CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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quinta-feira, junho 16, 2005

"ARRASTÃO" EM PORTUGAL

Um "arrastão" gigantesco marcou o 10 de Junho, dia das comemorações de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
Carcavelos, uma das mais frequentadas praias do litoral próximo de Lisboa, na cosmopolita linha de Cascais, foi o palco para o maior roubo colectivo de que há memória.
Entre 500 e 2000 jovens (os números variam consoante as testemunhas), num bando fragmentado com um único comando ou em vários bandos autónomos, não se percebeu bem, atacaram os banhistas que enchiam a praia nessa tarde, roubando tudo o que podiam e agredindo quem opunha resistência.
Várias forças policiais tiveram de intervir para pôr fim ao pandemónio que fez feridos entre os banhistas, os ladrões e a polícia. Detenções, umas escassas quatro por desobediência à autoridade, apesar de os desacatos continuarem nas imediações.
Coisa inusitada em Portugal, à parte algumas pequenas acções utilizando a mesma técnica, também em praias, mas cometidas por grupos minúsculos e a que não se pode chamar "arrastão", cabe perguntar se começou uma prática nova de assalto, ou se estamos perante um acto isolado e sem sucessão. Veremos. No entanto, estas experiências geralmente não são ocasionais nem únicas, em especial se obtiveram êxito.
Uma das formas de impedir a sua continuidade consiste em tomar medidas de prevenção eficazes e de punição exemplares que sirvam de dissuasão e de exemplo, respectivamente, mas parece que nem uma coisa nem outra aconteceu, a menos que isso esteja no segredo dos deuses da segurança interna.
A própria polícia não tem uma noção definida do que se passou, nem da origem, uma vez que não estava lá e os testemunhos divergem, e apresenta, por sua vez, versões do ocorrido diferentes umas das outras. Também não sabe para que lado há-de virar-se, e, nos dias seguintes, pediu em desespero aos cidadãos lesados que a ajudassem, apresentando queixa. Contra quem? Para quê, se nem têm a quem acusar?
Pelos estragos causados e pelo efeito ondulatório, que repercussões internas e externas poderá ter esta ocorrência?Dir-se-á que o turista nacional vai procurar outras praias, e que o estrangeiro praticamente não frequenta Carcavelos. Mas a verdade é que onde estiver um aglomerado de banhistas há probabilidade de isto tornar a acontecer, se nada se fizer para o prevenir, além de que é um atentado à liberdade de quem quer usufruir daquela praia. Por outro lado, Portugal é pequeno, e de Carcavelos ao Algarve é um pulo na cabeça de qualquer veraneante, português ou forasteiro.
Inspirando-se no modelo brasileiro – afinal, não somos países irmãos? – este "arrastão" deixou o mundo perplexo perante as imagens, e fez pensar que, afinal, comparados com este, os "arrastões" do Brasil têm sido uma brincadeira de crianças. Espera-se que as respectivas "equipes" não levem por diante um despique, um campeonato, uma copa...
Só que não se tratou de uma brincadeira de crianças ou de adolescentes. Antes fosse. Do mal, o menos. Para além do roubo como móbil, houve o intuito da desordem, de criar confusão, de expressar a revolta. Revolta, antes de mais, de quem se sente desintegrado, fora de casa, fora do local de origem, vivendo em bairros degradados onde o crime faz lei.
É verdade que muitos desses jovens não conhecem os contornos da sua terra natal. Filhos de emigrantes, aqui nasceram. Mas também é verdade que não podem sentir este país como seu, porque já os seus pais não o sentem.
No Brasil como em Portugal, os mesmos, os da mesma cor – antigamente, imigrantes numa colónia nascente; hoje, emigrantes de colónias extintas. Marginalizados, desintegrados, revoltados. Aperta-se o ciclo vicioso: por se comportarem assim são discriminados, e por se sentirem discriminados comportam-se assim, sem se saber onde começa e acaba cada uma das coisas. E a cor vai-se tornando uma rotulagem e uma tipificação. Algumas práticas, como esta, são invocadas para as confirmar. Daqui ao aproveitamento político dos actos – quando não mesmo de quem os pratica – vai um saltinho de pardal.
Mas é preciso não esquecer o outro lado da moeda. A sensação de afastamento, desenraizamento, saudade é comum a todo o imigrante. Como reagem uns, como reagem outros? Os portugueses em França, na Alemanha, no Canadá, nos Estados Unidos, enfim, por onde estão espalhados souberam como fazer. Tentaram integrar-se, mantendo, embora, os laços comunitários com os conterrâneos imigrantes também e com a sua terra. Conseguiram, apesar dos obstáculos sociais criados a todo o imigrante. Mas nem todo o imigrante é assim.
Portugal sofre de um permanente complexo de culpa que o torna demasiado permissivo, e essa permissividade estende-se ao imigrante, em particular ao imigrante africano, das ex-colónias. Isso tem dado origem a situações de perigosas utilizações políticas, a oportunismos dos próprios imigrantes e a impunidades que põem em causa a segurança e a justiça social devida aos nacionais residentes.
Todo o cidadão deve ter tratamento igual perante a Lei – e isto diz respeito também ao imigrante, coisa que nem sempre está muito clara nas cabeças. Como contrapartida, todo o cidadão deve ter acesso às mesmas oportunidades, desde que se esforce no trabalho para as agarrar, numa competitividade sadia, a das competências, não a dos favores, da trapaça ou da astúcia rasteira. Muito menos a da fraude ou do crime – e isto diz respeito ao imigrante também.
Será que ambos os princípios têm sido aplicados aos imigrantes em Portugal? A benevolência, por um lado, e a raiva, por outro, estribadas no fantasma do processo de descolonização, não têm provocado, cada uma à sua maneira, distorções no convívio entre os cidadãos? Tanto a benevolência como a raiva não serão duas vertentes de um mesmo preconceito racista?
Não vela a pena perder tempo com discussões de choque entre chauvinistas, racistas e nacionalistas, num bloco, e integracionistas, humanistas e pluralistas noutro. A questão ultrapassa a troca de discursos pessoais ou grupais, ultrapassa a praia, ultrapassa o bairro, ultrapassa o país e a própria União Europeia. Exige um debate e acções imediatas, com coragem, sem preconceitos, sem hipocrisias, sem espírito caritativo, sem superioridades, um debate de nações, todas, a desenvolver em paralelo em várias sedes específicas, consoante os assuntos que o tema impõe.
O mundo quererá? Estará, ao menos, disposto a isso? Parece que não. Ainda não. Ainda não porque os sintomas estão alojados, circunscritos, de certa forma controlados. Até quando? E até que ponto daqui a pouco não será demasiado tarde? Neste saber e não saber, querer, ou não, saber, vamos correndo o risco de a força da palavra vir a ser aniquilada pela força da violência, já mal contida. "Arrastão" e agitação social tendem, pois, a confundir-se.

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Meu Caro Luiz
Como sempre, oportuno nas suas observações e considerações. Não vamos ser nós a resolver o problema... mas podemos ajudar, se dissermos as coisas certas.
Os «Arrastões» são, afinal, as mais simples e, paradoxalmente, as mais desesperadas manifestações de descontentamento com o mundo e a Vida levados a efeito por grupos socialmente marginais. Mas marginais a quê e a quem?
Marginais a quem aceita e favorece uma sociedade de consumos aparentes, uma sociedade de «faz de conta que somos ricos». Eles também querem «fazer de conta», embora não tendo como. Resta-lhes a revolta e o roubo.
Já imaginou o que seria um «Arrastão» levado a cabo por todos nós, os noventa e muitos por cento, dos que vivemos de um precário salário - cada vez mais precário - sobre os cinco por cento dos detentores da riqueza do globo?
Isso talvez fizesse com que os cinco por cento ficassem muito instáveis na sua posição económica e financeira e nos desse a nós (os noventa e tal por cento) uma mais profunda consciência de como somos, afinal, os «instrumentos» ideais dos ricos para lhes manter o estatuto e a condição.
Vamos fazer um «Arrastão»?

domingo, junho 19, 2005 4:15:00 da manhã  
Blogger Delma said...

HOUVE MESMO ARRASTÃO, NO DIA 10 DE JUNHO DE 2005?
FICO AGUARDANDO A SUA RESPOSTA-
OBRIGADO.
DELMA

sexta-feira, março 21, 2008 8:49:00 da tarde  

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