemos pela estrada de maior trânsito do país, principalmente no Verão, a estrada nacional nº 13 que faz parte do IC1 Porto – Valença.
Agora é a vez de passarmos o Ave, o rio mais poluído da nossa bacia hidrográfica, flanqueado à esquerda por Vila do Conde e, pouco depois, por Póvoa de Varzim. O chão é ocupado por culturas hortícolas, muitas delas até à berma, mesmo as que é necessário proteger, pela sua sensibilidade, em estufas e estufins. A ocupar grandes extensões, o milho, beneficiário da elevada precipitação, atinge alturas soberbas. O que não é arável suporta pinheiro e eucalipto. Ao longo do caminho, muitas vezes à porta das casas, os agricultores montam pequenos postos de venda dos produtos da horta.
Inflectimos bastante para o litoral e aproximamo-nos das praias da Apúlia, areal onde há alguns anos foi intensa a actividade dos sargaceiros na apanha do sargaço, algas trazidas pelo mar e aproveitadas para adubo.
Atravessamos a corrente do Cávado que desce do Gerês para Esposende e entramos nesta cidade. A marginal mostra-nos o cuidado com a preservação do ambiente: predomina a pequena vivenda, com o seu jardim bem tratado; os prédios são baixos, mesmo o hotel, que não vai além dos três andares; as dunas são cortadas por corredores de madeira, de forma a evitar possíveis danos causados pelas deslocações de pessoas na areia.Penetramos fundo no Alto Minho. Muita casa sólida, construída com o belo granito do norte, contrastando com a imensa paleta verde de jardins, pinhais e vinhas em latada. Vão aparecendo nas bermas placas com a indicação de "Caminho de Santiago", a par de outras a aconselhar prudência, feitas com restos de carros acidentados.
Depois do almoço, pela ponte nova passamos o Lima que vai ao mar em Viana do Castelo. À esquerda, brotando do arvoredo, surge a Basílica de Santa Luzia no alto do monte do mesmo nome, dedicada à mártir de Siracusa (m. 304) cuja memória litúrgica se situa em 13 de Dezembro.
A uva já foi toda apanhada e as folhas que ainda restam nas vides têm uma coloração misturada de castanhos, cinzentos, azulados e sobejos de verde.
Desviamos para uma pequena localidade – Meadela – e ficamos afogueados com a temperatura de canícula: quase 34 graus. Mas vale a pena suportar o calor para visitar a fábrica de artesanato de bordados, que nos recebe com Vinho do Porto. Em três pequenas salas as operárias mostram como se desenham a lápis no pano os motivos que hão-de ser trabalhados, como se emparelha com o tear e como se corta, desbasta o fio e caseia, enchendo o linho de crivo, o bordado típico de Viana, nas cores tradicionais – azul, vermelho e branco. Uma peça original com 4,5 m2 custa 185 contos [925 Euros].
Não são mais acessíveis os artefactos de cerâmica da fábrica de loiça da região que a seguir nos franqueia as portas. Mas, mesmo sem comprar, deleita-nos ver nascer da mão do pintor as travessas, as terrinas ou as caixinhas de cores vivas, alegres e luminosas.
São quatro da tarde e o sol aquece e seca o ar muito para além do que seria de prever nesta época.
Subimos o Monte de Stª Luzia, ali ao lado. A paisagem é extensa e a basílica, construída em meados deste século, vale a pena. Um fotógrafo, dos que antigamente povoavam os jardins citadinos com o seu caixote de tripé, permite-nos recordar amanhã uma fotografia "à la minute" feita agora.Depois de algum descanso e de matar a sede, fazemo-nos de novo à estrada.
Farol de Montedor, praia do Moledo, a primeira praia portuguesa no sentido norte-sul, pinhal de Caparide, Caminha, Vila Nova de Cerveira, assim chamada pela abundância de veados (cervos) que, outrora, a caracterizava. Durante um bom pedaço caminhamos a par do rio Minho. Aqui e além, emergem dos terrenos de cultivo espigueiros de granito.
Mais hora e meia e surge em destaque um aglomerado à distância. É Tui. Entrámos na Galiza. Em sintonia com Espanha, adiantamos os relógios uma hora. Sem fronteiras impostas, a transição de um país para outro passa quase despercebida, já que as manchas de floresta e de culturas agrícolas se continuam de forma idêntica.
Passamos a primeira povoação espanhola – Porriño – uma cidade de pequena envergadura no contexto do país, mas de grande desenvolvimento industrial, situada numa das zonas da Galiza de maior progresso em toda a Espanha.
Avistamos Vigo, de casas espalhadas por vastas áreas das encostas dos montes. Com os seus 300.000 habitantes é, a nível demográfico, a maior cidade da Galiza. Em segundo lugar vem Corunha, de 260.000 pessoas. A capital, Pontevedra, é bastante mais pequena em superfície e população do que qualquer das duas anteriores.
Entramos em Vigo pela parte sul e é mais nítida a noção do tamanho desta cidade alcantilada. Atravessamos o centro da cidade onde começa o troço final que nos conduzirá a Compostela. Há muito movimento. Nas paragens dos semáforos, pedintes acercam-se dos carros. Descemos a avenida principal, a Grã-Via, completamente atulhada. No termo desta avenida abre-se a auto-estrada. Dentro do autocarro, isolado do linguarejar do exterior, não se nota diferença em relação a Portugal: o mesmo trânsito, as mesmas buzinas, os mesmos engarrafamentos, as mesmas setas no pavimento, as mesmas grelhas amarelas nos cruzamentos. As caras são parecidas. As pessoas são parecidas. Na rua confirmámos que o Galego é o dialecto espanhol mais parecido com o Português.
Transpomos 1500 metros de paisagem admirável pela ponte da ria de Vigo. Daí a pouco, em Pontevedra, salta aos olhos a curiosidade de se encontrar a marina plantada no centro da capital.
Já perfizemos 550 quilómetros. É um fim de tarde quente, 25 graus. Às nove e meia, com temperatura ainda mais elevada, chegamos a Santiago de Compostela.
Arrumamos as malas num hotel perto da cidade velha. No quarto sem ar condicionado pairam os restos de um dia que deve ter sido de braseiro.
Apetece um passeio nocturno. Na rua, às dez da noite, em Outubro, ainda estão 26 graus...
A pé, pequenos grupos espalham-se pela zona da Catedral. Na rua dos bares e dos restaurantes é uma correnteza de gente. Numa artéria vedada ao trânsito toma-se chá – tisanas de cidreira, tília, flor de laranjeira e outras semelhantes – bebe-se um refresco, cavaqueia-se em esplanadas agradáveis. Trupes de jovens saltimbancos / malabaristas dão uma animação diferente e concorrem com as tunas de música típica. Passa uma ou outra figura que chama mais a atenção mas já não espanta ninguém. Apesar de ser sexta-feira, pouco depois das onze os cafés começam a fechar.
Regresso ao hotel.
Declarada pela UNESCO Património da Humanidade, Santiago de Compostela, assenta numa colina cercada pelo rio Sar e pelo seu afluente Sarela. A sua origem provém de uma lenda: Tiago, um pescador do lago Tiberíades irmão de João Evangelista, teria escolhido a Hispânia para o trabalho de evangelização. Perante algum fracasso no aliciamento de discípulos, regressaria a Jerusalém. Aí, Herodes, no ano de 44, depois de ordenar que o supliciassem e decapitassem, proibiu que fosse enterrado. Então, de noite, alguns Cristãos recolheram o corpo e transportaram-no até à orla marítima onde encontraram um barco sem tripulação mas pronto a zarpar; depositaram-no num túmulo de mármore e um anjo conduziu-o através do mar até às Astúrias. O sarcófago chegou junto da capital da Galiza romana e aí permaneceu ignorado durante largas centenas de anos, num campo que fora um antigo cemitério. No princípio do sec. IX, um eremita descobriu o local do túmulo, orientado por uma luz sobrenatural semelhante à estrela dos Reis Magos. A partir daí, o local começou a ser referenciado nos textos medievais como Campus Stellae (Campo da Estrela), convertendo-se, progressivamente, em Compostela. O bispo Teodomiro reconhece oficialmente que o túmulo é o do Apóstolo e sobre ele manda edificar um templo. Começam as peregrinações e os traçados dos Caminhos de Santiago, de que o mais importante é o Caminho Francês (de França a Pamplona, Burgos, Leão e Compostela). Nos fins do sec. IX, Afonso III constrói a antiga basílica mas, em 997, os Muçulmanos comandados por Almançor destroem tudo, poupando, no entanto, o túmulo de Santiago. A cidade é reconstruída e defendida por muralhas. Em 1075 o bispo Diego Peláez inicia as obras da catedral que a administração do bispo Diego Gelmírez há-de continuar.
As peregrinações, iniciadas com a descoberta do túmulo e incentivadas pela necessidade de consolidar mais a sul as fronteiras com os Infiéis, atingem o auge nos séculos XI e XII, a par do expoente da civilização cristã medieval e da progressiva conquista da Península. Para além de rotas de peregrinos, os caminhos constituíram vias de infiltração de novos ambientes culturais e de intercâmbio económico, científico, artístico e literário, com particular registo para o Românico, a lírica provençal, as lendas de gestas e a música.
Na primeira metade do sec. XII, um clérigo francês de nome Picaud elaborou um conjunto de cinco volumes que vieram a ser conhecidos por Códice Calixtino (conservados na catedral de Compostela), onde narra com detalhe a vida e os feitos mais relevantes do Santo, descreve as rotas que, de França e do norte de Espanha, convergem para Santiago e fornece uma série de indicações práticas para os peregrinos. Para estes, um roupão curto, uma capa e um chapéu protector da chuva e do sol eram a indumentária de base. Um bastão facilitava a caminhada e defendia contra animais ferozes e ladrões. Uma cabaça, geralmente presa ao bordão, servia de cantil. A bolsa de pele de veado, obrigatoriamente aberta em sinal de singeleza e sinceridade, bem como a concha de vieira que dava acesso às hospedarias, identificavam a condição de peregrino.
Apesar do ambiente, nem todas as romagens tinham motivações religiosas. Às vezes constituíam um castigo por algum crime cometido ou insulto considerado grave. Outras, não iam além de um negócio, em que um penitente enviava a Compostela um pobre a quem pagava as despesas em troca de usufruir de uma parte da indulgência concedida. Habitualmente, no fim da viagem era perdoado um terço dos pecados. Se a chegada coincidia com um Domingo em que se celebravam as festividades do Santo, o perdão era total, desde que houvesse pleno arrependimento. Noutras ocasiões era possível abater de 40 a 200 dias de Purgatório.
Quando avistavam Compostela, os peregrinos lavavam-se num rio para se libertarem das impurezas do corpo e do espírito. Depois, durante toda a noite, velavam na Catedral ao som de cânticos acompanhados por cítaras, timbales, trompetes, violas, saltérios e outros instrumentos daquele tempo. Antes da primeira missa do dia, ao amanhecer, um clérigo que dominava várias línguas repetia, para cada uma delas, o ritual das oferendas, distinguindo rigorosamente as que se destinavam ao Santo, das que se juntariam ao cofre do templo.
Santiago é hoje um importante centro administrativo, arquitectónico, religioso, comercial e universitário com mais de 100 000 habitantes. Em 1982 tornou-se capital da Comunidade Autónoma da Galiza, sede da Xunta (Governo Autónomo), do Parlamento e de outros órgãos do governo regional. Todo este desenvolvimento se processou em torno da Catedral.
Enquadrada por quatro praças — Azabachería, Quintana, Platerías e Obradoiro — aquela magnífica peça de arquitectura religiosa esmaga-nos pela imponência e atrai-nos pela diversidade resultante da conjugação de estilos separados no tempo de alguns séculos, correspondendo a períodos distintos de reconstrução ou ampliação.
Na Praça de Azabachería (ou Arbachería), onde os mercadores esperavam os peregrinos com carregamentos de bolsas de pele de veado, cabaças e vieiras, ergue-se o mosteiro beneditino de San Martín Pinario. Ocupando uma área de 20 000 m2 à volta de três grandes claustros, foi construído entre os secs. XVII e XVIII sobre um mosteiro do ano de 912. Nesta época já os Beneditinos detinham grande poder, chegando, posteriormente, a competir com a Catedral e com a própria Inquisição.
Um pequeno jardim, com um cruzeiro onde se destaca o Apóstolo, separa San Fiz de Solovio, o primeiro templo que se construiu na cidade, da Faculdade de Geografia e História. A fachada da catedral que dá para esta praça é uma composição do sec. XVIII. Encostada a ela, e da mesma época, a frontaria do Palácio do Arcebispado que conserva quase por completo, atrás das suas paredes barrocas, o palácio construído pelo bispo Gelmírez, cerca de 1120.
Na Praça da Quintana destacam-se a Torre do Relógio, também conhecida por Torre da Trinidad, e o Pórtico Real. A torre, acabada em fins do sec. XIV e transformada em Barroco quatrocentos anos depois, é famosa pelo seu sino — La Berenguela. Dava acesso directo à Corticela, a paróquia dos peregrinos, originalmente uma construção independente da Catedral, hoje ligada ao interior do templo.
Para a direita, uma primeira porta dá passagem à sala onde se guardam os oito gigantones que simbolizavam os peregrinos de todas as nacionalidades. Uma outra, de grades, ladeada por figuras românicas, é a Porta Santa ou Porta dos Perdões, apenas aberta nos anos santos de Compostela. Para além de Roma e de Jerusalém, só a Santiago de Compostela foi atribuído Ano Santo, celebrado quando o dia 25 de Julho coincide com um Domingo; o último foi em 1999.
O espaço amplo da praça, outrora ocupado pelo cemitério a que se fez referência mais atrás, quando falámos da fundação de Compostela, é dividido por uma escadaria em Quintana dos Vivos, a parte superior, e Quintana dos Mortos, a inferior. Na primeira pode ver-se uma curiosa construção do fim do sec. XVII, barroca, decorada com cachos — a Casa da Parra. Do outro lado da praça destaca-se a fachada do Mosteiro dos Beneditinos de San Pelayo de Antealtares, também conhecido por Convento de São Paio. A igreja, fundada em 1707, possui uma ara romana usada como altar pelos primeiros discípulos de Tiago. Entre as duas janelas que encimam as entradas principais está colocada uma figura representando o Apóstolo.
No centro da Praça das Platerías ergue-se a Fonte dos Cavalos, de J. Pernas, esculpida em 1825, barroca com traço italiano. Foi a inspiradora de Lorca para o poema "Danza da Lúa en Santiago". Em frente, a Casa do Cabido, da autoria de Clemente Sarela, data do sec XVIII. Uma alta torre do sec. XVII (Domingo de Andrade) completa o cenário.
A praça deve o nome às inúmeras lojas de prateadores que se abrigavam debaixo dos arcos da planta baixa do claustro da catedral, de muros exteriores renascentistas. Nele se albergou o grémio destes artífices. A fachada visível deste local, Fachada do Cruzeiro, exibe um exemplo excelente de traçado românico — a Porta das Platerías — única porta deste estilo que a catedral ainda conserva. As imagens do rei David, da criação de Adão, e da mulher adúltera (condenada pelo marido a beijar todos os dias a caveira do amante) são consideradas das melhores peças de escultura da Idade Média.Vista da Praça de Obradoiro, a catedral apresenta uma fachada barroca, um retábulo enorme ladeado por duas torres, concebido em 1738 por Casas e Novoa. É o ex-libris da cidade. Em frente fica o frontispício mais antigo da praça, o do Hospital dos Reis Católicos, fundado por Fernando e Isabel em 1492, para acolher peregrinos e enfermos. O equilíbrio entre a simplicidade das linhas horizontais e a fachada, de bandas verticais, foi conseguido por Enrique Egas, mestre da arte do plateresco, uma combinação de características góticas e renascentistas de forma tão elaborada que mais parece trabalho metálico do que escultura em pedra. A portada mistura motivos clássicos com pináculos e dosseletes, coberturas de pedra que, à laia de dossel, protegem as figuras dos santos. Estes abrigam-se em nichos, acompanhados dos símbolos que lhes são atribuídos pela tradição cristã. Os balcões, acrescentados em 1678, são, juntamente com as gárgulas da cornija, os únicos elementos a interromper a sobriedade da fachada.
O hospital é hoje hotel de luxo, integrado na rede de pousadas do Turismo Espanhol.No lado oposto, o Colégio de S. Jerónimo serve hoje como sede do Reitorado. Data do sec XVII, a fachada é do românico tardio (fins do sec. XV) e a portada pertenceu ao velho hospital de peregrinos da Praça da Imaculada.
A fechar um dos lados maiores da Praça de Obradoiro, frente à catedral, estende-se o Palácio Rajoy, a construção mais moderna do recinto, iniciada em 1766 pelo arcebispo Bartolomé de Raxoi y Losada. Na face neoclássica o frontão, esculpido em mármore branco, retrata a batalha de Clavijo e é encimado pela figura de Santiago Mata-Mouros, lembrando a sua aparição nessa batalha. Outrora Consistório (cárceres e Seminário de Confessores), aí funciona hoje a Câmara de Santiago e a Presidência da Junta da Galiza (Governo Autónomo).
O acesso à catedral, que substitui hoje uma pequena basílica de três naves dos finais do sec. IX, faz-se pelo Pórtico da Glória (Praça de Obradoiro), obra prima da arte medieval assinada no sec. XII por mestre Mateo.
Formado por três arcos onde se distribuem as figuras de Cristo rodeado pelos quatro evangelistas, oito anjos, os 24 velhos do Apocalipse, a árvore de David, quatro profetas e mais personagens e cenas do Antigo Testamento e do Julgamento Final, o recinto constitui um elucidário de teologia cristã.
Dos quatro profetas postados numa das colunas, o que sorri é Daniel. Segundo a interpretação popular, o seu sorriso acompanha os olhos na direcção dos seios da rainha Ester, noutra coluna próxima. Perante esta versão menos piedosa, as autoridades religiosas ordenaram o corte das curvas do peito da estátua. Em retaliação, o povo começou a fabricar queijos com o feitio de mama, a que pôs o nome de queijos tetilla (maminha) e que continuam a vender-se na Compostela de hoje.
Ainda no Pórtico, uma outra peça que atrai as atenções dos forasteiros é a coluna do Santo dos Croques (carolos). Do lado da imagem, que se diz ser um auto-retrato de mestre Mateo, o viajante bate com a cabeça três vezes (três caroladas) enquanto formula cinco desejos, três dos quais serão satisfeitos; do lado oposto, bate também três vezes com a cabeça a pedir mais inteligência. E não deixa de ser curioso ver a sequência de cabeçadas despidas de preconceitos com que os visitantes veneram o santo...
Para além das capelas e dos altares que contornam as naves do templo, destacam-se, no conjunto arquitectónico, artístico, histórico e religioso, alguns elementos que devem merecer as atenções da visita. Um deles é a Sala do Capítulo. Outros são o claustro, de estilo gótico tardio, e o Museu, com o tesouro da Catedral, inicialmente arqueológico por ter acumulado as descobertas feitas no subsolo (túmulos, relevos e estátuas dos séculos XI ao XVI), em cuja biblioteca se encontram manuscritos e livros impressos até 1500.
Nesta biblioteca guarda-se, também, o Botafumeiro, turíbulo de grandes dimensões cujo serviço, naquela época, não era apenas de carácter religioso; a grande concentração de peregrinos no recinto fechado da basílica, depois de terem calcorreado estradas e caminhos, campos e lameiros, ao longo de meses, libertava odores que, por certo, não seriam dos mais agradáveis; então, o incenso queimado no bota fumeiro servia de desodorizante de ambiente; hoje é usado em dias de festa especial, suspenso de uma trama por onde se escapa uma corda com vários nós que servem de apoio aos homens que o fazem balançar em autênticas competições de grupos, conseguindo, por vezes, levá-lo quase até ao tecto. Na montra de uma casa comercial da parte velha da cidade é possível ver uma réplica em tamanho natural (metro e meio) deste incensório, com uma particularidade: o da basílica é de latão e a cópia da loja é de prata. Por cima da trama de suspensão do incensório, na cúpula do cruzamento das naves, pode ver-se desenhado o "olho de Deus" no meio do triângulo inscrito no círculo. Este e outros símbolos com conotação semelhante, abundantes no templo, são hoje usados por associações esotéricas.
O altar-mor, outro dos elementos relevantes, é dominado pela figura de Santiago num trono dourado. Apesar da pequena dimensão deste trono, comparado com o corpo da basílica, o seu recorte iluminado sobressai da semi-obscuridade da atmosfera envolvente na capela-mor.
Por detrás da imagem, um corredor circular permite o acesso aos fiéis para que os que quiserem ser felizes possam cumprir o ritual de abraçar as costas do Santo. Sentado perto da imagem, na penumbra, um padre vestido de roxo quase passa despercebido e assusta-nos quando damos de caras com ele, a abanar-se paulatinamente com as pagelas que tem para vender.
Por fim descemos à cripta, os subterrâneos da basílica, onde se encontra o fulcro da devoção — um sarcófago de prata com os restos que os crentes veneram como sendo os do Apóstolo.
Aqui separam-se a Fé e a Ciência: a primeira apresenta o relicário como o repositório das relíquias de Santiago; a outra confirma que o conteúdo pertence à espécie humana, mas reconhece que não tem possibilidades de o identificar.
Saímos da basílica.
Cá fora, a arquitectura do ambiente mantém o clima medieval.
Sobra tempo para uma volta pelas casas de recordações onde encontramos de quase tudo para todos os gostos. Escolho um bordão de peregrino com as respectivas cabaça e vieira penduradas. Mais além selecciono uma estatueta da enorme colecção de bruxas que todas as casas têm para venda – bruxas do dinheiro, bruxas da sorte, bruxas da felicidade, bruxas do amor.
A bruxa é o símbolo da Galiza. Dizem os habitantes que a Galiza é terra de bruxas. Não sei se vi alguma, disfarçada, mas senti o feitiço da terra, enquanto por aqui andei, e o caminho pareceu-me diferente, ao longo dos 650 quilómetros de regresso a casa.



[View Guestbook] [Sign Guestbook] Votez pour ce site au Weborama Estou no Blog.com.pt
eXTReMe Tracker Licença Creative Commons
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons para José Luiz Farinha.