Os três diários do Recife apresentam hoje as seguintes manchetes, respectivamente:
"Presos suspeitos de clonar 2000 celulares" (ditos telemóveis, em Portugal).
"Ministério Público pede prisão de ex-prefeitos" (Presidentes de Câmara Municipal).
"Bebê de cinco meses é enterrado em casa".
O Recife igual a si mesmo: crime e falcatrua a não oferecerem espaço para outras opções na imprensa matutina.
Nesta linha, se outro jornal houvesse, deveria trazer em parangonas: "Continuam à solta os assassinos do bairro do Cabanga". O que é isso?
No dia 27 de Maio passado, foi noticiada a morte de uma menina de cinco anos, apanhada no trajecto de uma bala perdida resultante do confronto entre polícias e ladrões, num bairro periférico da cidade. Coisa frequente no Brasil, esta das vítimas de balas perdidas. A notícia sucinta de um dos órgãos de informação acrescentava que a criança se encontrava a brincar perto de casa, de noite, o que deixava ao leitor alguma margem para crítica e responsabilização dos adultos, pai, mãe, fosse quem fosse, que, àquela hora, deveriam ter a pequenina em casa. Mas a história é outra, relatada pelo "Folha de Pernambuco" daquele dia, que condiz com a versão de um médico que presta serviço no hospital para onde ela foi levada quase sem vida.
Cerca das 20 horas de quinta-feira 26, depois da visita a um familiar, uma mulher regressava a casa com uma filha de três meses ao colo e outra de cinco anos pela mão. Carregava ainda uma sacola de plástico de supermercado com algum peso. Ao atravessar o bairro do Cabanga, zona escura e de percurso perigoso, ouviu a dois homens novos que passaram rapidamente por ela aprontar o assalto a um carro com ocupantes que se encontrava estacionado perto. Para isso enrolaram as camisas nas mãos, simulando que estavam armados.
Neste momento duas coisas acontecem quase em simultâneo: o saco da mulher começa a rasgar, e ela, para não perder o conteúdo, passa a bebé para o colo da filhita que trazia pela mão; da esquina da rua, surgem três motorizadas da polícia que, ao aperceberem-se da abordagem, rompem um tiroteio contra os assaltantes.
A mãe, tentando proteger as filhas e, ao mesmo tempo, não perder os pertences do saco danificado, corre com elas para debaixo de um viaduto ali perto, a bebé ao colo da irmã mais velha.
O tiroteio continuou e uma bala perdida atingiu a menina de cinco anos que – acto comovente e exemplar – continuou, apesar de ferida, a segurar a irmã para a proteger. Só caiu no chão quando a mãe lha retirou do colo. A mulher apercebeu-se, então, dos ferimentos da filha estatelada a seus pés, e implorou ajuda aos polícias motorizados.
Entretanto, os ladrões tinham já fugido. Os polícias fugiram também, sem prestar socorro. A vida da criança não resistiu à demora na chegada ao hospital.
A história tem mais componentes, mas o seu rocambolesco não é para aqui chamado. Parece que há sete polícias envolvidos, directa e indirectamente, e foi instaurada uma sindicância na Corregedoria-Geral da Secretaria da Defesa Social para apuramento de responsabilidades. Também não interessa aqui falar nas eventuais consequências dessa sindicância, sabendo como é o espírito corporativista da Polícia.
Do mesmo modo, torna-se irrelevante discorrer sobre a morte desta criança: no Nordeste, onde o crime é a regra e ninguém é capaz (ou mostra vontade, para além do discurso circunstancial eleitoralista) de pôr-lhe cobro, ecoa como natural, ainda que não aceitável, a morte regular de inocentes vitimados por balas perdidas, seja dos ladrões, sejas dos polícias.
Ninguém paga estas mortes, pela simples razão de que ninguém pode pagar a morte seja de quem for – o pagamento seria restituí-las à vida; e, por outro lado, nada paga a vida de ninguém, pois a vida, por ser um dom, não tem preço.
Ainda assim, o mais importante também não é o resultado prático do tiroteio do ponto de vista policial, neste caso a fuga dos ladrões (de resto, já foram capturados, por denúncia de cidadãos, seis suspeitos que fariam parte de uma rede de assaltos naquele bairro). E, até, podemos deixar de lado, pelo menos por agora, a oportunidade do tiroteio e o seu resultado prático do ponto de vista humano – a morte da menina – pois cenários como este são sempre de alto risco.
O que não se pode deixar de questionar é o seguinte: que sentimento de autoridade e confiança pode advir da actuação de representantes da Autoridade que ferem e fogem, deixando morrer? Que culpabilidades terão levado estes polícias a desaparecerem da cena tão depressa sem prestar assistência? Que medos estarão por detrás de tal comportamento? Trata-se de um caso de incompetência, ou de irresponsabilidade? Ou das duas coisas? Ou de outras coisas mais? Que valores beberam estes agentes, já não digo nas respectivas famílias de infância, já não digo nas escolas básicas por onde andaram, mas nas instituições policiais onde fizeram a sua formação, técnica, jurídica, humana também? Que valores esta sociedade transmite às organizações a quem paga para garantirem a defesa e a ajuda dos cidadãos? Que misérias esta sociedade alberga, para já não haver valores universais a transmitir aos mais jovens, em particular àqueles que têm por missão defender esses valores? A que nível de degradação humana se desceu, para que a vida, como valor fundamental a respeitar, seja comparável a qualquer mercadoria descartável?
Neste contexto, já não se sabe onde estão os bandidos nem onde estão os polícias. Mas uma coisa é certa: com polícias assim, bandidos, para quê?