CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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terça-feira, junho 14, 2005

NEM A DESGRAÇA É DE GRAÇA

Quando personagens da política se aproveitam da desgraça alheia para tentar conquistar a prazo alguns votos, sejam muitos, sejam poucos, estão a fazer baixa política e de políticos, na verdadeira e nobre acepção do termo, nada têm. Deveria, em rigor, chamá-los de outra coisa para que não ficasse manchada a ideia de serviço que é suposto impregnar toda a actividade política.
Chuvas diluvianas fustigam o Estado de Pernambuco, no nordeste brasileiro, há várias semanas, com 16 municípios considerados em situação de emergência. Um deles é o da capital, Recife.
Desabamentos de muros e barreiras, aluimentos de terrenos, derrocadas de casas, descontrolo do leito de rios, enchentes, acidentes de viação, afogamentos, traduziam-se, nos primeiros dias de Junho, por 34 mortes, número de desaparecidos e de feridos não contabilizado ainda, mais de 30 mil desalojados, dos quais 4 mil no próprio Recife.
O governador do Estado deslocou-se a Brasília para pedir ajuda à Administração federal. Agasalhos, comida e medicamentos começaram a chegar.
A chuva não pára. Em bátegas intermitentes de grande violência, fustiga zonas urbanas e zonas rurais, e em cada uma delas provoca os prejuízos inerentes ao tipo de povoamento. Ali torna o trânsito perigoso e faz perder cargas. Aqui encerra escolas. Além varre culturas e arrasta animais. Acolá corta o fornecimento de água potável e de energia eléctrica.
Chuvas tropicais influenciadas pela proximidade do equador e pela época do ano. Engrossam e fazem explodir caudais. Criam torrentes onde a seca imperava. Na sua fúria à solta destroem tudo o que de passagem se lhes opuser.
O rio Capibaribe, um dos que atravessa a cidade do Recife, embacia-se de um castanho lodoso ponteado de ramarias verdes, entre as quais serpenteiam restos de troncos arrastados das margens.
Os terrenos volúveis, pouco compactados, mais sujeitos a infiltrações, são particularmente propensos a deslocamentos, afundamentos e derrocadas.
As casas assentes nesses terrenos desmoronam-se facilmente, por si, ou por arrastamento. Casas de infraestrutura deficiente, construídas sem precauções nem apoios técnicos, por empirismo, sem urbanização aprovada nem plano director. Casas clandestinas, bairros clandestinos que se tornam, aos poucos, pela sua dimensão, "legalizados". Bairros erguidos à pressa por aqueles a quem a fraca renda e a farta fome atraiu dos interiores para os centros de maior porte, e expulsou, logo de seguida, para as periferias.
Pernambuco, que já é pobre, mais pobre fica. As suas gentes passam a deslocar-se numa via de miséria mais apertada.Isso origina cenas de crueldade fria, como a do caminhão repleto de géneros, sem possibilidade de seguir viagem, obstruído numa cratera onde redemoinhos de água e lama competiam. Foi completamente saqueado por uma população, já de si propensa e habituada a pilhagens, agora fustigada pela fome, pela sede, pelo desabrigo, pelo desespero.
Isso origina, do outro lado, estratégias vis, como a que testemunhei numa tarde de domingo, regressava eu a casa, a pé, no intervalo de dois aguaceiros.
Em certo troço côncavo de uma rua num bairro periférico da capital, ao lado de uma repartição pública encerrada por ser dia de descanso, uma porta ampla, aberta, plantada num vazio de movimento chamou a minha atenção. Para melhor me espicaçar a curiosidade, por cima da porta e a toda a largura uma faixa ostensivamente colorida anunciava a delegação de um partido político. Por baixo do nome dizia-se defensor dos reformados, em particular dos mais pobres.
Eu nunca reparara naquela porta e, que me lembre, jamais a vira aberta.
Entrei. No interior escuro uma jovem funcionária, ou membro do partido, ignoro, única pessoa na casa, escrevinhava numa secretária de madeira enegrecida e suja. Pregado à mesa, um cartaz anunciava que decorria uma campanha de angariação de filiados. Pelo chão, a um canto, pacotes de arroz, de feijão, de massas, uns sobre os outros, numa pilha reduzida e desconcertada. Ao lado amontoavam-se roupas a granel, sem preocupação de qualquer tipo de ordem ou arrumo.
Perguntei qual o motivo da porta aberta, num dia sem movimento, numa tarde de chuva que aconselhava os mais prevenidos a não sair de casa. Respondeu-me que, a par da campanha de adesões ao partido, estava em curso uma campanha de recolha de alimentos e agasalhos para as vítimas das tempestades.
Entendi.
É indiscutível a legitimidade das duas campanhas. Mais: a segunda é meritória; o altruísmo sempre me tocou algumas cordas sensíveis. Mas sou igualmente sensível, se não mais, à hipocrisia e ao oportunismo. Nada teria a dizer se as duas campanhas corressem em tempos diferentes e campos separados. Mas empreender, ou simular, como me pareceu, uma campanha de comida e agasalho para caçar votos ou quotas para o partido é demasiado desaforo.
Saí com um sorriso amarelo e uma pena muito grande dentro de mim.
A verdadeira dádiva, aquela que é despojada, sem segundas intenções, e muito menos terceiras e quartas, como era o caso, parece incompatível com os chamados "objectivos políticos". Não repugna nessas esferas colher dividendos da desgraça que aflige o semelhante, desde que isso cumpra os tais "objectivos políticos". Acções assim, supostamente, digo, enganosamente, filantrópicas, constituem perversões que desacreditam a tão já desacreditada prática política. Depois, diz-se da política que ela é o que é, que ela está o que está, sem que a política tenha culpa alguma.
Sublime um conselho antigo: "que a tua mão esquerda não veja o que a direita dá". Nos tempos que correm, e com determinada gente, parece oportuno acrescentar "e que a tua mão esquerda não exija juros daquilo que a tua mão direita pareceu dar".

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