CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

Locais e ambientes, pessoas e costumes, histórias, curiosidades e acontecimentos.

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domingo, outubro 30, 2005

PÃO E CIRCO

Parece que os brasileiros, decididamente, não gostam de trabalhar.
A afirmação pode parecer injusta, preconceituosa, reducionista, chauvinista, generalizadora e outras coisas pouco abonatórias para o autor.
Sem dar muita importância ao comentário, uns dirão, gracejando, que o pessoal gosta mesmo é de curtir de papo para o ar, barriga brilhante de óleo de coco, a sombra da bananeira, o
dolce fare niente de que falam os italianos. Outros, invocando a imagem bíblica primitiva, defenderão que o trabalho é um castigo imposto por Deus aos nossos ancestrais progenitores, e que de punições ninguém gosta, procurando fugir delas.
Filosofias à parte, a verdade é que há povos que têm feriados e férias ao longo do ano de trabalho, enquanto outros, como o Brasil, ainda encontram espaço para encaixar alguns diazitos de trabalho por ano, entre festas e folguedos, festejos e comemorações, férias e feriados, carnavais e outras coisas que tais, não esquecendo os horários de Verão em que o período de actividade produtiva é reduzido para meio tempo diário.
No passado dia 12 comemorou-se o
dia da criança. Escolas fechadas. Logo a seguir, dia 15, celebrou-se o dia do professor. Como calhou num sábado, transferiram-no para segunda-feira, para obterem mais um dia de nada fazer. Escolas fechadas, pois. Na mesma segunda-feira festejou-se o dia do comerciante (chamado comerciário no Brasil). Neste ramo só fecharam as lojas dos grandes centros comerciais (shoppings, no Brasil). O pequeno comércio, aquele a quem a porta fechada dói na compra do pão, manteve-se, na generalidade, aberto. Na sexta-feira 28 foi o dia do funcionário público. Repartições encerradas.
O Parlamento preparava-se para umas mini férias até ao dia 2 de Novembro, em que se lembram os fiéis defuntos, feriado no Brasil, diferente da maioria do mundo católico que celebra a festa religiosa de Todos os Santos no dia 1. Foi preciso o presidente da Mesa ameaçar com desconto nos salários dos eventuais faltosos. Mesmo assim, na sexta-feira, dos 513 deputados estavam presentes 20. Sessão adiada.
É o governo federal quem estabelece os feriados no Brasil. No entanto, por prerrogativa especial, os governos estaduais podem determinar para os respectivos estados os ditos "pontos facultativos", que outra coisa não são que uns feriados a mais.
Quer queiramos, quer não, isto reflecte-se na qualidade de vida de uma população que reclama, com toda a justiça, das precárias condições da sua existência.
Não é que o trabalho de sol a sol se traduza, necessariamente em riqueza.
Pelo contrário, a civilização tende, nos países mais evoluídos, para uma distribuição do tempo de vida por menos trabalho e mais lazer, embora isso não signifique, de todo, não fazer nada, mesmo nos tempos livres.
Isto acontece em quadros sociais altamente organizados, de grande produtividade, onde abundância e bem-estar permitem outro tipo de preocupações, filosóficas e espirituais, por exemplo, que não cabem nas sociedades que lutam pela mais elementar sobrevivência.
Mas antes de chegarem a este estado, esses povos cuidaram do seu desenvolvimento económico e social. Produziram, ganharam, reinvestiram e distribuíram.
Independentemente de condições geográficas e climáticas adversas, esses países conseguiram ultrapassar os obstáculos, e constituem hoje exemplos para o mundo. São países onde apetece viver.
Não é este o caso do Brasil no que toca à maioria das suas gentes, flageladas por carências quanto às necessidades básicas, e extremadas por desigualdades sociais, de que a mais gritante será a diferença no poder aquisitivo, origem dos mais elevados índices de criminalidade do mundo, e da furiosa corrupção que vinga nos três Poderes do Estado e perpassa, seguindo o exemplo, para todos os patamares da escada social.
Instalou-se a mentalidade do "deixa p'ra lá". Perdeu-se, entre samba e forró, a salutar máxima do "não deixes para amanhã o que podes fazer hoje".
A criminalidade e a corrupção, afinal outra forma de criminalidade, instigam e mobilizam o cidadão para o dinheiro fácil, a qualquer preço, mesmo o preço da vida, própria ou alheia, tanto faz.
À semelhança de Roma antiga, em que os imperadores contentavam o povo com pão e circo, aqui a oferta é de novela, carnaval e bolsa-esmola, com o que se conseguem, até, alguns equivocados, ou hipócritas, elogios internacionais, mas não levam em conta a necessidade, também, de resgatar a dignidade humana.
Porém, é bom não esquecer que aqueles imperadores romanos com tal política fragilizaram o império e o tornaram vulnerável à cobiça dos Bárbaros que acabaram por destruir a identidade desse mesmo império.
O Brasil já foi império. Hoje não é, mas a construção do país por dentro, a partir do país real, sem inspirações magalómanas de figurinos estrangeiros, continua por fazer.
Apesar de azedado e tumultuoso pela impunidade criminal que tende a estabelecer uma relação, em breve, de um homem de bem para um bandido, o Brasil vive num remanso doce e despreocupado de brandos costumes.
Com isso, corre o risco de outro tipo de invasões, não menos bárbaras nas suas consequências, de que a dependência económica, já sentida, tanto na doutrina, como na prática, não será a menos influente no futuro deste povo.



sexta-feira, outubro 28, 2005

UMA VIAGEM MEMORÁVEL

A extensão do Brasil, praticamente do tamanho da Europa, desaconselha, principalmente para quem tem pressa, viagens que não sejam de avião. No entanto, os preços das passagens aéreas tornam proibitivo o uso sistemático daquele meio de deslocação, e mesmo o uso esporádico para os de mais fracas posses.
Como o transporte ferroviário é limitado a pequenos troços, a maior parte para o movimento de mercadorias, e outros apenas para fins turísticos, os passageiros deslocam-se, na sua quase totalidade, por estrada.
Para estas pessoas, urgência é palavra sem sentido. As viagens têm de ser programadas de modo a contar com vários dias de inutilidade absoluta até à chegada ao destino. Tudo isto se reflecte na actividade do país e no estilo de vida do povo, sendo certo que o próprio carácter do povo justifica a inexistência de meios mais expeditos de deslocação colectiva.
As empresas transportadoras cortam o território em todas as direcções, mas os serviços dos percursos mais longos, em particular no norte e no nordeste, são de muito má qualidade.
De Santa Catarina, um estado do sul, a Pernambuco, um estado do nordeste, distam cerca de 4 mil quilómetros. Fiz essa viagem de três dias e meio várias vezes, num e noutro sentido.
A primeira vez torna-se dolorosa. O percurso em auto-estrada é mínimo, comparado com a totalidade do trajecto. As estradas são francamente ruins, com quilómetros e quilómetros de buracos tipo cratera onde a viatura escoiceia, a velocidade de progressão é irritantemente reduzida, e os atrasos se acumulam em cada minuto. Esta é uma das razões porque em nenhum ponto de apoio nas diversas paragens se encontra um funcionário que, tanto por meios informáticos como por experiência própria, seja capaz de dizer, ou, ao menos, prever a hora de chegada ao destino. Só perto do final, a uns escassos 200 ou 300 quilómetros, é possível ter alguma informação quanto a este detalhe, e, mesmo assim, timidamente estimada.
Depois habituamo-nos, embora cada viagem possa ser considerada uma aventura diferente; basta o facto de serem diferentes os passageiros que connosco viajam.
Nesta rota operam duas companhias de autocarros, aqui chamados ônibus, ônibus interestaduais. Nenhuma delas é melhor que a outra. Experimentei ambas, e optei por aquela que não oferece serviço de vídeo, uma presença incomodativa, desinstrutiva, repetitiva. Em todas as viagens ao longo do ano os mesmos documentários, as mesmas entrevistas, as mesmas farsas imbecis, tudo retirado da programação da TV de meses atrás.
Em viaturas que pouco mais são que autocarros urbanos, de bancos apertados, incómodos, sem respeito pelas distâncias que deveriam preservar a intimidade de cada viajante, o conforto resume-se a um sanitário, por vezes sujo e fedorento, alguma água potável em copos herméticos que ao fim de duas horas já está intragável de quente, um ar condicionado que nem sempre funciona em condições, quando não está mesmo avariado, e bancos recostáveis a 65 graus.
Este carro é o do tipo "executive". Há também o "convencional", sem água, sem ar condicionado, com menor inclinação dos bancos e mais barulhento. No topo de gama existe o "leito" que, em relação ao "executive" tem a mais um descanso para os pés, de modo a simular de longe uma cama em plano inclinado, um lençol, um cobertor e uma almofada, e vidros fumados. Tudo isto, claro a preços diferentes.
Ao longo destes quilómetros, de quatro em quatro horas de marcha os motoristas são rendidos nos pontos de apoio, para que se possa rodar dia e noite. Ao todo, sete ou oito motoristas, na generalidade cordiais e competentes.
Estas paragens obrigatórias tornam o sono um pesadelo no fim dos três dias.
Paragens curtas, de quinze minutos, para um café, uma pequena compra, petiscar qualquer coisa, estender as pernas, ou, simplesmente, utilizar os sanitários do terminal rodoviário – os passageiros preferem conservar o do ônibus para situações de emergência.
Paragens mais longas, de trinta minutos, às vezes estendidas por quarenta ou cinquenta devido à indisciplina dos passageiros. Paragens destinadas a almoço ou jantar, ou a lavagens sumárias que, no Verão, podem chegar ao banho completo para quem quiser arriscar na higiene do balneário e no consumo do tempo, já que, neste particular, banho e alimentação se tornam incompatíveis nos escassos trinta minutos, pelo menos teóricos. É durante estes intervalos maiores que se faz a limpeza e o abastecimento de água e de combustível do veículo.
Nos pontos de apoio há de tudo: um escritório da empresa com gente que quer ser eficaz, mas, como já se viu, nem sempre consegue satisfazer em informações esclarecedoras, a tempo e fidedignas; áreas de restauração; lojas de conveniência e de artesanato; sanitários, geralmente grandes, com ducha. Caixas automáticas para levantamento de dinheiro, nem pensar.
Ao longo do percurso encontram-se os mais diversos tipos de pontos de apoio, com múltiplas possibilidades de combinação das variáveis tamanho, decoração, higiene, atendimento, qualidade de comida, preço. Desde espaços luxuosos com alguma sofisticação, até áreas modestas e apertadas, a lembrar velhas cabanas dos desertos americanos. Desde sanitários de que nos orgulharíamos nas nossas casas, atraentes e higienizados, até latrinas nauseabundas e de aspecto capaz de reter as mais prementes necessidades fisiológicas.
De sul para norte se nota a diferença. À medida que nos afastamos dos ricos e vistosos estados do sul, e nos aproximamos do pobre e muitas vezes mal-parecido Nordeste, pioram a olhos vistos as condições de apresentação e higiene dos pontos de apoio.
Num fim de tarde, à hora normal de jantar, deixei Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, num luxuoso ônibus, com destino a São Paulo, 12 horas de viagem. Aí chegado, esperei sete horas pelo autocarro que me levaria até Recife, capital de Pernambuco, durante três dias, sem qualquer comparação possível com o que me tinha transportado para São Paulo.
A quatrocentos e cinquenta quilómetros de caminhada, numa daquelas paragens para almoçar, o motorista detectou uma avaria que impossibilitava seguir viagem.
O mecânico escalado para estar de plantão naquele posto encontrava-se, por razões desconhecidas, a 25 quilómetros dali. Não se tratava de ter ido a casa, pois morava a escassos mil e duzentos metros do local. Um outro autocarro que por ali preguiçava sem destino nem projecto foi buscá-lo.
O homem, visivelmente contrariado, dirigiu-se indolentemente ao escritório da companhia onde fez vários telefonemas de utilidade duvidosa. Depois, ainda mais contrariado e lento, deslocou-se até ao ônibus já postado na rampa da oficina rudimentar. Contrariamente à esperança do motorista, de que seria uma mera e simples afinação, o veredicto do mecânico, sibilante e de saboreado sadismo, foi-nos atirado à cara como uma pedrada: o carro precisava de substituição de uma peça, e, com aquela deficiência, não sairia dali à sua responsabilidade.
O posto não possuía essa peça. Seria preciso deslocar-se à cidade mais próxima, percorrer várias lojas até a encontrar, regressar, substituí-la e testar o carro. Na hipótese optimista de se conseguir a peça no mercado local, coisa que não estava garantida, bem pelo contrário, teríamos pela frente, se tudo o mais corresse bem, de três a quatro horas de espera. Entretanto, os trinta minutos da paragem para almoço já se prolongavam por hora e meia.
O motorista sugeriu, então, que se prosseguisse viagem numa viatura tipo "convencional", desconfortável, é certo, mas a única disponível naquele posto para nos transportar. Os passageiros entreolharam-se, não queriam perder mais tempo, e aceitaram, resignados e sem contestação. À laia de consolo, o motorista garantiu que aquele carro, embora mais antigo, aguentava melhor os embates nos buracos que se avizinhavam durante os próximos 60 quilómetros.
Não conformado, ofereci alguma resistência, sem êxito. Falei de mau serviço, de irresponsabilidade, de incompetência, sem sucesso. Exigi, enfim, do chefe do escritório que no próximo posto, a umas tenebrosas oito horas de caminho, estivesse à nossa espera um carro de categoria semelhante à do serviço que tínhamos comprado. Com a promessa vaga de que iria tentar, e a minha insistência acompanhada de ameaça de que poria o caso na justiça, entrámos no "convencional".
Medonho. Mau cheiro, barulho do motor, má suspensão, deficiente calafetagem das janelas que deixavam entrar de rompante fiozinhos de ar agreste teriam tornado aquelas oito horas num massacre, se não fora a promessa de melhores condições a partir do próximo posto, seiscentos quilómetros adiante.
Chegámos com os ossos e os músculos martirizados.
Surpresa, apesar de tudo não tão inesperada quanto isso, surpresa, surpresa, nenhum outro carro nos aguardava.
Os passageiros, como bons e desde sempre brasileiros que conheciam o sistema, condescendiam. Uns remetiam-se a um silêncio confrangedor. Outros filosofavam que "viajar tem destas coisas".
Sozinho, dirigi-me ao escritório da companhia, lembrando-me, vagamente, da perda dos caixotes no romance "A cidade e as serras", de Eça de Queiroz.
Perguntei pelo carro prometido. Ninguém entendeu a pergunta porque ninguém sabia de nada. Falei alto em jornais e tribunais. Então, introduziram-me no escritório do responsável, onde, confortavelmente instalado num sofá, assisti a duas ou três conversas telefónicas de emergência, em que o chefe do posto estava tão solidário com a minha irritação que parecia ele próprio uma das vítimas.
Saí dali com a promessa de que uma nova viatura estaria à nossa espera no posto seguinte, a mais 5 horas de martírio, ou seja, cerca de 350 km.
Aguentámos com bravura e, por consolação, tivemos a grata surpresa, agora sim, surpresa, de ver a promessa cumprida. Às três da manhã, um "executive" aguardava-nos, expressamente deslocado de uma cidade a 150 km dali.
Quando eu e os meus ensonados companheiros começámos a transferir as bagagens de um para outro autocarro, pareceu-me adivinhar nalguns deles, em particular nos que transportavam crianças adormecidas, roupas de cama e volumosos pacotes em profusão, um arremedo de fúria assassina dirigida ao autor dos protestos pela qualidade da viagem, ou seja, eu próprio.
Já no Recife, dois ou três dias após a chegada, apresentei por e-mail uma exposição à empresa. Telefonaram. Quiseram pormenores. Agradeceram. Pediram desculpas. Daí a um mês levantei num dos seus escritórios um bilhete de passagem completamente gratuito, válido por um ano, contra uma declaração minha em como prescindia de qualquer pedido de indemnização ou acção judicial. Não foi elegante, mas, creio, foi muito para o que é costume fazer-se nesta terra.
Já se passaram meses sobre esta viagem. Hoje o serviço prestado deve estar francamente pior, já que as duas empresas transportadoras se fundiram, deixando, assim, de haver concorrência. Além disso, o brasileiro não cuida dos seus direitos. Não protesta de forma persistente nem consequente. Para ele quase tudo está bem, desde que não dê trabalho, não dê incómodo, não exija disponibilidade.E quem se dispuser a fazer valer direitos, os direitos deles, se isso os obrigar a mexer, a quebrar a inércia, a desinstalar, arrisca-se a ser quase linchado em praça pública.
Enfim, esta memorável viagem é digna da cantiga que diz: "Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Mas que beleza...".



terça-feira, outubro 25, 2005

TAPAR O SOL COM O REFERENDO

Nem sempre um referendo num país constitui um gesto democrático por parte das autoridades que governam. Há países, democráticos desde há séculos, que nunca fizeram um referendo. Outros, também velhos na democracia, o fizeram uma ou duas vezes, no máximo.
Isto prova que há mecanismos de governação, tanto ou mais democráticos, para fazer boa gestão da coisa pública, da
res publica, como diziam os romanos, da República, pois.
Muitas vezes, encarar a opção pelo referendo não passa de um ensaio para lavar as mãos, à maneira de Pilatos, uma conduta de afastamento de quem não tem uma solução, ou de quem não quer comprometer-se com a solução que se impõe.
Foi o que aconteceu no Brasil no passado domingo 23, com o referendo sobre o comércio de armas e munições. Falsa questão.
O Governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva atirou para cima do povo a responsabilidade de decidir se esse comércio deveria ou não ser permitido, advertindo de que a sua liberalização é responsável pela violência, e, ao contrário, a proibição a extinguiria.
Puro engano, porque os números, no Brasil e no resto do mundo, dizem há muito que não é assim. Os EUA, a Inglaterra, a Suíça, o Japão e a Argentina, todos eles, cada um à sua maneira, uns fortemente armados, outros completamente desarmados, comprovam que não há relação entre a liberalização do comércio de armas e o índice de violência nos respectivos países.
Curioso notar que no próprio Brasil, no estado do Rio Grande do Sul, na fronteira meridional, onde se encontra o maior número de armas cadastradas por habitante no país, e, ao mesmo tempo, onde se regista o menor número de crimes por armas de fogo, o resultado do referendo tenha sido 86,8% a favor da liberalização do comércio de armas.
Por outro lado, grande parte das armas utilizadas na violência neste país nem sequer podem ser compradas em armeiros, como sejam metralhadoras e espingardas exclusivas das forças armadas, nacionais e estrangeiras, ou pistolas e revólveres de calibre utilizado "apenas" pelos militares e as polícias.
O referendo estava enfermo de má-fé em muitos aspectos. Para além dos já referidos acima, um outro consistia na própria formulação da pergunta.
"O comércio de armas e munição deve ser proibido no Brasil?".
Pergunta traiçoeira, logo, desonesta, porque induz, ela própria, uma resposta, e porque a forma como está construída confunde o cidadão. É preciso não esquecer a elevada taxa de analfabetismo funcional no Brasil.
Até poucos dias antes do voto nas urnas, inquéritos de rua verificaram que os interrogados davam respostas erradas. Isto é, por má interpretação da pergunta, diziam o contrário do que queriam exprimir.
Significativo que o "Sim" tenha revelado, pouco depois do início da campanha, mais de 80% das intenções de voto, e que tenha obtido menos de 40% dos votos expressos.
Não foi por desconhecimento técnico sobre a construção de perguntas para referendo que isto aconteceu, mas por razões subterrâneas bem determinadas.
A frente do "Sim" rejeitou uma proposta do grupo "Não" para alterar a forma como a pergunta estava formulada, de modo a torná-la mais compreensível. Contra todas as defesas que o "Sim" possa fazer, as evidências da recusa apontam no sentido de tentar criar e manter confusão na cabeça dos eleitores.
A filosofia e a conduta das duas frentes foram bem distintas ao longo da campanha.
O grupo que defendia o "Não" trouxe a público dados, estatísticas e testemunhos simples, idóneos e incontestáveis. Pôs o dedo na ferida, ao chamar a atenção, directa ou indirectamente, para as causas da violência no Brasil, para quem a pratica, como e porquê, e para a incapacidade do Governo em garantir a segurança dos cidadãos.
A frente do "Sim" foi liderada pelo presidente do Senado, um senador pelo estado de Alagoas, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), da base aliada do Governo Lula. Por aqui se percebe o interesse do Governo em que o resultado do referendo fosse "Sim" à proibição do comércio de armas e munições no Brasil. As razões disso veremos mais à frente.
O "Sim" enveredou, muitas vezes, pela demagogia, pela distorção das estatísticas, pela ocultação das razões de fundo da violência. Escolheu para figuras de apelação da campanha artistas de novela e cantores da moda, e não escapou à crítica pública, e verdadeira, de que essas vedetas circulam protegidas por guarda-costas armados, e vivem em residências que mais parecem abrigos militares, providos de todas as possíveis condições técnicas e humanas de protecção.
O "Sim", por estas e outras razões, perdeu. Mas não se julgue que os resultados foram devidos à maior ou menor penetração das campanhas nas massas populares. Isso seria considerar, incorrectamente, que o brasileiro é de menoridade mental.
Num conjunto de 122 milhões de eleitores, o "Não" ganhou com cerca de dois terços dos votos expressos, 98 milhões.
Afinal, a quem interessava a vitória do "Sim", que retiraria aos brasileiros um direito consignado no Estatuto de Desarmamento, em vigor desde Dezembro de 2003?
Pelas posições que tomou neste assunto, parece evidente que o Governo de Lula da Silva, que até agora se tem mostrado impotente para resolver o problema da criminalidade e da segurança pública da população, vai escudar-se nos resultados que o povo expressou nas urnas para imputar a esse povo, como consequência dessa expressão, a continuação, ou o aumento, da criminalidade no país. Ou seja, vai afirmar que o povo quis as armas de fogo à descrição nas lojas, por isso os crimes com arma de fogo aumentaram. Tal afirmação foi insinuada antes do referendo, durante a campanha, pela frente do "Sim" e por interpostos políticos fiéis ao governo.
Mais um equívoco. As armas de fogo produzidas no Brasil destinam-se, em maior percentagem, à exportação. Vendem-se legalmente no comércio interno cerca de 3000 por ano. As autoridades estimam que as armas clandestinas, adquiridas ilegalmente, totalizam à volta de 20 milhões. Portanto, a tese do Governo e de seus apoiantes nesta matéria cai por terra.
Para alguns governos, como está sobejamente estampado na História, o desarmamento completo dos cidadãos é fundamental para a conquista e manutenção do Poder. População desarmada é população vulnerável perante aventuras totalitárias de governantes com tendências ditatoriais.
Benjamim Franklin, o jornalista e político americano (1706-1790), dizia: "quando todas as armas forem de propriedade do governo, este decidirá de quem são as outras propriedades".
Algumas vozes respeitadas no Brasil tocaram neste assunto melindroso.
Os escândalos político-financeiros que, desde Maio deste ano, têm vindo a público no Brasil, revelaram um vasto esquema de corrupção envolvendo parlamentares, vereadores e empresários, com possíveis capilaridades difusas ao judiciário e às polícias, engendrado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o partido do presidente, com vista a perpetuar, segundo opiniões abalizadas, o domínio do aparelho do Estado, naquilo a que essas opiniões chamaram de ditadura branca mascarada de democracia.
Para os defensores desta teoria, a vitória do "Sim" seria uma vitória do Governo, na rota dos seus objectivos.
O "Sim" também seria vantajoso para o Movimento dos Sem Terra (MST), de resto, eles próprios a favor desta alternativa.
De há bastante tempo a esta parte, o Movimento, ou algumas das suas facções, têm vindo a invadir e a ocupar fazendas produtivas, muitas delas de capitais estrangeiros ou mistos, criadoras de alguns milhares de postos de trabalho, directos e indirectos. Justificação: não produzem alimentos. Aparentemente, desde que não haja cultivo de terrenos agrícolas para alimentação humana, a unidade de produção não serve os interesses do povo, mesmo que milhares de cabeças de gado e alguns hectares de árvores para pasta de papel possam constituir uma verdadeira riqueza nacional.
Em algumas destas fazendas o MST tem deparado com resistência armada dos proprietários, dificultando as invasões.
Ao ser proibido o comércio de armas e munições, os fazendeiros seriam privados dos seus meios de legítima defesa, e a ocupação das propriedades estaria, teoricamente, facilitada.
A vitória do "Sim" beneficiaria, também e sem sombra de dúvida, o banditismo. Aqui em duas vertentes.
Ao saberem o povo desarmado, os roubos e furtos, os assaltos a pessoas e bens, os sequestros, os estupros seriam mais rápidos, simples e seguros. A possibilidade de as vítimas virem a responder com potencial de fogo igual ou superior ao do bandido, poderá criar neste algumas reservas. Mas sabendo de antemão que a pessoa de bem está desarmada, o crime corre fluido, sem obstáculos.
Por outro lado, a proibição do comércio de armas e munições levaria os portadores legalizados a procurar obter por outras vias os meios de defesa de si próprios, de suas famílias e de seus bens.
Não se cogita que uma família que viva numa fazenda perdida no meio de um deserto fique à espera de eventuais assaltantes munidos com armas de fogo, confiando nas pedras ou nos paus que amontoou atrás da porta.
A fonte de fornecimento das munições a que os cidadãos com direito a porte de arma seriam obrigados a recorrer estaria nas redes de contrabando que se formariam para o efeito, alargando as já existentes. Ou seja, a defesa pessoal contra o crime alimentar-se-ia do próprio crime.
Para encurtar o rol, outros beneficiados com a pretendida proibição seriam as empresas de segurança. Tais empresas, hoje, já arrecadam qualquer coisa como 13 mil reais por mês (com 1 real a cerca de 0,33 euros), em média, por pessoa, a quem prestam segurança privada, segundo dados fornecidos por empresário do ramo. Com o aumento previsível de criminalidade, ou, pelo menos, com o aumento do medo que a situação criaria, as empresas de segurança privada veriam a sua facturação florescer, com óbvio prejuízo de quem não tivesse disponibilidade financeira para assegurar tais serviços. Ou seja, a maioria da população.
O referendo foi não só inoportuno como desnecessário. Mas acabou por não ser de todo inútil, na medida em que permitiu tirar algumas conclusões que deveriam constituir motivo sério de reflexão e acção por parte das autoridades municipais, estaduais e federais.
A primeira foi a maturidade e o discernimento do povo brasileiro. Talvez houvesse muita gente a desdenhar de tais qualidades, e que, perante os resultados, teve de se acoitar no aconchego de falsas explicações quanto a esses mesmos resultados, para tentar iludir receios que eles trouxeram à luz do dia.
O povo não só não se deixou intimidar com argumentos enganosos, como não prescindiu de um direito constitucional e, acima de tudo, natural: o direito inalienável à defesa pessoal, da família e dos bens.
Outra inferência foi a da inaptidão do Governo Lula para administrar as verbas que arrecada dos impostos dos cidadãos. Em 2005 as polícias foram dotadas de 109 milhões de reais para o seu apetrechamento. O referendo, cujos resultados em nada mudaram o quadro em que se vivia, custou aos cofres, ao bolso do contribuinte, 500 milhões. Sem mais comentários.
Finalmente, com o referendo, as discussões que ele proporcionou e os respectivos resultados, se ficou a perceber claramente a ineficácia do Governo para resolver o problema da segurança pública. E mais. Ficou mostrado que o povo tem nítida consciência disso.
Nas manchetes dos jornais, das rádios e das televisões o espaço e o tempo de antena são disputados pelos crimes do dia e pelos escândalos de corrupção na vida política.
O Governo Lula não consegue impor moralidade na prática política porque o seu próprio partido, PT, é a fonte e o foco dos escândalos.
O Governo Lula não consegue criar uma estratégia de segurança pública, da mesma forma que se tem mostrado incompetente para solucionar os problemas com os quais ela se relaciona e dos quais depende.
A distribuição de renda é a segunda mais injusta do mundo.
O emprego não é criado ao ritmo do crescimento da população activa e do termo da preparação escolar.
A Escola não motiva os professores a cumprirem o seu papel na formação pedagógica, didáctica e cívica dos alunos.
A legislação penal favorece a impunidade.
As verbas destinadas à segurança pública, polícias e sistema penitenciário, vêm sendo sistematicamente reduzidas de ano para ano.
A corrupção rola em todo o aparelho do Estado, o que conferiu recentemente ao Brasil a classificação de 3,7 numa escala de 0 a 10, em que 10 representa o máximo de honestidade e 0 o mínimo, por parte de uma idónea organização internacional.
O presidente Lula, incapaz já de governar, limita-se a alardear todos os dias que a economia brasileira atravessa o melhor momento dos últimos 30 anos. Mas o emprego nalguns sectores decai, a produção industrial diminui, os juros são os mais elevados do mundo, o crescimento económico é mínimo, o dólar em queda prejudica as exportações, e a carne de bovino tem cada vez mais interdições no mundo, 43 países, devido aos crescentes casos de febre aftosa.
Incompetente para realizar a tarefa de resolver as sucessivas crises no Brasil, em variados sectores, o Governo Lula procurou tapar o sol com o referendo. Sem êxito. Mais uma vez.
Seria bom que o presidente se desse conta de que os eleitores brasileiros estão a somar os insucessos do seu Governo presidencialista.



terça-feira, outubro 18, 2005

SEM AFTAS NA LÍNGUA

Brasil, o maior produtor de gado bovino do mundo. Uma manada de 190 milhões de cabeças, mais do que um animal por habitante.
Mato Grosso do Sul, o estado de maior concentração de gado, regista 24 milhões de animais.
Brasil, o maior exportador mundial de carne de bovino, enviou para o exterior, entre Outubro de 2004 e Setembro de 2005, 2,4 milhões de toneladas, no valor de 3,1 bilhões de dólares. A previsão para 2005 é de 8,5 milhões de toneladas.
Desde o início deste ano até Agosto, o maior comprador, a Rússia, contribuiu para a receita com 900 milhões de dólares. Os outros melhores clientes são o Egipto, a Holanda, a Grã-Bretanha, os Estados Unidos, o Chile e a Itália.
No mesmo período, Mato Grosso do Sul, o segundo maior estado em exportação, arrecadou 227 milhões, num total no país de 1 milhão e 700 milhões.
Era assim até ao passado dia 10, quando foi divulgada a existência de um surto de febre aftosa numa fazenda de Mato Grosso do Sul, perto da fronteira com o Paraguai.
A doença traduz-se pelo aparecimento de aftas na língua, nas tetas e junto dos cascos. Os animais deixam de comer, perdem peso, não dão leite, e acabam por ser sacrificados para evitar o contágio.
Apesar de terem sido abatidas 582 cabeças de gado, o embargo não se fez esperar. Não que a febre aftosa constitua algum perigo para a saúde pública. Mas dizima em pouco tempo manadas inteiras, desde que o vírus se propague, quer através dos animais vivos, quer da carne e derivados, quer, ainda, pela circulação de pessoas e veículos, ou quaisquer objectos em contacto com os animais doentes.
Por isso a importação foi interditada em todos os 25 países da União Europeia, na Rússia, na Argentina, no Paraguai, no Chile, no Uruguai, em Israel e na África do Sul. Ao todo, 32 países.
No dia seguinte, o presidente Luís Inácio Lula da Silva viajou para a Europa. Aconteceu o mesmo várias vezes. Estala uma crise e o presidente da República viaja. Ele não terá culpa da agenda. Mas a verdade é que a agenda nunca foi alterada, as viagens nunca foram adiadas, nunca delegou, nunca se substituiu. Pelo contrário, ele viaja, e atribui aos que ficam a responsabilidade de governar.
Em Portugal, primeira etapa do circuito europeu, um repórter pediu-lhe para comentar o surto de febre aftosa. Respondeu que o Governo nada tinha com isso, que fora libertada verba suficiente para a vigilância sanitária, e que a culpa era dos criadores que, provavelmente, não teriam vacinado os animais.
Com isto o presidente Lula conseguiu desencadear várias reacções que em nada o beneficiaram.
O ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimentos, Roberto Rodrigues, homem sem aftas na língua, veio a público dizer que a agricultura está num estado deplorável devido às altas taxas de juro, as maiores do mundo. Que a avicultura se encontra no fundo do poço. Que a agropecuária não apresenta melhor panorama.
Depois de criticar severamente a política económica de António Palocci, o ministro da Fazenda, querubim do presidente Lula, Roberto Rodrigues adiantou que a previsão de gastos para 2005 com a defesa vegetal e animal, orçada em 169 milhões de reais (com 1 real a cerca de 0,33 euros), foi reduzida de 78%, apesar dos seus apelos. Deste residual, apenas 35 milhões seriam destinados a erradicar a febre aftosa no país. E, mesmo assim, até 12 de Outubro só teriam sido consumidos uns escassos 1,6%, ou seja, 556 mil reais. Toda esta contenção é da responsabilidade do ministro Palocci.
Para Mato Grosso do Sul, nem um centavo, apesar da sua vulnerável fronteira de 700 quilómetros com o Paraguai, por onde passa contrabando de gado, muitas vezes doente.
O ministro da agricultura pede agora à Fazenda 80 milhões para combate à febre. Palocci, perante a situação, já disse que despacharia favoravelmente.
O Brasil, por cada real que não investiu em prevenção, está a perder 12 reais de arrecadação para os cofres do Estado. Mau negócio, esta poupança de quem gere a economia brasileira.
Outra reacção negativa foi a de Zé Teixeira, considerado um profundo conhecedor do assunto, deputado do estado de Mato Grosso do Sul, pelo Partido da Frente Liberal (PFL). Apesar de ser da oposição, Teixeira vê em Roberto Rodrigues um dos melhores ministros do Governo Lula, e diz esperar que ele não seja demitido pelas declarações que tem feito.
Também sem aftas na língua, Teixeira veicula a indignação dos secretários de agricultura de todos os estados, principalmente dos maiores produtores, perante as afirmações de Lula quanto à disponibilização de verbas para a febre aftosa, e quanto à responsabilidade dos criadores. Faz eco da opinião do ministro da agricultura, e devolve a culpa ao governo por não ter distribuído o dinheiro orçamentado.
Para Zé Teixeira, a fronteira com o Paraguai pode ser um foco de infecções, uma vez que ela é pouco vigiada, e as vacinas paraguaias não são confiáveis. Além disso, não se sabe se as condições de conservação dessas vacinas, que exigem baixas temperaturas, foram respeitadas.
Por outro lado, salienta o deputado, em Mato Grosso do Sul há 15,7 mil famílias nos assentamentos do Movimento dos Sem Terra (MST), famílias pobres, sem condições financeiras para custear as vacinas do gado.
Embora o Governo Lula faça doações de vacinas para a Bolívia e o Paraguai, aos seus cidadãos exige o cumprimento de determinadas formalidades. Uma delas é a inscrição no IAGRO, a Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal. Mas como mais de 30% dos assentamentos do MST estão nas mãos de pessoas sem título de propriedade, uma vez que as ocupações ainda não foram legalizadas, tais pessoas não podem efectuar a respectiva inscrição na Agência.
Ontem de manhã, de Itália, o presidente Lula da Silva garantiu que a febre aftosa já estava dominada no país. No fim do dia, o ministério da Agricultura divulgou a existência de outros três focos da doença, em Mato Grosso do Sul. Foram abatidos mais de 1000 animais.
O presidente Lula cultiva o hábito de afirmar o desconhecimento dos factos, tal como, desde Março, vem dizendo que não sabe de nada quanto aos escândalos político-financeiros que devastam o Brasil. Não se pode chamar-lhe mentiroso. Faça-se por acreditar que não sabe de nada.
Mas nem por isso se furta à crítica de estar lamentavelmente desinformado, e isso é inadmissível num presidente da República de um país com sistema presidencialista de governo.



segunda-feira, outubro 17, 2005

DIA DO PROFESSOR?...

Há poucos dias, as televisões transmitiram imagens da avenida Paulista, a principal artéria da cidade de São Paulo, a maior do Brasil, completamente bloqueada por professores que reivindicavam melhoria salarial.
Ao longo deste ano, várias greves de professores têm sido realizadas, pelo mesmo motivo. A mais recente foi a greve dos professores universitários.
Toda a gente concorda em que os salários dos professores, seja qual for o escalão e o nível de ensino, são baixos. Mas são baixos em função de quê?
Se fosse possível juntar num fórum representantes de todas as categorias profissionais, por certo se chegaria à conclusão de que cada uma delas se arrogava o direito de poder ser considerada a mais forte pedra basilar da sociedade.
Os políticos porque dirigem o país. Mas para que tudo corra em perfeito clima social, é necessário julgar e punir quem perturba a ordem. Aí entram os juízes e os advogados. Mas para julgar, é preciso apanhar os prevaricadores, papel das polícias. E quem prepara as polícias em cultura geral, específica, técnica, física? Os professores, claro. Mas os professores não ensinam sem um espaço adequado, construído por arquitectos, engenheiros, pedreiros, que, por sua vez, precisam de vendedores de materiais de construção, que por seu lado, não vendem sem que os fabricantes os produzam. E quem alimenta toda esta gente?
E assim por diante, numa cadeia imparável, que, com outras cadeias, contribui para a organização de uma teia de interdependências.
A verdade é que todas as profissões são cabíveis no tecido social, desde que condignamente exercidas, porque todas elas contribuem, ou deveriam contribuir, para o bem comum, para a felicidade de todos os cidadãos.
Voltando aos professores, eles estão, na generalidade, mal pagos, como todas as classes profissionais do Brasil, salvo algumas raras e escandalosas excepções elitistas.
Consta de relatórios internacionais que a distribuição da renda no Brasil é a 2ª mais injusta do mundo. O primeiro lugar pertence a um apagado país dos confins da África chamado Serra Leoa.
Por outro lado, seja qual for o grau de ensino que ministra, a responsabilidade que o professor tem de transmitir informação técnica e científica, transmissor do saber fazer, tem de estar aliada à responsabilidade de transmitir princípios de civismo e cidadania, transmissor do saber ser. A Escola não deve, ou não deveria, negar o seu papel na formação tanto profissional, como ética e social dos jovens.
De modo a cumprir estes objectivos, para além da competência específica, domínio das matérias e dos métodos pedagógicos, exige-se do professor gosto, vocação e empenho.
Cabe aqui perguntar quantos professores estarão em pleno nestas condições. Quantos fazem desta actividade, mais do que uma profissão, uma missão? Em contrapartida, quantos estão embalados pela epidemia do "deixa rolar" que contamina tantas outras actividades do país? Quantos se comportam como verdadeiros mercenários, apenas cumprindo um horário, à pressa, mal, sem preparação, sem eles próprios fazerem o trabalho de casa através da preparação de lições, do estudo continuado, da reciclagem? Quantos professores se preocupam com isto?
É verdade que todos temos de pagar o pão de cada dia, e, no fim do mês, a casa em que vivemos. Mas não é menos verdade que todos nós, cada um na sua profissão, tem de dar o melhor de si próprio, sincronizado com aquilo que faz. Para a enfermeira, o sangue é o seu dia-a-dia. Para o piloto, as alturas são o seu dia-a-dia. Para o professor, as crianças, os adolescentes e os jovens adultos são o seu dia-a-dia.
Reivindicar, sim e sempre, melhores condições de trabalho e de vida, mas tendo alguma coisa para, na mesma medida, dar em troca. Exigir e dar são faces da mesma moeda que se chama "contribuição individual para o desenvolvimento da sociedade".
O Dia do Professor foi comemorado no passado sábado 15. Nada mais legítimo, já que neste país de comemorações outras profissões são contempladas.
Segunda-feira 17 é dia dos que se dedicam ao comércio. Os órgãos de comunicação social divulgaram as actividades que estariam a funcionar, e as que cessariam para festejar o seu dia. Todas as lojas, na generalidade, fechadas. Bancos, repartições públicas, escolas, abertos.
É de espantar, pois, que as escolas, pelo menos no Recife, mas tudo leva a crer que foi a nível nacional, à revelia de pais e alunos, tivessem decidido suspender as aulas na segunda-feira, por transferência do Dia do Professor de sábado para este dia.
Que triste exemplo para a sociedade, em geral, e para os alunos, em particular, de quem os professores dizem ser necessário criar e incutir hábitos de trabalho.
Afinal, que fazem os professores no seu dia que não possa ser feito num sábado, e tenha de ser transposto para uma segunda-feira, dia de trabalho? Reúnem-se para discutir melhores programas, melhores métodos e sistemas de ensino? Reúnem-se para trocar experiências e enriquecer a sua bagagem? Reúnem-se para jornadas de luta onde possam exigir do ministério da tutela melhores condições de desempenho para todos os agentes e sujeitos envolvidos na aprendizagem?
Não. Nesse dia, dia de trabalho perdido, faz-se o aviltante elogio da preguiça, preguiça que, afinal, é factor de avaliação e classificação dos alunos no final do ano lectivo.
Que classificação merecem os professores, por conseguirem mais este dia de segunda-feira de não fazer nada? Isso fica à consideração de cada um e deles próprios.



sexta-feira, outubro 14, 2005

GOVERNO ENGOLIDO POR GREVE DE FOME

Fez greve de fome durante 11 dias e conseguiu o que queria.
Trata-se de Dom Luiz Flávio Cappio, franciscano brasileiro de 59 anos, bispo da Barra, cidade baiana a 610 quilómetros de Salvador, a capital do estado.
As razões que o levaram a esse extremo estão na intenção do Governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva levar a efeito a transposição do rio São Francisco, ou seja, o desvio de águas deste rio para rios, ribeiros e riachos das regiões nordestinas semi-áridas, as mais atingidas pela seca.
O "Velho Chico", tratamento carinhoso com que lhe prestam homenagem, é o maior dos rios que nascem no Brasil. Os seus 2.800 quilómetros banham 5 estados: Minas Gerais, onde se situa a nascente, Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco.
O projecto de transposição do rio, envolvendo 4,5 bilhões de reais (com um real a cerca de 0,33 euros), tem-se revelado polémico. Como tal, incentiva apoiantes e opositores. Independentemente de saber qual deles está em maior número, os debates públicos já realizados levam a crer que os que rejeitam o projecto apresentam mais e melhores argumentos, pelo menos de ordem técnica, a justificar as suas posições.
Os estados de Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, os grandes beneficiados, aplaudem a obra. Pernambuco, embora beneficiado também, não declara o seu voto enquanto não vir confirmada a realização no seu terreno de uma série de pequenos projectos hídricos pelos quais se bate. Os estados abastecedores, os cinco por onde o rio serpenteia, referidos mais acima, são francamente contra.
É curioso notar que nenhuma agência, nacional ou internacional, incluindo o FMI, quis financiar o projecto, e o Banco Mundial, em relatório divulgado, afirma que a transposição não visa o consumo humano, como alegam os seus defensores, mas sim a irrigação.
Um dos pontos quentes da controvérsia está, precisamente, na justificação para o empreendimento. Os que o defendem jogam com os 12 milhões de pessoas a beneficiar com água para beber. Os que o contestam apresentam números bem diferentes. Apenas pouco mais de um milhão poderiam beber dessa água. O resto estaria destinado a rega. Ou seja, os grandes beneficiados seriam pomares e agro-pecuárias.
Outra questão que cria reservas é a da oportunidade desta operação no contexto das prioridades dos estados semi-áridos, face a alternativas locais mais vantajosas,do ponto de vista técnico, económico e de objectivos.
Uma última questão prende-se com o rio em si mesmo. Os técnicos parecem unânimes em afiançar que o São Francisco está doente, poluído, morto nalguns locais. A transposição poderia comprometer de forma irreversível a sua vida já precária, e conduzir a um desastre ambiental.
Os opositores, segundo afirmam, não estão contra a ajuda a outros estados para minorar os efeitos da seca, como às vezes são acusados. Estão contra o projecto tal como ele foi construído, contra a falta de debate público em todos os patamares da sociedade brasileira, contra o aproveitamento político e demagógico que se pretende fazer desde 1982, e que agora, pela crise política do país, ganha nova dimensão como bandeira, e contra a paralisia da revitalização do rio, revitalização que tinha sido prometido pelo Governo, bem como o saneamento urgente em muitos locais necessitados ao longo do percurso, e para os quais libertaria 300 milhões de reais.
Quando foi anunciado o início das obras, o bispo Dom Luiz Flávio Cappio, formado em Economia e profundo conhecedor do rio, autor de um livro publicado sobre o assunto, deslocou-se à cidadezinha de Cobrobó, a 600 quilómetros do Recife, no estado de Pernambuco, ponto inicial da execução do projecto, e aí começou a greve de fome, como protesto.
Também quanto a isto as opiniões, e as correspondentes acções, se dividiram.
Organizaram-se romarias a Cobrobó, e o bispo teve a companhia permanente de muitos solidários com a sua posição.
A Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), na pessoa do presidente e do secretário-geral, colocou-se ao seu lado, embora com discrição.
Ostensivamente contra estiveram os bispos de Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco, os estados potencialmente beneficiados.
Perante a divisão na própria igreja católica, e as repercussões no mundo, o Vaticano interveio com uma carta de certa dureza para que o franciscano terminasse a greve. Apelou à vida, ao pecado que é o atentado à vida, à obrigação de conservar a vida e a saúde, e, como arma final, esgrimiu o argumento da obediência. Nada disto resultou. Dom Luiz Cappio continuou a greve.
A CNBB deixou de apoiar o clérigo, mas não se manifestou contra.
O presidente Lula da Silva e seus ministros consideraram, e declararam publicamente, a conduta do bispo como irresponsável e autoritária. Jaques Wagner, ministro da Secretaria das Relações Institucionais, disse à comunicação social que a preocupação do Governo em relação à greve era zero.
Mas quando a greve começou a ganhar mais apoios expressos, e o eco internacional subiu de tom, o próprio Jaques Wagner correu ao encontro de Dom Luiz Cappio, levando uma carta de Lula em que este prometia não iniciar as obras de transposição sem um largo debate público, e sem a revitalização prévia do rio.
Era acompanhado na missão pelo núncio apostólico no Brasil, o representante do Vaticano, D. Lorenzo Baldineri, que vinha reforçar o pedido feito por escrito pelos serviços do Papa para terminar a greve.
O bispo terminou a greve. Aparentemente, não por influência dos seus superiores religiosos, mas pela promessa de Lula, assinada no documento entregue pelo ministro Wagner. Avisou, no entanto, por causa de um dito por não dito que o ministro ensaiou no próprio local perante a imprensa, que se o presidente voltasse com a palavra atrás, ele retomaria a greve de fome até às últimas consequências, desta vez acompanhado por largo número de católicos que o apoiam.
Sobre a igreja a que pertence, nem uma palavra. A questão para o bispo é, pois, política, e ele parece não querer admitir interferências da Igreja a que pertence. De resto, tem-nas ignorado.
Deixemos agora a transposição com os seus adeptos e opositores. Deixemos também Dom Luiz Cappio nas intrincadas relações hierárquicas e canónicas da igreja católica. Pensemos noutra coisa.
O que terá levado o Governo do presidente Lula a ceder perante a greve de fome de um entre 184 milhões de brasileiros, sendo certo que ela não seria levada até à morte, quanto mais não fosse por intervenção directa da igreja católica?
O que terá levado o Governo do presidente Lula a ceder perante a greve de fome de um clérigo, quando tinha por si, contra essa greve, a hierarquia da igreja católica, as mais altas instâncias dessa hierarquia?
Será que o Governo do presidente Lula mentiu ao bispo Dom Luiz Cappio, ao prometer aquilo que não tem intenção de cumprir?
Será que o governo do presidente Lula espera que algo aconteça na carreira eclesiástica, ou na vida, do bispo Dom Luiz Cappio, que o impeça de continuar a ser um agente mediático, nacional e internacional, de oposição ao projecto de transposição das águas do rio São Francisco?
Ou será que esse projecto de 4,5 bilhões de reais, dos quais já foram gastos 12 milhões só em papelada para o formalizar, não é defensável, e, por isso, o governo abriu mão dele?
O tempo se encarregará de fornecer as respostas.
Para já, uma coisa parece certa. O Governo criou um precedente perigoso, porque a cedência foi a forma que encontrou para gerir a situação. E um Governo idóneo não pode ter dois pesos e duas medidas.
Já outro clérigo, o padre Djaci, de Santa Cruz, no Alto Sertão da Paraíba, ameaçou em 5 de Outubro que iniciaria uma greve de fome com os seus paroquianos, caso o Governo não solucionasse o problema da falta de água na sua região.
Qual o número de eclesiásticos no Brasil?



terça-feira, outubro 11, 2005

EQUÍVOCOS NA GREVE DOS BANCÁRIOS BRASILEIROS

Os bancários brasileiros iniciaram uma greve nacional na passada quinta-feira, 6 de Outubro.
A greve é um instrumento de pressão dos trabalhadores, previsto na Constituição Brasileira, e compete aos próprios trabalhadores, organizados em associações laborais, se as houver, ou em grupos constituídos para o efeito, decidir da sua justeza, convocação e realização.
Antes de mais, é preciso deixar claro que uma greve, só porque trata de reivindicação de salários num país pobre, não é necessariamente justa do ponto de vista social. A avaliação terá de passar pela integração comparativa do sector no contexto global do país. Carente de informação sobre o assunto, não me encontro em condições de apreciar tal justeza, deixando isso para os especialistas.
Por outro lado, tem-se alguma tendência para pensar, erradamente, que a greve não tem contornos legais, que ela poderá ser uma balbúrdia sem rei nem roque, a bel-prazer dos grevistas, de certa forma identificada com os desmandos próprios de situações revolucionárias. Nem isto é verdade, nem o Brasil vive uma situação revolucionária.
O direito à greve é uma conquista reconhecida pelos estados democráticos, e no Brasil encontra-se regulamentado de forma específica pela Lei 7783, de 28 de Junho (1989), e, tal como qualquer outra lei, ela tem de ser cumprida. Aqui começam os equívocos nesta greve dos bancários brasileiros.
À cabeça vem a interpretação que alguns quiseram fazer da liminar concedida aos grevistas, considerando a greve legal. Bem vistas as coisas, tal liminar é desnecessária, pois se não tivessem sido cumpridos os quesitos necessários para a sua convocação e realização, por certo os poderes públicos e o patronato envolvido já a teriam impugnado junto do judiciário.
Mais do que isso, essa liminar não vem dar aos bancários em greve, contrariamente ao que eles pretendiam, a cobertura para as acções que têm vindo a desenvolver na rua e no interior de alguns bancos, simplesmente porque elas estão a ser praticadas à margem da lei.
Segundo o artigo 2º da Lei 7783, acima referida, define-se greve como uma "suspensão colectiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador". Quer dizer: esgotadas todas as medidas de diálogo e negociação por parte dos trabalhadores para conseguir levar a bom termo as suas reivindicações laborais junto do patronato, poderão esses trabalhadores parar a produção, até se chegar a um acordo que contente as duas partes.
A greve tem como objectivo, pois, provocar algum prejuízo ao patrão, fazendo baixar os seus lucros, por paragem da máquina produtiva, para o obrigar a ceder. É um jogo de forças, que se pretende e exige que seja pacífico, característico do capitalismo.
Repare-se que o prejuízo, o fito que está na base da greve, tem de ser direccionado para o patrão, e não para o público consumidor. Pelo contrário, todo o sindicalista consciente deve organizar a greve de modo a conquistar para a sua causa largas fatias da população.
É por isso que a paralisação pura e simples e total das actividades nem sempre se mostra uma forma de luta eficaz. Não será mais incisiva uma greve nos bancos que pare toda a actividade nos serviços centrais, mas mantenha os pagamentos e recebimentos da clientela nas agências?
Um outro equívoco diz respeito a uma certa confusão quanto à propriedade dos espaços físicos e dos equipamentos das instituições de crédito. Uns e outros são propriedade do banqueiro, não do bancário. Uns e outros são colocados à disposição do funcionário para que ele cabalmente desempenhe as funções e cumpra as tarefas que aceitou no contrato de trabalho. Não pode, pois, o grevista dispor deles conforme lhe apeteça.
Os piquetes de greve não são proibidos, mas é preciso não confundir piquete de greve com brigada de obstrução. Os piquetes são fontes de esclarecimento da população quanto aos objectivos da greve, e de aliciamento de colegas para aderirem à greve. Nada mais do que isso.
Outro equívoco, ainda, está em identificar greve com encerramento de instalações. A lei é muito clara a este respeito. O artigo 11º diz que as actividades essenciais, nas quais a banca se inclui, têm de "garantir durante a greve a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade". E, no seu parágrafo único, esclarece que "são necessidades inadiáveis da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população". Ora, a satisfação destas necessidades depende, em grande parte, da possibilidade de ter dinheiro pronto para acorrer a elas.
Algumas possíveis conclusões a tirar da greve dos bancários que decorre no Brasil:
- as liminares não servem para salvaguardar os grevistas de punição por eventuais contravenções praticadas durante o exercício da greve;
- aos grevistas não é permitido impedir a população, seja a que pretexto for, de circular livremente nos espaços públicos do banco onde se encontram as caixas automáticas, nem, tão-pouco, o acesso a essas mesmas caixas; como depositantes do banco, os clientes não podem ser privados de realizar as operações que a instituição lhes disponibiliza, pois isso viola um dos seus direitos; o parágrafo 1º do artigo 6º reza que "em nenhuma hipótese os meios adoptados por empregados e empregadores poderão violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem";
- os grevistas que danifiquem equipamentos estão a incorrer em crime; o parágrafo terceiro do mesmo artigo 6º dispõe que os grevistas "não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa"; são inadmissíveis, portanto, actos de vandalismo como os que se verificaram em, pelo menos, uma agência, onde os grevistas derramaram óleo sobre as caixas automáticas, por forma a bloquear a aproximação do público e o desempenho dos equipamentos; gesto pouco abonatório de uma classe profissional considerada pela maioria da população, e por si própria, como de privilégio; gesto nada adequado às relações sociais num país que se pretende civilizado;
- as agências, todas as agências, têm de estar abertas para assegurar os serviços mínimos.
Hostilizar a população, já de si tão sofrida, e provocar a polícia, geralmente mal preparada para lidar com estas situações, em nada beneficiam os bancários em greve, pelo contrário.
A globalização propicia a solidariedade internacional, mas é preciso buscar essa solidariedade, em primeiro lugar, nos estratos sociais do próprio país.
Ostentando comportamentos elitistas, arrogantes e à margem da lei, os bancários brasileiros correm o risco de ficar isolados dos outros trabalhadores, e de estar a fornecer armas ao patronato, primeiros passos para perderem uma causa que, justa ou não, é a que defendem, com todo o direito que lhes assiste.



sexta-feira, outubro 07, 2005

QUANDO O POLÍCIA É O LADRÃO

Um dos mais preocupantes indicadores da subversão de princípios e valores na sociedade brasileira é o noticiário quotidiano sobre o envolvimento da polícia com o mundo do crime. Um envolvimento para além das suas atribuições profissionais. Um envolvimento para tirar vantagem desse mundo.
Dias há em que são divulgadas mais prisões de polícias do que de bandidos, e, quando tal acontece, alguma coisa vai mal no reino do carnaval.
Como poderei eu, cidadão de bem, confiar nestas polícias para defender o património público e privado? Como poderei eu, cidadão de bem, confiar nestas polícias para defender o meu património e de minha família? Como poderei eu, cidadão de bem, confiar nestas polícias para defender a minha família e a mim próprio?
Perguntas como estas, a que ninguém se digna responder, feitas por milhões de pessoas de bem que vivem neste país, sejam ou não brasileiras, estão legitimadas pelo comportamento obsceno e criminoso da polícia.
Quando o ladrão é da casa, o constrangimento é grande para a família. Quando a casa tem muitas portas e janelas e tudo se sabe na rua, o constrangimento torna-se ainda maior.
Quando é público e notório que o ladrão é o polícia da própria corporação onde o roubo foi praticado, não há constrangimento, há preocupação e desconfiança. Quando o roubo é praticado na corporação não por um, mas por vários polícias, então instala-se a insegurança nas ruas e estala mais um escândalo no país.
A operação Caravelas, planeada com esmero a partir de investigações que duraram mais de um ano, constituiu um êxito da colaboração das Polícias de Repressão a Entorpecentes do Rio de Janeiro, Goiás e Brasília.
A Polícia Federal (PF) entrou em acção na quinta-feira, 15 de Setembro. Foram presos sete integrantes de uma quadrilha internacional de portugueses e brasileiros que operava na Colômbia, Brasil, América do Norte e Europa. Apreendidas duas toneladas de cocaína, escondida em peças de carne congelada que seria exportada para Portugal, onde cada quilo poderia render 35 mil dólares. Confiscado dinheiro em moeda estrangeira (euro e dólar) e nacional, em valor superior a 3,5 milhões de reais (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros). Selada uma extensa propriedade cuja casa, só por si, está avaliada em 7 milhões de reais. Confiscados dez carros de luxo e uma lancha.
A PF comemorou com fogo de artifício.
Droga e dinheiro foram arrecadados na Superintendência da PF, no centro do Rio de Janeiro. Habitualmente, o dinheiro captado em circunstâncias semelhantes é encaminhado para um banco. Não foi explicada a razão deste procedimento excepcional.
Quatro dias depois, na manhã de segunda-feira 19, os agentes que se apresentam ao trabalho verificam que a porta onde estava guardado o dinheiro tinha sido arrombada, e que 2 milhões de reais haviam sumido.
A primeira versão de que as portas derrubadas seriam duas é rapidamente desmentida e substituída por outra em que o número de portas sobe para seis.
São afastados 60 agentes da PF, entre eles 5 delegados (o equivalente ao chefe da esquadra, em Portugal) que se encontravam de plantão nesse fim-de-semana.
As investigações iniciam-se com um grupo de agentes enquadrados por peritos criminalistas.
Duas semanas depois não há resultados quanto aos possíveis ladrões, que só podem ser da casa, pois claro, mas descobre-se, em contrapartida, que 20 quilos de cocaína, confiscados no ano passado e retidos na mesma sala onde se encontra a capturada na operação Caravelas, haviam sido substituídos por inofensivo pó branco.
Estes episódios rocambolescos obrigam a colocar algumas questões.
A primeira delas é a do comportamento desta polícia, com o passo certo e alinhado pela onda de corrupção que invadiu o país a partir de dentro.
Os maus exemplos dados pela classe política, aquela que deveria posicionar-se na sociedade como um modelo de ética, a surpreendente impunidade que acompanha os infractores ricos ou influentes, a passividade do Congresso, que começa a ser conluio, perante as manobras para abafar as devidas punições aos deputados implicados nos esquemas de suborno para compra de votos favoráveis ao Governo no Parlamento, as renúncias de mandato por parte de deputados implicados em baixezas que, deste modo, ficam à margem de qualquer consequência política, podendo voltar a candidatar-se dentro de alguns meses são outros tantos impedimentos a uma chamada geral à ordem e à moralidade, uma vez que as fontes civis de moralidade foram arrasadas pelos seus próprios actos imorais.
Outra questão é a do número de envolvidos. Não se circunscreveu a um qualquer Zé Ninguém da corporação a iniciativa e a execução do roubo. Nem podia, dado o volume e o grau de complexidade da operação. Para já, foram afastados 60 agentes, com altos responsáveis à mistura. Esta capilaridade mostra a que ponto se acha minada e contaminada a Polícia Federal nos seus vários escalões.
Outro ponto é o do processo de recrutamento e selecção destes e destas profissionais. Que critérios orientam a escolha de homens e mulheres a quem vão ser entregues armas de fogo, tecnologia sofisticada, autoridade, para perseguirem o crime, seja onde for e contra quem for, e não para se aliarem a ele? Que formação é ministrada a esta gente que acaba por pactuar com o crime e dele tirar vantagem, quando é paga com o dinheiro dos cidadãos de bem para o prevenir e combater?
Outro ponto, ainda, diz respeito às verbas envolvidas. Na operação Caravelas, os bens da organização criminosa até agora conhecidos da PF estão avaliados em 50 milhões de reais. A PF dispõe, para o combate ao tráfico de drogas em todo o país, por ano, de 12 milhões.
O produto da venda de veículos, de armas, de equipamentos e de propriedades apreendidos aos bandidos, de destino desconhecido, não poderia ser canalizado para as corporações de polícias responsáveis pelas respectivas operações, como dotação de verba extraordinária, com obrigatoriedade de prestação de contas? Parte dessa verba não poderia ser distribuída, a título de prémio, pelos agentes intervenientes no processo?
Estes são alguns dos temas que me ocorrem para debate, embora inseridos num contexto mais vasto e mais radical.
É preciso que o Legislativo produza leis realistas e com seriedade, não desperdiçando energias, tempo e dinheiro em estratégias para ganhar jogos de poder partidário. É preciso que o Executivo faça cumprir essas leis, doa a quem doer, não desperdiçando energias, tempo e dinheiro a tecer intrigas palacianas para dominar os outros Poderes, e tentar iludir, assim, a sua própria incompetência. É preciso que o judiciário julgue com isenção e puna exemplarmente, não desperdiçando energias, tempo e dinheiro a procurar ser do agrado de gregos e troianos, ou, o que é pior, a cultivar preconceitos que favorecem os poderosos e prejudicam os socialmente desfavorecidos.
É preciso, afinal, que toda esta gente exerça a função pública com integridade e competência, honestidade e empenho, sem a preocupação máxima e constante de tirar vantagem do povo para depressa e a qualquer preço enriquecer.
A não ser assim, a pouca-vergonha continuará a ser bandeira no Brasil.



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