Depois da tempestade a bonança. A bonança e as histórias que há sempre para contar por aqueles que, de forma mais exposta ou mais recatada, viveram as tormentas mas resistiram.
As chuvas desenfreadas amainaram, depois de terem fustigado todo o estado de Pernambuco durante semanas. Na capital, Recife, o céu mostrou clemência. Apesar de ainda se cobrir de nuvens inchadas de vapor, carregadas de cinzento, foi-se vestindo de nesgas de azul e, lá do alto, lançou sorrisos, ainda que distantes, quentes.
Também o sorriso dos recifenses como que renasceu.
As histórias ligeiras que agora contam servem para exorcizar fantasmas do que já passou, ou apregoar valentias que não foram senão medos estilhaçados.
Outras dessas histórias, porém, servem para mais do que isso, como é o caso desta, bem patusca, que um vizinho me contou numa conversa a propósito de uma infiltração de água no prédio. Infiltração, chuva, tempestades, e a história correu.
Aconteceu num desses medonhos fins de tarde de Junho, noite negra antecipada, em que as ruas tinham caudal de riacho avantajado e as praças mais pareciam lagos. Os automóveis progrediam a uma velocidade próxima do nada e abriam sulcos ondulados semelhantes a lanchas a motor. O meu vizinho chegou a casa mais tarde.
Dirigiu-se em primeiro lugar ao quarto do filho para saber dos estudos, das notas que tardavam, daquela negativa que teimava, conferir mais uma esfoladela nova no joelho cuja origem era sempre um mistério. Para seu espanto, quase susto, e forte preocupação, o menino de dez anos tremia debaixo de um lençol.
Colocou-lhe a mão na testa à procura de febre. O menino estava fresco, arrefecido, mesmo, por gotas de suor gelado que brotavam desde a raiz do cabelo e escorriam pelas têmporas.
O pai, inquieto, perguntou o que ele tinha, o que lhe doía, se comera alguma coisa estragada.
- Tenho medo...
O menino tremia de medo.
- Medo de quê, meu filho?- Do furacão.- Furacão? – repetiu o pai incrédulo.
- Sim. Aquela coisa que às vezes destrói casas na América... Vem aí um...
- Que história é essa, meu filho?
- A vovó sabe... Ela conta-te...
Viúvo recente, o meu vizinho vive com a mãe e o único filho. Àquela hora, a faxineira que assegura tarefas domésticas três vezes por semana já tinha saído.
Não vendo a mãe na sala nem na cozinha, bateu à porta do quarto onde, muitas vezes, a encontrava a rever fotografias antigas de família.
Sem resposta, abriu a porta de mansinho e viu a senhora rezando o terço com fervor aos pés de uma imagem do sagrado coração de Maria, por quem tinha particular devoção.Esperou que a mãe se levantasse. Reparou, então, que nos olhos dela se estampava o mesmo quase terror de que se apercebera nos olhos do filho.
À medida que o meu vizinho ia contando a história, resgatava para o presente a angústia que sentira na situação.
- Que se passa, mãe?
- Meu filho... Vem aí uma tremenda tempestade... Muitas chuvas... Vai ser um desastre... – e falava baixo, quase em surdina, como se tivesse medo de despertar a fúria da natureza.
- Mãe...
- Eu ouvi! Deu agora na televisão! Uma grande tempestade provocada por um furacão que está perto da costa e se aproxima.
Espantado por nada ter escutado acerca do assunto, nem no escritório nem na rua, e alarmado já pela perturbação da mãe e do filho, resolveu telefonar para a estação de TV a indagar.
Depois de ter passado por um crivo de seis atendentes, conseguiu chegar ao departamento de noticiário. Perguntou se no último jornal teriam falado num tornado ou num furacão que estaria a aproximar-se do Recife. A própria jornalista que apresentara o boletim o esclareceu. Não se falara em tornado ou furacão, mas sim em ciclone, um fenómeno meteorológico comum.
- Mãe: a senhora ouviu falar em furacão ou em ciclone?
- Ora, ora... Não é a mesma coisa, meu filho? Ciclone, furacão, tornado, vem a dar no mesmo. Ai, valha-me Deus... Até deixei queimar o arroz...
O meu vizinho, pouco familiarizado com a terminologia dos estados atmosféricos, ficou apreensivo. Realmente... furacão, tornado, ciclone...
Discou outro número, desta vez para a Meteorologia. O especialista de serviço, depois de ouvir a história, cheio de paciência e percebendo a sua aflição, explicou-lhe direitinho o que era isso de ciclone.
Não se tratava daquele espectro destruidor que as pessoas temiam ao ver nos noticiários do estrangeiro, mas sim de um termo técnico que se referia a um centro de baixas pressões atmosféricas para onde o ar se dirigia, proveniente de centros de altas pressões. Era isso que originava o vento e a ocorrência de chuvas, que poderiam ser fortes. Geralmente esses centros deslocavam-se pelo planeta, e a sua aproximação ou afastamento determinava, em conjunto com outras condições, o estado do tempo. Naquele caso concreto, o ciclone aproximava-se da costa e isso provocaria chuvas nas próximas horas, mas sem lugar para alarmes.
Respirando fundo de alívio, o meu vizinho levou a mãe ao quarto da criança, e contou a ambos, com todos os pormenores, a conversa com o meteorologista.
A boa da senhora ia dizendo "não sei, não sei", desconfiada, e, à cautela, foi rezar mais umas preces à santinha. Quanto ao menino, acalmou, mas custou a adormecer nessa noite.
Fiquei a pensar na história do meu vizinho e na responsabilidade dos canais de informação pela disseminação de confusões através das notícias que difundem.
Principalmente a televisão e a rádio devem ter um cuidado muito especial naquilo que dizem, precisamente porque dizem, não escrevem. Quando lemos podemos voltar atrás, corrigir a leitura, reflectir sobre o que está escrito, esclarecer com alguém. O locutor, porém, fala, e o que disse já passou, sem possibilidade de repetição.
Julgando que um conceito é do conhecimento do público e por ele correctamente interpretado, o jornalista corre o risco de levar a sua mensagem de forma inexacta ao auditório ou aos leitores, criando distúrbios nos indivíduos, nas famílias, nos grupos, por vezes de consequências irremediáveis.
A linguagem jornalística tem de ser adequada aos destinatários. Por outro lado, o jornal, a rádio, a televisão não são púlpitos onde um qualquer iluminado verte palavras difíceis e incompreensíveis, sem qualquer utilidade em termos de informação.
Afinal, o jornalista só existe em função de um público, e só servindo esse público desempenha cabalmente o seu papel.
Ciclone, tornado, furacão podem, na cabeça de algumas pessoas, ser identificados com o mesmo fenómeno. Compete ao jornalista esclarecer, destrinçar, estabelecer a diferença. Ou seja, tranquilizar, informando, ao invés de alarmar, confundindo.