CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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terça-feira, julho 19, 2005

ESCLARECIDOS, OU ILUDIDOS?

Num canal de tv essencialmente voltado para a cultura, assisti recentemente a uma mesa redonda constituída por diversos profissionais do Direito.
Programa transmitido do Rio de Janeiro, vestido de sério e, ao mesmo tempo, acessível e sem os convencionalismos e as imponências que a palavra magistrado nos propõe na cabeça, visava o tema da Justiça no Brasil, em várias vertentes.
Moderava um advogado. Todos os intervenientes eram jovens, apesar das funções de que já estavam investidos nos diversos sectores que representavam. Constituíam um bom leque de competências.
A possibilidade de o público participar por telefone gratuito, fazendo perguntas ou comentários, tornava mais interessante a apresentação e a discussão dos assuntos propostos.
Enfim, o tipo de programa que, passados 5 minutos, nos leva a pensar que gostaríamos de ver com frequência repetido o respectivo figurino naquelas matérias, tantas, sobre que temos dúvidas e queremos ser esclarecidos.
Porém, desilusão, decorridos outros 10 minutos, não foi preciso mais, tive de perguntar a mim mesmo se o que se desenrolava perante os meus olhos era esclarecer ou iludir.
Não se trataria de iludir por má-fé. Pelo contrário, pareceu-me que todos estavam empenhados em descobrir pistas que conduzissem a algumas das soluções que se tornam urgentes, face aos variados e complexos problemas que a Justiça coloca aos cidadãos – e que os cidadãos lhe colocam.
Quando digo iludir, refiro-me ao facto de que nem sempre os presentes na mesa falavam de realidades factuais. Muitas vezes as suas sugestões ou esclarecimentos (pseudo) baseavam-se naquilo que está regulamentado, estabelecido, mas que na prática não acontece. Ora, só se pode discorrer sobre situações se elas ocorrerem. Tudo para além disso é virtual e não tem utilidade para a vida das pessoas. Da intenção à acção vai uma distância apreciável.
Permitam-me uns exemplos.
Foi abordada a questão do acesso à Justiça nas suas variáveis preço, qualidade, demora e eficácia. No que respeita à demora, saltou para o debate o horário de funcionamento dos tribunais. Por que razão os tribunais no Brasil só funcionam metade do dia? Se trabalhassem durante o dia todo, não seriam despachados mais casos, já que a queixa principal, neste aspecto, é a escassez de tempo para tratar tantos processos apresentados? O presidente da Escola de Magistratura veio em defesa da dama que, afinal era de todos os intervenientes, argumentando que, na verdade, os tribunais abrem às 11 horas para o público, mas desde as 8 horas que os funcionários se encontram nos seus postos a trabalhar.
Que me desculpe o Sr. presidente da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro. Pode ser que tal horário esteja determinado no regime geral de funcionamento dos tribunais. Pode ser, até, que isso aconteça no Rio de Janeiro. Porém, não é essa a prática habitual.
Numa cidade em que vivi durante ano e meio, em Santa Catarina, estado do sul do país, o tribunal abria às 13 horas. Durante toda a manhã não havia vivalma dentro dele, nem sequer segurança.
No Recife, precisamente no dia da mesa redonda de que falo, tinha assuntos a tratar em dois órgãos da Justiça. A eles me dirigi de manhã, o que constituiu um desastre completo para a minha agenda.
O primeiro foi o tribunal conhecido como fórum de Joana Bezerra, por ficar no bairro com este nome. Um dos principais tribunais da cidade, às 10h20 tinha os portões completamente fechados. Por detrás de um deles, um agente da polícia militar, dos muitos que fazem guarda ao edifício, esclareceu-me que lá dentro não havia ninguém. Só a partir do meio-dia.
Desconsolado, dirigi-me, então, ao Ministério Público da avenida Visconde Suassuna, onde deveria resolver a segunda questão que tinha em carteira. Às 11 horas um grupo de serventes lavava o piso em frente da entrada. Consegui falar com uma recepcionista que já se encontrava no balcão de atendimento. Esclareceu-me que os serviços só abriam ao meio-dia, mas os promotores não começariam a chegar antes das 14 horas.
Se aquilo que o presidente da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro pretendeu fazer passar como verdade é lei, ou seja, se a partir das 8 da manhã os funcionários dos tribunais têm de estar nos seus postos de trabalho, onde se encontram então os do Recife e de outras cidades brasileiras? Estaremos perante um problema de indisciplina generalizada? Tão generalizada mesmo que nem há chefes para tomar conta dessa ocorrência? Ou terão sido os chefes os primeiros a dar o exemplo?
Não me esquecerei nunca daquele episódio que já aqui foi referido, em crónica anterior. No fórum Tomás de Aquino, também no Recife, aonde me desloquei numa tarde de insuportável calor, pouco passaria das 3 horas, encontrei as portas fechadas. Um mal encarado e desatencioso polícia militar, que por ali espreguiçava o seu descontentamento da vida, quando lhe perguntei o motivo do encerramento apontou com o queixo para uma coluna fronteira à porta. Aí, um papel composto em computador avisava que nessa sexta-feira o tribunal encerrava às 13 horas devido à procissão do Senhor dos Passos.
Não entendi porquê. Indaguei junto do ministério da Justiça, por e-mail, qual a relação entre uma procissão, seja lá de quem for, e o funcionamento dum tribunal. Já lá vão vários meses. A resposta nunca chegou.
As mesas-redondas, deixem-me repetir, só serão úteis se esclarecerem sobre factos, sobre a realidade, e não sobre como as coisas deveriam ser. A não ser assim, as mesas-redondas não passarão de feiras de vaidades e mercados de ilusões.
O povo tem direito a melhor, quanto mais não seja porque é ele que sustenta a preguiçosa incompetência que se arrasta pelo funcionalismo público deste país.



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