Num intervalo recente de poucos dias, faleceram três destacadas figuras da vida portuguesa.
Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal, políticos, e Eugénio de Andrade, poeta, passaram a fazer parte da memória perpétua da História, duma História que não se restringe ao nosso rectângulo ibérico.
O general Vasco Gonçalves começou a actividade política em 1973, ainda coronel de engenharia, na reunião alargada da comissão coordenadora do Movimento dos Capitães de Abril, grupo militar que em Abril de 1974, no auge da guerra colonial portuguesa, viria a depor o regime ditatorial de Salazar. A partir daí aderiu de forma explícita ao movimento, integrando, após o golpe militar vitorioso, a comissão de redacção do Programa do Movimento das Forças Armadas. Foi primeiro-ministro nos II, III, IV e V governos provisórios, em época particularmente difícil na instável vida política, económica e social do país. Mentor da reforma agrária e da nacionalização dos principais blocos económicos, como banca, seguros e siderurgia, as ligações inequívocas ao Partido Comunista Português causaram-lhe dissabores que se intensificaram para o fim da carreira política, fim precipitado em Novembro de 1975, após a derrota de uma intentona de extrema-esquerda que quase colocou o país em guerra civil.
Álvaro Cunhal, homem de um longo passado de luta contra o salazarismo, apoiante incondicional de Vasco Gonçalves, cedo se alistou nas fileiras do Partido Comunista Português (PCP), e com 23 anos, em 1936, já pertencia ao comité central. Daí que o seu percurso de vida tenha sido pontuado de clandestinidade, desde 1935, prisões políticas, fugas, algumas espectaculares, e exílio até à vitória dos Capitães de Abril. O exame de fim de curso de Direito, em 1940, foi realizado sob escolta policial. Após o golpe militar de 1974 que abriu o caminho para a implantação de um regime civil democrático, exerceu como ministro sem pasta nos II, III e IV governos provisórios. De 1961 a 1992 ocupou o cargo de secretário-geral do PCP, mantendo a ortodoxia do partido com mão de ferro e o apoio da velha guarda que o rodeava.
Eugénio de Andrade é um dos mais lidos poetas portugueses contemporâneos, e dos mais traduzidos também. Abandonando um curso de Filosofia para se dedicar à escrita, em particular de poesia, recebeu ao longo da vida os louros resultantes da opção que tomou. Entre numerosos prémios literários, nacionais e internacionais, contam-se o de Poesia Jean Malrieu, em 1984, o de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, em 1988, e o Prémio Europeu de Poesia, em 1996. Mas o galardão atribuído em 2001, o Prémio Camões, foi, sem dúvida, aquele que mais gratificou o poeta, quer pelo prestígio, quer pela conotação, como então afirmou, com a figura de Camões.
Notáveis, cada um no seu campo, à sua maneira e pelo seu caminho peculiar, todos estes homens procuraram dar o melhor do seu querer, do seu saber e do seu sentir ao seu país. Todos quiseram torná-lo melhor, todos aspiraram a que esse país fosse um mundo mais justo, mais digno, mais humano.
Por isso, senti vergonha quando numa página da Internet que se diz ponto de encontro de Portugueses no mundo (quais portugueses, que portugueses?), li as considerações que alguns concidadãos meus teciam em relação às duas primeiras figuras. Bem vistas as coisas, de considerações não se tratava. Antes, eram torpezas, vilezas, baixezas.
Não está em causa a concordância ou a discordância quanto aos princípios que nortearam as suas vidas, nem aquilo por que se bateram. Ninguém tem de concordar, ou sequer acatar; basta respeitar e, se o entender, criticar com coerência e contrapor com outras doutrinas e outras práticas. O que nauseia é a expressão do regozijo perverso, doentio, com que os autores dos dichotes saudaram as suas mortes.
Enquanto vivas, as pessoas merecem ser ouvidas, o que não significa seguidas. Os meios democráticos ao nosso alcance hoje permitem discordar de antagonistas, e fornecem instrumentos para procurar derrotar os seus projectos e fazer vingar os nossos. É a discordância civilizada, cívica, cidadã.
Depois de mortas, o mínimo exigível é que a narrativa dos factos que tiveram a ver com as suas vidas seja objectiva, sem tortuosidades, sem insultos, sem calúnias, sem infâmias, sem desmandos verbais.
O nosso poeta não foi sujeito a esse tipo de enxovalhos. Não havia como inventar o quê.
A política, a prática política, dá motivo à mesquinhez de opiniões, comentários, observações. Nos menos bem formados moral, social e politicamente, activa a cobardia da exultação da morte como vingança.
A poesia, a prática da poesia, é em si mesma como um sorriso cálido: serena e desarma. Até mesmo quando ela é poesia de combate, não suscita as raivas surdas e cegas, sem rumo nem controlo que são dirigidas aos praticantes da política.
Ademais, ainda que os seus mundos possuam muitas áreas de contacto, umas mais óbvias do que outras, e salvo situações ímpares de simbiose, políticos e poetas são escutados por auditórios em momentos diferentes, com diferentes necessidades, urgências e exigências.
Por isso, talvez por isso, os que vilipendiaram Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal nada tenham dito de Eugénio de Andrade, bem ou mal. Para além de não haver por quê, provavelmente nem sequer o conheciam. A cultura, forma de estar e ser integral e integrada não é ainda uma vulgarização no dia-a-dia da comunidade portuguesa, residente ou emigrante.
"Hoje roubei todas as rosas dos jardins e cheguei ao pé de ti de mãos vazias", escreveu Eugénio de Andrade.
Nenhum destes três homens chegou de mãos vazias ao encontro que os esperava para além do fim desta viagem que todos palmilhamos. Porque de mãos vazias ninguém chega, e muito menos eles. Era bom que se lembrassem disto os infelizes autores de venenosas verborreias.
Adeus, Vasco; Adeus, Álvaro; Adeus, Eugénio. Obrigado por tudo, mesmo o que só foi bom na intenção. E, por favor, àqueles que porventura vos possam ter ofendido, a vós, já do outro lado, perdoai-lhes, pois não sabem o que escrevem.