CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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sábado, julho 09, 2005

O(S) TELEGRAMA(S) DO(S) VATICANO(S)

Londres recebeu condolências e manifestações de solidariedade de governos e grupos de cidadãos de muitos países do mundo.
A desgraça une incondicionalmente as pessoas, enquanto a diplomacia cumpre o seu papel de formalizar a unidade das nações.
Vaticano, o mais pequeno e peculiar dos Estados do mundo, foi um dos que fez chegar àquela capital europeia a expressão de pesar que os acontecimentos do passado dia 7 lhe inspiraram. É certo que em Roma está a sede da Igreja Católica Apostólica Romana, e em Londres a da Igreja Anglicana. Porém, para lá das diferenças filosóficas e teológicas, existem as raízes cristãs comuns; existe, quero acreditar, compaixão para com as vítimas do massacre; existe, claro, o protocolo e uma imagem a defender de pregador e guardião da paz.
Seja qual for a hierarquia das razões, humanitárias ou de estado, o facto é que SS Bento XVI enviou em seu nome, através do secretário de estado da Santa Sé, cargo equivalente a ministro dos negócios estrangeiros, cardeal Angelo Sodano, um telegrama dirigido ao cardeal arcebispo de Londres, Murphy O´Connor.
No noticiário da noite de uma cadeia de tv vista no Recife, Brasil, ainda no dia 7, pareceu-me ter ouvido o locutor falar em actos anticristãos, referindo-se ao telegrama papal.
Fiquei na dúvida, pela inconveniência que tal representaria, a ser verdade, e porque o jornalista dissera a expressão de uma forma rápida e atropelada.
Procurei documentar-me sobre o assunto. Encontrei o texto do telegrama reproduzido por várias agências noticiosas, com pequenas diferenças resultantes da tradução. Para só citar algumas, a portuguesa Lusa, a espanhola EFE, a francesa France Press e a brasileira Estado diziam: "O Papa recebeu com dor a notícia dos actos terroristas cometidos em Londres e enquanto deplora estes actos desumanos e anticristãos, manifesta a sua solidariedade e proximidade para com os familiares das vítimas, implorando a Deus o seu conforto".
Actos anticristãos... Então, sempre é verdade. Uma das agências acrescentava que o telegrama fora um balde de água fria nos terroristas e nos muçulmanos. Nos terroristas, não sei. Nos muçulmanos foi com certeza. Contudo, para quem esteja atento, o deslize decorre da lógica de um homem que defende que só há salvação possível no cristianismo.
Um especialista brasileiro que tive oportunidade de ouvir em entrevista à televisão, garantiu que, a essa hora e nas estações de metropolitano onde as explosões se sucederam, os utilizadores seriam, na maior parte, trabalhadores das classes mais pobres, oriundos de África e da Ásia. Portanto, com grande probabilidade, muçulmanos. Assim, os actos anticristãos não diziam respeito a estas pessoas.
Mas a minha surpresa foi ainda maior quando, durante a pesquisa, deparo com uma página de Internet da Rádio Televisão Portuguesa (RTP), canal do Estado, onde se diz que "o texto oficial do telegrama de Bento XVI não inclui, no entanto, a palavra ´anticristãos´ como chegou a ser divulgado" (...). E avança com a seguinte prosa: "O Papa recebeu com profunda dor a notícia dos atentados terroristas no centro de Londres. O Pontífice reza pelos que estão de luto e deplora estes actos de barbárie contra a humanidade".
Bonito! E agora? Qual dos telegramas é o verdadeiro? Ou haverá dois telegramas - um telegrama de um Vaticano retrógrado, falando em actos anticristãos como se, vivendo em plena idade média, condenasse os Infiéis que pelejavam com os Cruzados, e outro telegrama de um Vaticano moderado e mais aberto, mais contemporâneo, condenando um acto de violência gratuita, não contra cristãos, mas sim contra pessoas, seja lá qual for o credo religioso?
A RTP fala em "texto oficial do telegrama de Bento XVI". Será que existe um texto oficial e um texto oficioso, cada um para diferentes públicos?
Quem saberá, poderá e quererá esclarecer isto?
Se SS Bento XVI não expediu o telegrama que foi divulgado pelas agências noticiosas que referi, embora o discurso esteja de acordo com o pensamento do Pontífice, revelado por ele próprio, então é direito e dever do Estado do Vaticano exigir a reposição da verdade, pelos meios que julgar mais adequados.
Se SS Bento XVI não expediu o telegrama que foi divulgado pela RTP, então a RTP, melhor do que ninguém, saberá o que tem de fazer.
Por mim, fico à espera. Não retirando, por enquanto, uma vírgula àquilo que disse, acrescento, ainda, que tenho por princípio tecer considerações sobre factos e não sobre conjecturas. Se os factos são controversos, então, por favor, que me esclareça quem está habilitado a fazê-lo.



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