CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

Locais e ambientes, pessoas e costumes, histórias, curiosidades e acontecimentos.

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domingo, julho 31, 2005

CONCURSO DE MONSTRUOSIDADES

A televisão é uma imensa fonte de contradições na nossa sociedade.
Ligada, pode ser útil ou prejudicial. Desligada, pode igualmente trazer benefício ou inconveniente.
Desligada, pode proporcionar o diálogo entre as pessoas, ou servir de pedestal para contemplação de objectos que nos resgatam o passado. Desligada, pode, mesmo assim, perpetuar o subdesenvolvimento. Nos anos sessenta, os EUA, querendo escoar o
stock excedentário de receptores a preto e branco, venderam apreciável quantidade deles para um atrasado país dos confins da África. Era, então, um espectáculo de meter dó, ver famílias inteiras, miseráveis, sentadas na palhoça em frente de um televisor mudo e escuro, pois as aldeias nem electricidade tinham.
Ligada, pode ser um excelente veículo de informação noticiosa, cultural e pedagógica. Ligada, pode servir, por outro lado, de mau exemplo de costumes, conduzindo à alienação; servir de mau exemplo para assaltos e violência, disseminando o crime; servir de mau exemplo na forma de pensar, modelando o embrutecimento individual ou colectivo.
No Brasil, a principal cadeia de televisão transmite um programa rotulado de recreativo que preenche as tardes de domingo, logo a seguir ao almoço até um pouco antes do jantar. Horário nobre e, portanto, de elevada audiência.
É construído na base do grosseiro e do primário. Puxando ao sentimentalismo, muito fácil de estimular neste povo, ao vedetismo, em particular do apresentador, ele próprio grosso de modos e estreito de ideias, e ao exibicionismo despido das bailarinas que decoram sem graça o ambiente, por aqui se vê que tipo de programa poderá ser: sem outra coisa para ofertar, terá de esbanjar no sensacionalismo rafeiro e imediato.
No entanto, como será fácil de entender e aceitar, num país com elevado índice de analfabetismo como é o Brasil, ele constitui um prato suculento para certa camada da população, arredada de leituras, cansada da semana extenuante, e sem alternativas atraentes para contrapor àquele caixote de lixo animado.
Uma das rubricas traz a biografia de um artista da moda, geralmente um cantor, carregada de comoventes e inesquecíveis episódios. Todos os homenageados são, invariavelmente, tidos como pessoas de excepção. A sua bondade e outras qualidades morais, que deles irradiam como uma aura incandescente, são testemunhadas em inúmeras gravações de familiares e amigos, às vezes, até, de desconhecidos. O distinguido chora, o chefe de família verte uma lágrima a cheirar a cerveja, escondido do resto da família que, de resto, está a chorar também, e o apresentador, babado, sorri com superior complacência. Um quadro néscio.
Outro item do cardápio, merecedor de grande aplauso, é a mostra de alguns vídeos com as piores cenas de sado-masoquismo imagináveis: bebés batendo em obstáculos com estrondo (ampliado pelos efeitos especiais do programa), velhos a estatelarem-se desamparados, noivas a derrubarem a mesa onde pretendem cortar o bolo. Tudo isto é acompanhado por comentários boçais do apresentador, pérolas de estupidez que mais agravam os dramas presenciados.
Enfim, um entretenimento bronco para gente que já o é ou se candidata a isso.
Outro artigo muito apreciado, aquele que motivou esta crónica, consiste na apresentação, por parte de concorrentes seleccionados, de habilidades, umas risíveis, outras deprimentes, para as quais cada autor e demonstrante dispõe de 30 segundos. Confesso que ignoro qual seja o prémio, mas deve ter algum interesse, face à triste e humilhante sujeição a que se submetem.
Vale tudo, rigorosamente tudo. Saltar de pé coxinho equilibrando um prato de feijoada na cabeça sem entornar, aguentar o máximo de marradas dum bode furioso, conseguir cuspir a impensáveis distâncias, produzir ruídos corporais e com eles imitar outros sons, constituem alguns dos artigos que se evadem desta arca de Pandora. Para um observador noutra frequência, salvam-se os trejeitos simiescos que nos remetem para a humildade de reconhecer o tronco comum da nossa origem ancestral.
Em Março morreu um homem, o que em si nada tem de estranho, porque todos os dias e a toda a hora isso acontece.
A certidão de óbito indicava "causa não determinada", o que também ocorre com alguma frequência, pois a Ciência nem sempre dispõe de meios e utensílios para explicar as razões por que um qualquer cidadão se retira intempestivamente deste mundo.
Mas, de repente, alguém se lembrou de que esse homem, na rubrica dos 30 segundos do programa em causa, na fase dos testes que antecedem a gravação, bebera 1 litro de cachaça. Uma garrafa de puríssima aguardente em 30 segundos.
O nordestino, pois de um nordestino se tratava, alcoólatra muito conhecido na sua terra, tinha 43 anos. Por certo queria, para além do prémio, ficar para a história, ao menos dos netos. E ficou. Só que da pior maneira.
Depois da viagem de regresso, algumas centenas de quilómetros, caiu redondo na praça principal que fica a poucos metros de sua casa.
Não é difícil acreditar em coma alcoólico. O que é difícil crer é que ninguém no hospital onde morreu se tenha apercebido do forte cheiro etílico que do homenzinho emanava, com toda a segurança.
Ocultar um crime, doloso ou culposo, é crime também. Por isso, a Justiça mandou exumar o corpo e proceder à respectiva autópsia.
Seja qual for a possibilidade de agora chegar a um resultado concludente, torna-se suspeito, desde já, o procedimento de um dos produtores do programa que mandou apagar a fita onde se encontrava a gravação da façanha.
A emissora diz que está a investigar o caso, e declara que não permitiria que um seu programa veiculasse estímulos ao consumo de álcool. Mentira. Este programa usa e abusa de referências à cachaça nacional.
Numa observação tosca, um dos responsáveis diz que não se sabe se o homem morreu algumas horas depois, se alguns dias depois, ou, mesmo, se morreu. Bem, que morreu, morreu, assim o atesta a certidão de óbito do hospital, apesar de o clínico que a passou não ter conseguido determinar-lhe a causa, malgrado o estado de alcoolização em que a vítima com certeza se encontrava, com a correspondente sintomatologia colateral.
Tudo isto é muito suspeito, tal como é suspeito o silêncio feito à volta do caso. Um familiar próximo do concorrente, depois de ter garantido que era mesmo cachaça que ele bebera, e de se queixar que quiseram fazer mal ao seu parente, descarta a hipótese de processar o programa e a emissora.
A crítica interna, para isso servem os testes prévios à apresentação do programa, quanto ao que pode e não pode, deve e não deve ser apresentado, é da competência de toda uma equipa que desenha e realiza o programa, e da própria emissora que o transmite. Neste caso lamentável, todos conferiram permissão para aquilo que acabou num suicídio, embora se presuma sem intenção. Não vale a pena, portanto, tentar abandonar o barco ou pôr as barbas de molho.
Quanto a nós, telespectadores, enquanto falar mais alto tudo aquilo que possa, de imediato, elevar as audiências, ou seja, os lucros do capital investido, continuaremos alegremente no caminho da reportagem ao vivo de atentados e actos terroristas, incluídos na programação normal, tão bem representada por Woody Allen num dos seus primeiros filmes,
República das Bananas. Isto, claro, comodamente instalados em poltronas ao lado de pipocas e refrigerantes, mais próximo de uma República das Bananas do que alguma vez Allen terá imaginado.



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