Reescrito a partir de um texto de Maio de 1998.
Santiago de Compostela exerce um fascínio à distância. Mesmo que nunca se tenha visto qualquer imagem da cidade, todo o contexto histórico-geográfico em que se integra desperta o desejo de a conhecer e de idealizar no local o ambiente de uma das épocas mais vivas das peregrinações, o que equivale a recuar quase nove séculos.Fui tocado por essa sedução e não perdi uma oportunidade inesperada de fazer a viagem.Assim foi que num Outubro ainda sem Outono me fiz ao caminho de Lisboa a Compostela, armado do que eu chamo os meus utensílios de aventura (entre outras coisas, bússola, mapas, barómetro / termómetro de viagem, meios de registo de imagem e de som, papel e lápis, notas prévias dos locais a visitar e... uma boa dose de curiosidade e atenção).
Embora sejam agora seis e meia da manhã, não há frio no fim da madrugada desta sexta-feira sem nuvens, em Lisboa.
Meia hora depois, o autocarro que fará o percurso por que optei já tem dificuldade em furar para sair da capital.
Os meus companheiros, desconhecidos, bocejam, dormitam e resignam-se a esperar alguns quilómetros pelo cafezinho que ficou no desejo à porta dos cafés e restaurantes fechados.
Decorridos oitenta quilómetros, o céu está limpo e brilhante, sem vestígios da neblina que nos acompanhou até Vila Franca de Xira.
Avista-se Minde e Mira de Aire. Mais à frente o castelo de Ourém, onde o engenho de hoje recria, periodicamente, um ambiente de festas e banquetes medievais.
Na área de Leiria, primeira paragem, antes das nove da manhã o ar já está a 27,5 ºC. O meu barómetro de viagem prevê bom tempo, o que há-de vir a confirmar-se ao longo de toda a jornada; enquanto nesse fim de semana vastas áreas de Portugal foram castigadas com fortes temporais, para nós, da partida à chegada, os ares mostraram-se generosos, com céu quase sempre azul mediterrânico e temperaturas que, por vezes, queimavam como se estivéssemos no pino do mais soalheiro Verão.
Muitos caminhos vão dar a Santiago de Compostela. E, tal como em pleno sec. XII os peregrinos iam construindo e fixando-se em cidades ao longo desses trilhos, também nesta rota de algumas centenas de quilómetros verdejantes, alegres e de grande beleza. Apetece parar aqui e além, admirar a paisagem, entrar nas casas, conhecer as gentes, ouvir as histórias e construir a História dentro de nós.
Temos três horas de estrada quando atravessamos o Mondego (conhecido entre os estudantes de Coimbra pelo "Bazófias"). Do aglomerado citadino destaca-se, erecta, a "cabra", velha torre da Universidade.
Mais tarde é o Douro, recortando o vale em Vila Nova de Gaia sob a ponte da Arrábida. Começam a aparecer as vinhas em latada, características do Minho.
Metemos pela estrada de maior trânsito do país, principalmente no Verão, a estrada nacional nº 13 que faz parte do IC1 Porto – Valença.
Agora é a vez de passarmos o Ave, o rio mais poluído da nossa bacia hidrográfica, flanqueado à esquerda por Vila do Conde e, pouco depois, por Póvoa de Varzim. O chão é ocupado por culturas hortícolas, muitas delas até à berma, mesmo as que é necessário proteger, pela sua sensibilidade, em estufas e estufins. A ocupar grandes extensões, o milho, beneficiário da elevada precipitação, atinge alturas soberbas. O que não é arável suporta pinheiro e eucalipto. Ao longo do caminho, muitas vezes à porta das casas, os agricultores montam pequenos postos de venda dos produtos da horta.
Inflectimos bastante para o litoral e aproximamo-nos das praias da Apúlia, areal onde há alguns anos foi intensa a actividade dos sargaceiros na apanha do sargaço, algas trazidas pelo mar e aproveitadas para adubo.
Atravessamos a corrente do Cávado que desce do Gerês para Esposende e entramos nesta cidade. A marginal mostra-nos o cuidado com a preservação do ambiente: predomina a pequena vivenda, com o seu jardim bem tratado; os prédios são baixos, mesmo o hotel, que não vai além dos três andares; as dunas são cortadas por corredores de madeira, de forma a evitar possíveis danos causados pelas deslocações de pessoas na areia.Penetramos fundo no Alto Minho. Muita casa sólida, construída com o belo granito do norte, contrastando com a imensa paleta verde de jardins, pinhais e vinhas em latada. Vão aparecendo nas bermas placas com a indicação de "Caminho de Santiago", a par de outras a aconselhar prudência, feitas com restos de carros acidentados.
Depois do almoço, pela ponte nova passamos o Lima que vai ao mar em Viana do Castelo. À esquerda, brotando do arvoredo, surge a Basílica de Santa Luzia no alto do monte do mesmo nome, dedicada à mártir de Siracusa (m. 304) cuja memória litúrgica se situa em 13 de Dezembro.
A uva já foi toda apanhada e as folhas que ainda restam nas vides têm uma coloração misturada de castanhos, cinzentos, azulados e sobejos de verde.
Desviamos para uma pequena localidade – Meadela – e ficamos afogueados com a temperatura de canícula: quase 34 graus. Mas vale a pena suportar o calor para visitar a fábrica de artesanato de bordados, que nos recebe com Vinho do Porto. Em três pequenas salas as operárias mostram como se desenham a lápis no pano os motivos que hão-de ser trabalhados, como se emparelha com o tear e como se corta, desbasta o fio e caseia, enchendo o linho de crivo, o bordado típico de Viana, nas cores tradicionais – azul, vermelho e branco. Uma peça original com 4,5 m2 custa 185 contos [925 Euros].
Não são mais acessíveis os artefactos de cerâmica da fábrica de loiça da região que a seguir nos franqueia as portas. Mas, mesmo sem comprar, deleita-nos ver nascer da mão do pintor as travessas, as terrinas ou as caixinhas de cores vivas, alegres e luminosas.
São quatro da tarde e o sol aquece e seca o ar muito para além do que seria de prever nesta época.
Subimos o Monte de Stª Luzia, ali ao lado. A paisagem é extensa e a basílica, construída em meados deste século, vale a pena. Um fotógrafo, dos que antigamente povoavam os jardins citadinos com o seu caixote de tripé, permite-nos recordar amanhã uma fotografia "à la minute" feita agora.Depois de algum descanso e de matar a sede, fazemo-nos de novo à estrada.
Farol de Montedor, praia do Moledo, a primeira praia portuguesa no sentido norte-sul, pinhal de Caparide, Caminha, Vila Nova de Cerveira, assim chamada pela abundância de veados (cervos) que, outrora, a caracterizava. Durante um bom pedaço caminhamos a par do rio Minho. Aqui e além, emergem dos terrenos de cultivo espigueiros de granito.
Mais hora e meia e surge em destaque um aglomerado à distância. É Tui. Entrámos na Galiza. Em sintonia com Espanha, adiantamos os relógios uma hora. Sem fronteiras impostas, a transição de um país para outro passa quase despercebida, já que as manchas de floresta e de culturas agrícolas se continuam de forma idêntica.
Passamos a primeira povoação espanhola – Porriño – uma cidade de pequena envergadura no contexto do país, mas de grande desenvolvimento industrial, situada numa das zonas da Galiza de maior progresso em toda a Espanha.
Avistamos Vigo, de casas espalhadas por vastas áreas das encostas dos montes. Com os seus 300.000 habitantes é, a nível demográfico, a maior cidade da Galiza. Em segundo lugar vem Corunha, de 260.000 pessoas. A capital, Pontevedra, é bastante mais pequena em superfície e população do que qualquer das duas anteriores.
Entramos em Vigo pela parte sul e é mais nítida a noção do tamanho desta cidade alcantilada. Atravessamos o centro da cidade onde começa o troço final que nos conduzirá a Compostela. Há muito movimento. Nas paragens dos semáforos, pedintes acercam-se dos carros. Descemos a avenida principal, a Grã-Via, completamente atulhada. No termo desta avenida abre-se a auto-estrada. Dentro do autocarro, isolado do linguarejar do exterior, não se nota diferença em relação a Portugal: o mesmo trânsito, as mesmas buzinas, os mesmos engarrafamentos, as mesmas setas no pavimento, as mesmas grelhas amarelas nos cruzamentos. As caras são parecidas. As pessoas são parecidas. Na rua confirmámos que o Galego é o dialecto espanhol mais parecido com o Português.
Transpomos 1500 metros de paisagem admirável pela ponte da ria de Vigo. Daí a pouco, em Pontevedra, salta aos olhos a curiosidade de se encontrar a marina plantada no centro da capital.
Já perfizemos 550 quilómetros. É um fim de tarde quente, 25 graus. Às nove e meia, com temperatura ainda mais elevada, chegamos a Santiago de Compostela.
Arrumamos as malas num hotel perto da cidade velha. No quarto sem ar condicionado pairam os restos de um dia que deve ter sido de braseiro.
Apetece um passeio nocturno. Na rua, às dez da noite, em Outubro, ainda estão 26 graus...
A pé, pequenos grupos espalham-se pela zona da Catedral. Na rua dos bares e dos restaurantes é uma correnteza de gente. Numa artéria vedada ao trânsito toma-se chá – tisanas de cidreira, tília, flor de laranjeira e outras semelhantes – bebe-se um refresco, cavaqueia-se em esplanadas agradáveis. Trupes de jovens saltimbancos / malabaristas dão uma animação diferente e concorrem com as tunas de música típica. Passa uma ou outra figura que chama mais a atenção mas já não espanta ninguém. Apesar de ser sexta-feira, pouco depois das onze os cafés começam a fechar.
Regresso ao hotel.
Declarada pela UNESCO Património da Humanidade, Santiago de Compostela, assenta numa colina cercada pelo rio Sar e pelo seu afluente Sarela. A sua origem provém de uma lenda: Tiago, um pescador do lago Tiberíades irmão de João Evangelista, teria escolhido a Hispânia para o trabalho de evangelização. Perante algum fracasso no aliciamento de discípulos, regressaria a Jerusalém. Aí, Herodes, no ano de 44, depois de ordenar que o supliciassem e decapitassem, proibiu que fosse enterrado. Então, de noite, alguns Cristãos recolheram o corpo e transportaram-no até à orla marítima onde encontraram um barco sem tripulação mas pronto a zarpar; depositaram-no num túmulo de mármore e um anjo conduziu-o através do mar até às Astúrias. O sarcófago chegou junto da capital da Galiza romana e aí permaneceu ignorado durante largas centenas de anos, num campo que fora um antigo cemitério. No princípio do sec. IX, um eremita descobriu o local do túmulo, orientado por uma luz sobrenatural semelhante à estrela dos Reis Magos. A partir daí, o local começou a ser referenciado nos textos medievais como Campus Stellae (Campo da Estrela), convertendo-se, progressivamente, em Compostela. O bispo Teodomiro reconhece oficialmente que o túmulo é o do Apóstolo e sobre ele manda edificar um templo. Começam as peregrinações e os traçados dos Caminhos de Santiago, de que o mais importante é o Caminho Francês (de França a Pamplona, Burgos, Leão e Compostela). Nos fins do sec. IX, Afonso III constrói a antiga basílica mas, em 997, os Muçulmanos comandados por Almançor destroem tudo, poupando, no entanto, o túmulo de Santiago. A cidade é reconstruída e defendida por muralhas. Em 1075 o bispo Diego Peláez inicia as obras da catedral que a administração do bispo Diego Gelmírez há-de continuar.
As peregrinações, iniciadas com a descoberta do túmulo e incentivadas pela necessidade de consolidar mais a sul as fronteiras com os Infiéis, atingem o auge nos séculos XI e XII, a par do expoente da civilização cristã medieval e da progressiva conquista da Península. Para além de rotas de peregrinos, os caminhos constituíram vias de infiltração de novos ambientes culturais e de intercâmbio económico, científico, artístico e literário, com particular registo para o Românico, a lírica provençal, as lendas de gestas e a música.
Na primeira metade do sec. XII, um clérigo francês de nome Picaud elaborou um conjunto de cinco volumes que vieram a ser conhecidos por Códice Calixtino (conservados na catedral de Compostela), onde narra com detalhe a vida e os feitos mais relevantes do Santo, descreve as rotas que, de França e do norte de Espanha, convergem para Santiago e fornece uma série de indicações práticas para os peregrinos. Para estes, um roupão curto, uma capa e um chapéu protector da chuva e do sol eram a indumentária de base. Um bastão facilitava a caminhada e defendia contra animais ferozes e ladrões. Uma cabaça, geralmente presa ao bordão, servia de cantil. A bolsa de pele de veado, obrigatoriamente aberta em sinal de singeleza e sinceridade, bem como a concha de vieira que dava acesso às hospedarias, identificavam a condição de peregrino.
Apesar do ambiente, nem todas as romagens tinham motivações religiosas. Às vezes constituíam um castigo por algum crime cometido ou insulto considerado grave. Outras, não iam além de um negócio, em que um penitente enviava a Compostela um pobre a quem pagava as despesas em troca de usufruir de uma parte da indulgência concedida. Habitualmente, no fim da viagem era perdoado um terço dos pecados. Se a chegada coincidia com um Domingo em que se celebravam as festividades do Santo, o perdão era total, desde que houvesse pleno arrependimento. Noutras ocasiões era possível abater de 40 a 200 dias de Purgatório.
Quando avistavam Compostela, os peregrinos lavavam-se num rio para se libertarem das impurezas do corpo e do espírito. Depois, durante toda a noite, velavam na Catedral ao som de cânticos acompanhados por cítaras, timbales, trompetes, violas, saltérios e outros instrumentos daquele tempo. Antes da primeira missa do dia, ao amanhecer, um clérigo que dominava várias línguas repetia, para cada uma delas, o ritual das oferendas, distinguindo rigorosamente as que se destinavam ao Santo, das que se juntariam ao cofre do templo.
Santiago é hoje um importante centro administrativo, arquitectónico, religioso, comercial e universitário com mais de 100 000 habitantes. Em 1982 tornou-se capital da Comunidade Autónoma da Galiza, sede da Xunta (Governo Autónomo), do Parlamento e de outros órgãos do governo regional. Todo este desenvolvimento se processou em torno da Catedral.
Enquadrada por quatro praças — Azabachería, Quintana, Platerías e Obradoiro — aquela magnífica peça de arquitectura religiosa esmaga-nos pela imponência e atrai-nos pela diversidade resultante da conjugação de estilos separados no tempo de alguns séculos, correspondendo a períodos distintos de reconstrução ou ampliação.
Na Praça de Azabachería (ou Arbachería), onde os mercadores esperavam os peregrinos com carregamentos de bolsas de pele de veado, cabaças e vieiras, ergue-se o mosteiro beneditino de San Martín Pinario. Ocupando uma área de 20 000 m2 à volta de três grandes claustros, foi construído entre os secs. XVII e XVIII sobre um mosteiro do ano de 912. Nesta época já os Beneditinos detinham grande poder, chegando, posteriormente, a competir com a Catedral e com a própria Inquisição.
Um pequeno jardim, com um cruzeiro onde se destaca o Apóstolo, separa San Fiz de Solovio, o primeiro templo que se construiu na cidade, da Faculdade de Geografia e História. A fachada da catedral que dá para esta praça é uma composição do sec. XVIII. Encostada a ela, e da mesma época, a frontaria do Palácio do Arcebispado que conserva quase por completo, atrás das suas paredes barrocas, o palácio construído pelo bispo Gelmírez, cerca de 1120.
Na Praça da Quintana destacam-se a Torre do Relógio, também conhecida por Torre da Trinidad, e o Pórtico Real. A torre, acabada em fins do sec. XIV e transformada em Barroco quatrocentos anos depois, é famosa pelo seu sino — La Berenguela. Dava acesso directo à Corticela, a paróquia dos peregrinos, originalmente uma construção independente da Catedral, hoje ligada ao interior do templo.
Para a direita, uma primeira porta dá passagem à sala onde se guardam os oito gigantones que simbolizavam os peregrinos de todas as nacionalidades. Uma outra, de grades, ladeada por figuras românicas, é a Porta Santa ou Porta dos Perdões, apenas aberta nos anos santos de Compostela. Para além de Roma e de Jerusalém, só a Santiago de Compostela foi atribuído Ano Santo, celebrado quando o dia 25 de Julho coincide com um Domingo; o último foi em 1999.
O espaço amplo da praça, outrora ocupado pelo cemitério a que se fez referência mais atrás, quando falámos da fundação de Compostela, é dividido por uma escadaria em Quintana dos Vivos, a parte superior, e Quintana dos Mortos, a inferior. Na primeira pode ver-se uma curiosa construção do fim do sec. XVII, barroca, decorada com cachos — a Casa da Parra. Do outro lado da praça destaca-se a fachada do Mosteiro dos Beneditinos de San Pelayo de Antealtares, também conhecido por Convento de São Paio. A igreja, fundada em 1707, possui uma ara romana usada como altar pelos primeiros discípulos de Tiago. Entre as duas janelas que encimam as entradas principais está colocada uma figura representando o Apóstolo.
No centro da Praça das Platerías ergue-se a Fonte dos Cavalos, de J. Pernas, esculpida em 1825, barroca com traço italiano. Foi a inspiradora de Lorca para o poema "Danza da Lúa en Santiago". Em frente, a Casa do Cabido, da autoria de Clemente Sarela, data do sec XVIII. Uma alta torre do sec. XVII (Domingo de Andrade) completa o cenário.
A praça deve o nome às inúmeras lojas de prateadores que se abrigavam debaixo dos arcos da planta baixa do claustro da catedral, de muros exteriores renascentistas. Nele se albergou o grémio destes artífices. A fachada visível deste local, Fachada do Cruzeiro, exibe um exemplo excelente de traçado românico — a Porta das Platerías — única porta deste estilo que a catedral ainda conserva. As imagens do rei David, da criação de Adão, e da mulher adúltera (condenada pelo marido a beijar todos os dias a caveira do amante) são consideradas das melhores peças de escultura da Idade Média.Vista da Praça de Obradoiro, a catedral apresenta uma fachada barroca, um retábulo enorme ladeado por duas torres, concebido em 1738 por Casas e Novoa. É o ex-libris da cidade. Em frente fica o frontispício mais antigo da praça, o do Hospital dos Reis Católicos, fundado por Fernando e Isabel em 1492, para acolher peregrinos e enfermos. O equilíbrio entre a simplicidade das linhas horizontais e a fachada, de bandas verticais, foi conseguido por Enrique Egas, mestre da arte do plateresco, uma combinação de características góticas e renascentistas de forma tão elaborada que mais parece trabalho metálico do que escultura em pedra. A portada mistura motivos clássicos com pináculos e dosseletes, coberturas de pedra que, à laia de dossel, protegem as figuras dos santos. Estes abrigam-se em nichos, acompanhados dos símbolos que lhes são atribuídos pela tradição cristã. Os balcões, acrescentados em 1678, são, juntamente com as gárgulas da cornija, os únicos elementos a interromper a sobriedade da fachada.
O hospital é hoje hotel de luxo, integrado na rede de pousadas do Turismo Espanhol.No lado oposto, o Colégio de S. Jerónimo serve hoje como sede do Reitorado. Data do sec XVII, a fachada é do românico tardio (fins do sec. XV) e a portada pertenceu ao velho hospital de peregrinos da Praça da Imaculada.
A fechar um dos lados maiores da Praça de Obradoiro, frente à catedral, estende-se o Palácio Rajoy, a construção mais moderna do recinto, iniciada em 1766 pelo arcebispo Bartolomé de Raxoi y Losada. Na face neoclássica o frontão, esculpido em mármore branco, retrata a batalha de Clavijo e é encimado pela figura de Santiago Mata-Mouros, lembrando a sua aparição nessa batalha. Outrora Consistório (cárceres e Seminário de Confessores), aí funciona hoje a Câmara de Santiago e a Presidência da Junta da Galiza (Governo Autónomo).
O acesso à catedral, que substitui hoje uma pequena basílica de três naves dos finais do sec. IX, faz-se pelo Pórtico da Glória (Praça de Obradoiro), obra prima da arte medieval assinada no sec. XII por mestre Mateo.
Formado por três arcos onde se distribuem as figuras de Cristo rodeado pelos quatro evangelistas, oito anjos, os 24 velhos do Apocalipse, a árvore de David, quatro profetas e mais personagens e cenas do Antigo Testamento e do Julgamento Final, o recinto constitui um elucidário de teologia cristã.
Dos quatro profetas postados numa das colunas, o que sorri é Daniel. Segundo a interpretação popular, o seu sorriso acompanha os olhos na direcção dos seios da rainha Ester, noutra coluna próxima. Perante esta versão menos piedosa, as autoridades religiosas ordenaram o corte das curvas do peito da estátua. Em retaliação, o povo começou a fabricar queijos com o feitio de mama, a que pôs o nome de queijos tetilla (maminha) e que continuam a vender-se na Compostela de hoje.
Ainda no Pórtico, uma outra peça que atrai as atenções dos forasteiros é a coluna do Santo dos Croques (carolos). Do lado da imagem, que se diz ser um auto-retrato de mestre Mateo, o viajante bate com a cabeça três vezes (três caroladas) enquanto formula cinco desejos, três dos quais serão satisfeitos; do lado oposto, bate também três vezes com a cabeça a pedir mais inteligência. E não deixa de ser curioso ver a sequência de cabeçadas despidas de preconceitos com que os visitantes veneram o santo...
Para além das capelas e dos altares que contornam as naves do templo, destacam-se, no conjunto arquitectónico, artístico, histórico e religioso, alguns elementos que devem merecer as atenções da visita. Um deles é a Sala do Capítulo. Outros são o claustro, de estilo gótico tardio, e o Museu, com o tesouro da Catedral, inicialmente arqueológico por ter acumulado as descobertas feitas no subsolo (túmulos, relevos e estátuas dos séculos XI ao XVI), em cuja biblioteca se encontram manuscritos e livros impressos até 1500.
Nesta biblioteca guarda-se, também, o Botafumeiro, turíbulo de grandes dimensões cujo serviço, naquela época, não era apenas de carácter religioso; a grande concentração de peregrinos no recinto fechado da basílica, depois de terem calcorreado estradas e caminhos, campos e lameiros, ao longo de meses, libertava odores que, por certo, não seriam dos mais agradáveis; então, o incenso queimado no bota fumeiro servia de desodorizante de ambiente; hoje é usado em dias de festa especial, suspenso de uma trama por onde se escapa uma corda com vários nós que servem de apoio aos homens que o fazem balançar em autênticas competições de grupos, conseguindo, por vezes, levá-lo quase até ao tecto. Na montra de uma casa comercial da parte velha da cidade é possível ver uma réplica em tamanho natural (metro e meio) deste incensório, com uma particularidade: o da basílica é de latão e a cópia da loja é de prata. Por cima da trama de suspensão do incensório, na cúpula do cruzamento das naves, pode ver-se desenhado o "olho de Deus" no meio do triângulo inscrito no círculo. Este e outros símbolos com conotação semelhante, abundantes no templo, são hoje usados por associações esotéricas.
O altar-mor, outro dos elementos relevantes, é dominado pela figura de Santiago num trono dourado. Apesar da pequena dimensão deste trono, comparado com o corpo da basílica, o seu recorte iluminado sobressai da semi-obscuridade da atmosfera envolvente na capela-mor.
Por detrás da imagem, um corredor circular permite o acesso aos fiéis para que os que quiserem ser felizes possam cumprir o ritual de abraçar as costas do Santo. Sentado perto da imagem, na penumbra, um padre vestido de roxo quase passa despercebido e assusta-nos quando damos de caras com ele, a abanar-se paulatinamente com as pagelas que tem para vender.
Por fim descemos à cripta, os subterrâneos da basílica, onde se encontra o fulcro da devoção — um sarcófago de prata com os restos que os crentes veneram como sendo os do Apóstolo.
Aqui separam-se a Fé e a Ciência: a primeira apresenta o relicário como o repositório das relíquias de Santiago; a outra confirma que o conteúdo pertence à espécie humana, mas reconhece que não tem possibilidades de o identificar.
Saímos da basílica.
Cá fora, a arquitectura do ambiente mantém o clima medieval.
Sobra tempo para uma volta pelas casas de recordações onde encontramos de quase tudo para todos os gostos. Escolho um bordão de peregrino com as respectivas cabaça e vieira penduradas. Mais além selecciono uma estatueta da enorme colecção de bruxas que todas as casas têm para venda – bruxas do dinheiro, bruxas da sorte, bruxas da felicidade, bruxas do amor.
A bruxa é o símbolo da Galiza. Dizem os habitantes que a Galiza é terra de bruxas. Não sei se vi alguma, disfarçada, mas senti o feitiço da terra, enquanto por aqui andei, e o caminho pareceu-me diferente, ao longo dos 650 quilómetros de regresso a casa.