No Brasil, a corrupção, o compadrio, o favoritismo e o proteccionismo familiar borbulham e fedem como num grande pântano de matérias em decomposição, e os mais destacados habitantes desse pântano são os políticos.
Por outro lado, a intrincada rede de relações pessoais e factuais que a prática política aqui engendra implica que uma ocorrência num qualquer ponto da teia desenrole um efeito de cascata transmissível a toda a estrutura.
É o caso da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Correios brasileiros, objecto de uma crónica publicada no "aparas de escrita" em 27 de Maio deste ano, sob o título "Corrupção nos Correios brasileiros. Só aí?".
As acusações e respectivas defesas mal remendadas chovem agora num desesperado salve-se quem puder, trazendo à tona os podres do fundo do lago. E as cabeças começaram a rolar.
O escândalo aumenta. No mesmo grau, cresce a resistência do governo ao decurso normal e transparente do trabalho da comissão de inquérito, o que, para além de fazer cair em descrédito ainda maior a idoneidade e a ética da Administração Lula da Silva, conduz a confrontos directos entre este e a oposição. O país sai a perder.
Tudo começou com uma reportagem da revista "Veja", em meados de Maio último, na qual o ex-chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material dos Correios é confrontado com uma gravação em que ele próprio, na sede da empresa estatal, negociava com três empresários o estabelecimento de comissões (aqui chamadas “propinas”) como contrapartida de futuros favores a conceder pelos Correios. A gravação mostra a entrega, por parte dos empresários, de 3000 reais que seriam uma primeira parcela das comissões exigidas por aquele chefe de departamento. Perante a evidência, afirmou, então, haver um esquema de corrupção na empresa, esquema esse que teria o comando do presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um deputado pelo Rio de Janeiro.
Depois de muitas peripécias em que negou posteriormente o que afirmara, isentou quem acusara, deu explicações incredíveis, prometeu oferecer o dinheiro recebido a uma instituição de beneficência e levou os seus advogados a fazerem afirmações anedóticas, como a de uma cabala montada por uma não revelada multinacional e, depois, pela direita militar contra ele, a opereta terminou o primeiro acto com a sua indiciação pela Polícia Federal (PF) sob a acusação de fraude em licitação e corrupção passiva.
A partir daí, percebeu-se que a actuação do funcionário mais não era do que a ponta de um imenso iceberg que provocou um inesperado rombo no governo e foi abrindo uma perigosa brecha chamada crise política.
Perante o alvoroço criado à volta do caso, a Câmara dos Deputados e o Senado, mesmo, e bem, com a participação de elementos do partido no Poder (PT) e seus aliados, resolveram requerer a CPI em curso, perante o constrangimento e a tentativa de boicote do próprio governo que parece não se importar com o desgaste cada vez maior que produz na sua imagem já tão fragilizada.
Os ânimos estão exaltados. A oposição recrimina a direcção da CPI, governista, de sonegar informações que lhe são solicitadas e de tentar obstruir, por um processo de censura interna, o andamento dos trabalhos da comissão. A cúpula da CPI nega todas as acusações, como é óbvio.
Volta à ribalta o deputado do PTB, inicialmente acusado por aquele funcionário de ser a cabeça e o gestor do esquema. O governo reforça as acusações contra ele. Não lhe perdoa o protagonismo dos últimos dias como principal fonte de denúncias junto da opinião pública contra o PT e o governo.
O deputado que, entretanto, deixou a presidência do PTB, acusa frontalmente o tesoureiro do PT de pagar uma mesada, a que a imprensa chama "mensalão", de 30 mil reais (1 Real vale, aproximadamente, 0,33 Euros) a vários deputados de partidos que constituem a base social de apoio do governo, para que se mantenham fiéis nas votações das propostas legislativas favoráveis à Administração do presidente Lula da Silva.
Perante isto, o próprio PT está dividido, de novo. A ala mais à esquerda quer a demissão do tesoureiro e do secretário-geral do partido, ambos supostamente envolvidos no "mensalão" como gestor e mentor, respectivamente, do plano. A maioria, porém, decidiu mantê-los em funções, o que se compreende: arredá-los significaria reconhecer o envolvimento directo e activo naquela imoralidade.
A oposição aproveita a ruptura, e pretende relacionar as nomeações políticas feitas para os Correios, e não só, por um então ministro Chefe da Casa Civil de Lula, com esta arrecadação levada a cabo na empresa estatal e que se destinaria, pois, ao PT e aos partidos aliados. Insinua que as nomeações foram mais que políticas, fazendo já parte da tramóia agora revelada. Exige que o ex-ministro seja chamado para depoimentos na comissão de inquérito, avançando ser ele o estratego daquele plano de arrecadação. Pede a cabeça do ex-ministro, a quem acusa de nunca ter sido ministro, mas apenas um foco de tensões e conflitos.
Quando o governo montou os primeiros entraves à criação da CPI, a oposição ameaçou, embora sem grande alarde, que se a CPI continuasse a ser dificultada, desenterraria dos arquivos perpétuos para que fora despachado o processo do assessor desse ex-Chefe da Casa Civil de Lula que extorquia comissões a um empresário de jogo.
Mas a oposição agora elevou o preço e fez mais do que isso. O ministro, grande amigo e homem de confiança do presidente Lula da Silva, foi afastado e substituído pela ministra das Minas e Energia.
O presidente viu-se ainda obrigado a proceder a uma reforma ministerial, que pretende seja não só qualitativa mas quantitativa também, mudando pessoas e reduzindo o número de ministérios, de secretarias-gerais e de cargos de confiança política. Para o executivo, a actual crise resulta, precisamente, das nomeações políticas.
Se isto serve, de alguma forma, de alívio para as consciências no Poder, não esconde, contudo, as verdadeiras causas da situação criada: a prática generalizada de corrupção a todos os níveis e em todos os sectores da vida nacional, com destaque exemplar para as altas figuras do Estado, a falta de espírito de serviço da classe política e a completa ausência de ética governativa. Mas disto não se fala nunca. É tabu.
Apesar da dimensão, este escândalo medonho não passa, ele próprio, por sua vez, da ponta de um outro iceberg ainda maior, que, tudo indica, começa agora a vir à superfície.
A ser assim, o melhor é mantermo-nos sentados e atentos, assistindo às cenas dos próximos capítulos da farsa "o próximo...".