O comércio informal no Recife, capital do Estado nordestino de Pernambuco, está proibido desde o passado dia 10, domingo.
Segundo informação divulgada, a polícia tem instruções para apreender toda a mercadoria que não possua a respectiva nota fiscal. Que destino terá essa mercadoria, não foi dito.
A informalidade é uma das características do Brasil.
No sector do trabalho por conta de outrem, por exemplo, em Janeiro deste ano registavam-se 16,9% de assalariados sem contrato assinado. Uma das razões, por certo a mais determinante, é o facto de os encargos tributários com os empregados terem disparado de 23 para 36% em poucos anos. Por outro lado, dada a magreza da oferta de trabalho, os candidatos não fazem reivindicações.
No que toca a segurança social, mais de metade dos trabalhadores activos não desconta para a Previdência. Isso propicia situações angustiantes se a doença ou o despedimento bater à porta.
No respeitante ao comércio informal, ele constitui uma significativa quota de economia paralela a interferir com a economia da conjuntura. De tal maneira interfere, que acaba de surgir esta proibição.
Quanto menor for o estado de desenvolvimento de um país, maior será a desregulamentação deste tipo de comércio, do mesmo modo que quanto menor for a taxa de emprego, maior será a sua presença no mercado.
Por vezes o seu desenvolvimento é tão intenso e tão complicada a rede dos seus suportes, que se torna difícil criar uma legislação eficaz em termos operacionais e disciplinadores. Então, opta-se pela proibição, método mais rápido e cómodo, ainda que nem sempre os resultados sejam condizentes com o que se esperava obter quando se tomou aquela medida.
O comércio informal existe por todo o Brasil. No Recife, cidade com cerca de 1,6 milhões de habitantes, ele está implantado há muitos anos. Embora especialmente localizado no centro da cidade, na zona mais antiga, ultimamente tem crescido muito, por razões fáceis de reconhecer.
A própria autarquia criou ou remodelou espaços na cidade destinados a este tipo de comércio. Em grandes áreas chamadas camelôdromos, nalguns casos divididas em minúsculas lojas, noutros absolutamente abertas, dispõem-se bancas de todo o tipo de mercadoria, onde os camelôs (vendedores e vendedoras) discutem com o cliente artigo e preço, condições de venda e garantia de troca. Sem papéis que não sejam os de embrulho ou os das notas de banco, tudo funciona na base da confiança. Há preços tentadores, mas acontece, muitas vezes, comprar gato por lebre. Depende do tipo de artigo, bem como dos conhecimentos do comprador e do grau de relacionamento a que ele tenha chegado com o camelô.
Nos locais já instalados, a autarquia criou infraestruturas para maior comodidade de proprietários e utentes.
O combate com o comércio convencional é feroz. Tanto assim que algumas das lojas de pedra e cal das imediações dos camelôdromos que vendam produtos similares, são obrigadas a baixar o preço dos artigos, ou a fechar. Outras, beneficiando da multidão de potenciais compradores que sempre vagueiam pelo local, disparam campanhas de promoções alardeadas por avantajadas colunas de som que, porta com porta, transformam o ambiente numa babilónia ensurdecedora.
Outro motivo para o crescimento do comércio informal é o baixo índice de oferta de emprego. A mão-de-obra excedentária não é absorvida pela quantidade de empregos postos à disposição do mercado de trabalho. O ritmo de crescimento é lento, muito abaixo do nível desejável e necessário, e cada vez mais são exigidas qualificações, gerais ou especiais, que o pessoal que se instala nos camelôdromos não possui.
Existem, ainda, razões culturais. Os camelôs são, na maioria, pessoas dos estratos sociais mais baixos. Para além de terem dificuldade em conseguir trabalho em certos patamares, eles próprios preferem a liberdade do ar livre; a liberdade de serem patrões de si próprios, ou empregados de um patrão com quem possam ter uma relação especial, de um modo geral um familiar, um amigo ou um vizinho; a liberdade de não terem de se sujeitar a horas para abrir ou fechar as tendas. Enfim, segundo o velho lema daqui, esperam fazer dinheiro fácil com o mínimo de trabalho.
A baixa renda per capita incentiva também este tipo de mercado. Estima-se que o salário mínimo necessário para fazer face ao custo de vida indexado aos preços actuais seria de 1538 reais por mês. A realidade é bem outra e fica-se nos 300 (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros). A cesta básica representa 53% do salário do trabalhador. Pois em 6 meses o seu valor subiu mais de 4 vezes a inflacção prevista para todo o ano (6%).
Finalmente, a burocracia pesa na decisão pela informalidade destes comerciantes. Do ponto de vista jurídico-administrativo, constituir uma empresa no Canadá é coisa que demora 2 horas. No Brasil custa 150 dias.
O governo, que tem permitido e, até, ajudado logisticamente este tipo de comércio, agora diz basta, ameaçando apreender toda a mercadoria ilegal, isto é, sem autorização da Fazenda para circular.
Se essa autorização não existe, então, qual a proveniência dos produtos? Poderá pensar-se em três fontes distintas que, em percentagens diferentes consoante a época, o artigo e o lugar, alimentam esta circulação: o roubo ou o furto de bens de particulares, o desvio alfandegário e o contrabando. Sem estatísticas precisas, pelo menos publicamente disponíveis, o contrabando parece ser o fornecedor principal, em especial nos camelôdromos.
Todas estas três vias pertencem ao foro da acção criminosa. Para além disso, os vendedores poderão incorrer em eventuais processos por perdas e danos causados por concorrência desleal ao comércio legalizado, e por fuga aos impostos.
Se é verdade que se torna necessário pôr cobro a injustiças, moralizando e disciplinando todas as actividades numa sociedade já tão desgastada por desequilíbrios e escândalos da Administração e da prática política e económica, cabe perguntar também que alternativas podem ser propostas a este tipo de comércio, em paralelo com a interdição decretada, alternativas para alguns milhares de cidadãos comerciantes, não falando já dos habituais consumidores.
Face à quantidade de parâmetros em jogo e à linguagem dos números, a proibição poderá, só por si, constituir solução para o mal que se pretende erradicar?
Que garantias há de que a proibição pura e simples seja suficiente para pôr cobro ao comércio informal, melhor dito comércio ilegal? Que legislação complementar de apoio foi promulgada? Que fiscalização foi preparada para o efeito? A polícia, que parece não ter mãos a medir no combate ao crime violento, estará apta a dar resposta, com os mesmos meios, a este crime de algibeira?
Proibir uma actividade sem extinguir as origens que a alimentam não surtirá qualquer efeito.
Proibir o comércio informal sem estancar o fluxo proveniente de assaltos, desvios nas alfândegas e contrabando, só servirá para sofisticar os meios de abastecimento e tornar aquele comércio cada vez mais ilegal.
As autoridades porventura possuem aptidão para desarticular e neutralizar em definitivo aqueles meios clandestinos de fornecimento? Seja a resposta ingenuamente afirmativa, ou mais objectiva admitindo que precisam de meios suplementares em várias frentes, cabe sempre perguntar por que nada de visível se fez até agora.
Para além da lacónica notícia, sem pormenores, que escutei na televisão no início da semana passada, nada mais ouvi sobre o assunto. Nem ouvi, nem vi.
Uma medida destas, exige, pelo menos, um esclarecimento junto do público interessado, quando não uma campanha pedagógica junto de toda a sociedade civil. A menos que não se pretenda, ou seja indiferente, a colaboração dos contribuintes.
Como irão reagir os consumidores, estes consumidores de baixos rendimentos que constituem o grosso da clientela do comércio informal? Compreenderão o alcance da medida, ou verão nela mais um atentado aos seus magros recursos? Colocar-se-ão ao lado do legislador, colaborando, ou tornar-se-ão cúmplices activos de novos processos que surjam para iludir a lei e perpetuar o sistema?
Aparentemente, a proibição não vai beneficiar em nada o consumidor deste tipo de comércio. As razões de fundo que possam ser invocadas deslizarão na imagem, tida como generalizada, de corrupção que o país oferece dos seus dirigentes. Ou seja, o poder não tem autoridade moral para moralizar.
É preciso, pois, alternativas para vendedores e compradores.
Proibir e punir poderá parecer o recurso mais imediato para chegar a um objectivo, mas, em certos casos, não será o mais adequado nem o mais eficaz.
De uma vez por todas, é preciso entender que governar não é fácil, e, acima de tudo, governar bem não se compadece com imediatismos.