CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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segunda-feira, julho 25, 2005

QUADRO DE HONRA, PRECISA-SE

Tudo neste mundo tem um fim. As baterias dos automóveis, porque fazem parte desse mundo, estão incluídas nesse tudo. Também há um dia em que, exaustas, se recusam irreversivelmente a trabalhar.
Dantes era possível prolongar com alguns cuidados a vida de uma bateria. Um pouco de massa nos terminais, verificação periódica do nível de água, enfim, coisas simples que eram retribuídas como uma eficaz prestação de serviço e maior longevidade.
No tempo actual do descartável, a bateria é orgulhosamente blindada e recusa cuidados. De interior inacessível, vá lá saber-se quando está perto do esgotamento. Um dia, desligada depois de uma viagem sem suspeitas, vai permanecer inerte para todo o sempre. Por mais voltas que se dê à chave de ignição, o silêncio da morte é a única resposta que se obtém.
Como não calha só aos outros, aconteceu comigo, desconhecendo eu do que se tratava.Depois de uma demorada compra de emergência de que tinha sido incumbido, dirigi-me ao parque de estacionamento onde deixara o carro, acomodei-me ao volante e agradeci mentalmente a bênção de poder usufruir um privilégio daqueles para meu uso pessoal.
Dei à chave. Como que por castigo pela vaidadezinha de posse, o motor manteve-se calado. Não precisei de muito para perceber de que dali não sairia pelos meus próprios meios. Sem disfarçada raiva, disse mal desse amontoado de lataria que tanto aborrecimento nos dá.
Passado o choque inicial, lembrei-me de que o seguro de acidentes contemplava assistência em caso de avaria na estrada, incluindo reboque.
O telefone de bolso estava comigo. À cautela não agradeci nada mentalmente.
Liguei para o seguro. Ao fim de uma angustiante eternidade, uma atendente com voz de quem boceja ouviu o meu pedido de ajuda. Falava da sede da companhia, a 3.000 quilómetros de distância. Por certo nunca tinha visitado a cidade em que eu vivia. Talvez até ignorasse a sua existência. Perguntou, anotou e pediu-me para esperar de 20 a 40 minutos pela chegada do pronto-socorro.
Entretanto escurecia. O estacionamento situava-se numa zona mal iluminada do Recife, propícia a assaltos. Aliás, a partir de determinada hora, é difícil, se não impossível, encontrar no Recife um lugar que não seja propício a assaltos. Liguei de novo, expliquei a insegurança do local e pedi que se apressassem. Aconselhou-me paciência sem nada me dar em troca.
Ao longe eu via a estrada de acesso, iluminada por dezenas de luzes em marcha lenta. Trânsito embaraçado. Noite de sexta-feira. Por certo, o reboque não chegaria tão cedo.
Encolhi-me no banco oposto ao do motorista, chave no bolso, vidros fechados apesar da temperatura elevada, portas trancadas, em silêncio, tentando confundir-me com o vazio do interior.
Passou meia hora. Espreitei a estrada. Oferecia a mesma triste visão de sonolenta cadência, agora mais compacta de luzes. Tentei descortinar algum farol rotativo que anunciasse o meu reboque. Nada.Decorreu mais algum tempo. Já custava respirar dentro do carro. Lá fora, apesar do cair da noite, a temperatura deveria estar perto dos 30 graus para uma humidade de 80%.
De súbito senti duas pancadas no vidro. Olhei. De pé, à minha porta, um homem de capacete integral e macacão de motoqueiro fazia-me sinais que não entendi. Assalto. Chegara a minha vez.
Abri devagar a porta e saí sem gestos bruscos. Reparei então no peito do macacão do homem: reboques não sei quê. Quase desmaiei.
Não vi reboque algum. Que história era aquela? Como iria eu sair dali? O homem tirou o capacete e deixou cair uma cabeleira jovem que afastou dos olhos.
- Qual o problema, perguntou amável.
Expliquei o que se tinha passado, ou melhor, o que não se tinha passado e era suposto acontecer quando dei à chave de ignição.
Experimentou ele próprio. Abriu a capota do motor. Retirou a minha bateria e substituiu-a por uma nova que trazia no avantajado malote de uma motorizada que arrumara ali perto sem eu ter dado por isso. Diagnosticou. Bateria, claro. Ao saber que a bateria estava quase com quatro anos, sorriu benevolente: muito fizera ela.
Rápido, numa curta ligação telefónica deu algumas referências técnicas e do local. Dez minutos depois chegava outra motorizada, de outra empresa, conduzida por outro jovem de macacão com um dístico no peito: baterias não sei quantas.
A troca de palavras foi rápida, tão rápida quanto a troca das baterias. Com gestos seguros de bom profissional, o segundo rapaz calibrou a abertura e fecho das portas e o comando dos vidros. Verificou, por fim, o resto dos instrumentos eléctricos, do painel aos faróis e farolins.
Assinei os papéis do seguro, paguei a bateria em cujo preço estava incluído o transporte e o serviço, guardei o recibo e a garantia, e vi-os afastarem-se rapidamente para atenderem outros clientes. A bateria velha ia com eles para ser entregue num depósito de reciclagem de materiais.
Uma tal limpeza de procedimentos quase me levou a esquecer em que país estava. Havia, afinal, coisas que funcionavam, e eu tive a sorte de topar no meu caminho com uma dessas coisas quando mais precisava.
Dois meses depois, num sinal vermelho o carro deu dois esticões e o motor apagou-se. Eu já tinha notado no painel uma luz vermelha em forma de bateria permanentemente acesa. Andava a protelar a ida à oficina, quase tão dolorosa para mim como a ida ao dentista para outras pessoas. Foi ali mesmo, no meio do trânsito de uma movimentada avenida do mesmo Recife, a hora matutina de ponta.
Ao som da buzina de motoristas mais impacientes que eram obrigados a parar atrás de mim, consegui telefonar para o seguro explicando a situação. De imediato, tentando ganhar tempo, telefonei para a casa das baterias. Chovia. As buzinas massacravam-me.
Dez minutos depois chegaram os dois mecânicos, quase em simultâneo. O que se passou foi rápido e sem história muito diferente da anterior. Fizeram o teste e concluíram que o alternador estava queimado. Enquanto um deles seguia à sua vida, o das baterias substituiu a minha, já descarregada, por uma nova, e escoltou-me até à oficina aonde eu já deveria ter ido há mais tempo. Debaixo de chuva, sem descolar.
Na oficina retomou a bateria que era sua e explicou ao mecânico qual o problema. Depois, com uma saudação amistosa desapareceu. Nada paguei. O serviço fazia parte da garantia, embora o estrago não tivesse sido causado pela bateria nova.
Aqui está um exemplo do que é prestar bom serviço quando se quer bem servir o público.
Antes de sair de Portugal, ouvi inúmeras queixas de patrícios que descreviam a baixa qualidade da prestação dos profissionais brasileiros, a quem imputavam, generalizando, a falta de espírito de compromisso e assistência. Eu próprio tive a infeliz oportunidade de comprovar isso vezes sem conta, quer ao nível de empresas privadas, quer ao nível de instituições públicas.
Perante episódios como os que acabei de relatar, acho que seria interessante haver um quadro de honra no Brasil, bem divulgado, para afixar estes casos. São casos pequeninos, sem dúvida, mas é com pequenas parcelas que se chega a grandes resultados.
Os brasileiros têm de saber que se pode construir um país diferente, melhor para todos. Os brasileiros precisam de saber que alguns brasileiros já constroem esse Brasil diferente.
Apesar dos fracos exemplos mostrados na praça pública pelos que têm a seu cargo a administração do país, aos brasileiros deve ser dada a oportunidade de restaurar a auto-estima, a confiança em si próprios e a dignidade que ainda lhes resta. Essa oportunidade alimenta-se de coisas aparentemente insignificantes como a do reboque virtual materializado em duas simples motorizadas. Ou, para ser mais rigoroso e justo, na pessoa de dois modestos mecânicos que trabalham à chuva com brio e competência.



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