A extensão do Brasil, praticamente do tamanho da Europa, desaconselha, principalmente para quem tem pressa, viagens que não sejam de avião. No entanto, os preços das passagens aéreas tornam proibitivo o uso sistemático daquele meio de deslocação, e mesmo o uso esporádico para os de mais fracas posses.
Como o transporte ferroviário é limitado a pequenos troços, a maior parte para o movimento de mercadorias, e outros apenas para fins turísticos, os passageiros deslocam-se, na sua quase totalidade, por estrada.
Para estas pessoas, urgência é palavra sem sentido. As viagens têm de ser programadas de modo a contar com vários dias de inutilidade absoluta até à chegada ao destino. Tudo isto se reflecte na actividade do país e no estilo de vida do povo, sendo certo que o próprio carácter do povo justifica a inexistência de meios mais expeditos de deslocação colectiva.
As empresas transportadoras cortam o território em todas as direcções, mas os serviços dos percursos mais longos, em particular no norte e no nordeste, são de muito má qualidade.
De Santa Catarina, um estado do sul, a Pernambuco, um estado do nordeste, distam cerca de 4 mil quilómetros. Fiz essa viagem de três dias e meio várias vezes, num e noutro sentido.
A primeira vez torna-se dolorosa. O percurso em auto-estrada é mínimo, comparado com a totalidade do trajecto. As estradas são francamente ruins, com quilómetros e quilómetros de buracos tipo cratera onde a viatura escoiceia, a velocidade de progressão é irritantemente reduzida, e os atrasos se acumulam em cada minuto. Esta é uma das razões porque em nenhum ponto de apoio nas diversas paragens se encontra um funcionário que, tanto por meios informáticos como por experiência própria, seja capaz de dizer, ou, ao menos, prever a hora de chegada ao destino. Só perto do final, a uns escassos 200 ou 300 quilómetros, é possível ter alguma informação quanto a este detalhe, e, mesmo assim, timidamente estimada.
Depois habituamo-nos, embora cada viagem possa ser considerada uma aventura diferente; basta o facto de serem diferentes os passageiros que connosco viajam.
Nesta rota operam duas companhias de autocarros, aqui chamados ônibus, ônibus interestaduais. Nenhuma delas é melhor que a outra. Experimentei ambas, e optei por aquela que não oferece serviço de vídeo, uma presença incomodativa, desinstrutiva, repetitiva. Em todas as viagens ao longo do ano os mesmos documentários, as mesmas entrevistas, as mesmas farsas imbecis, tudo retirado da programação da TV de meses atrás.
Em viaturas que pouco mais são que autocarros urbanos, de bancos apertados, incómodos, sem respeito pelas distâncias que deveriam preservar a intimidade de cada viajante, o conforto resume-se a um sanitário, por vezes sujo e fedorento, alguma água potável em copos herméticos que ao fim de duas horas já está intragável de quente, um ar condicionado que nem sempre funciona em condições, quando não está mesmo avariado, e bancos recostáveis a 65 graus.
Este carro é o do tipo "executive". Há também o "convencional", sem água, sem ar condicionado, com menor inclinação dos bancos e mais barulhento. No topo de gama existe o "leito" que, em relação ao "executive" tem a mais um descanso para os pés, de modo a simular de longe uma cama em plano inclinado, um lençol, um cobertor e uma almofada, e vidros fumados. Tudo isto, claro a preços diferentes.
Ao longo destes quilómetros, de quatro em quatro horas de marcha os motoristas são rendidos nos pontos de apoio, para que se possa rodar dia e noite. Ao todo, sete ou oito motoristas, na generalidade cordiais e competentes.
Estas paragens obrigatórias tornam o sono um pesadelo no fim dos três dias.
Paragens curtas, de quinze minutos, para um café, uma pequena compra, petiscar qualquer coisa, estender as pernas, ou, simplesmente, utilizar os sanitários do terminal rodoviário – os passageiros preferem conservar o do ônibus para situações de emergência.
Paragens mais longas, de trinta minutos, às vezes estendidas por quarenta ou cinquenta devido à indisciplina dos passageiros. Paragens destinadas a almoço ou jantar, ou a lavagens sumárias que, no Verão, podem chegar ao banho completo para quem quiser arriscar na higiene do balneário e no consumo do tempo, já que, neste particular, banho e alimentação se tornam incompatíveis nos escassos trinta minutos, pelo menos teóricos. É durante estes intervalos maiores que se faz a limpeza e o abastecimento de água e de combustível do veículo.
Nos pontos de apoio há de tudo: um escritório da empresa com gente que quer ser eficaz, mas, como já se viu, nem sempre consegue satisfazer em informações esclarecedoras, a tempo e fidedignas; áreas de restauração; lojas de conveniência e de artesanato; sanitários, geralmente grandes, com ducha. Caixas automáticas para levantamento de dinheiro, nem pensar.
Ao longo do percurso encontram-se os mais diversos tipos de pontos de apoio, com múltiplas possibilidades de combinação das variáveis tamanho, decoração, higiene, atendimento, qualidade de comida, preço. Desde espaços luxuosos com alguma sofisticação, até áreas modestas e apertadas, a lembrar velhas cabanas dos desertos americanos. Desde sanitários de que nos orgulharíamos nas nossas casas, atraentes e higienizados, até latrinas nauseabundas e de aspecto capaz de reter as mais prementes necessidades fisiológicas.
De sul para norte se nota a diferença. À medida que nos afastamos dos ricos e vistosos estados do sul, e nos aproximamos do pobre e muitas vezes mal-parecido Nordeste, pioram a olhos vistos as condições de apresentação e higiene dos pontos de apoio.
Num fim de tarde, à hora normal de jantar, deixei Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, num luxuoso ônibus, com destino a São Paulo, 12 horas de viagem. Aí chegado, esperei sete horas pelo autocarro que me levaria até Recife, capital de Pernambuco, durante três dias, sem qualquer comparação possível com o que me tinha transportado para São Paulo.
A quatrocentos e cinquenta quilómetros de caminhada, numa daquelas paragens para almoçar, o motorista detectou uma avaria que impossibilitava seguir viagem.
O mecânico escalado para estar de plantão naquele posto encontrava-se, por razões desconhecidas, a 25 quilómetros dali. Não se tratava de ter ido a casa, pois morava a escassos mil e duzentos metros do local. Um outro autocarro que por ali preguiçava sem destino nem projecto foi buscá-lo.
O homem, visivelmente contrariado, dirigiu-se indolentemente ao escritório da companhia onde fez vários telefonemas de utilidade duvidosa. Depois, ainda mais contrariado e lento, deslocou-se até ao ônibus já postado na rampa da oficina rudimentar. Contrariamente à esperança do motorista, de que seria uma mera e simples afinação, o veredicto do mecânico, sibilante e de saboreado sadismo, foi-nos atirado à cara como uma pedrada: o carro precisava de substituição de uma peça, e, com aquela deficiência, não sairia dali à sua responsabilidade.
O posto não possuía essa peça. Seria preciso deslocar-se à cidade mais próxima, percorrer várias lojas até a encontrar, regressar, substituí-la e testar o carro. Na hipótese optimista de se conseguir a peça no mercado local, coisa que não estava garantida, bem pelo contrário, teríamos pela frente, se tudo o mais corresse bem, de três a quatro horas de espera. Entretanto, os trinta minutos da paragem para almoço já se prolongavam por hora e meia.
O motorista sugeriu, então, que se prosseguisse viagem numa viatura tipo "convencional", desconfortável, é certo, mas a única disponível naquele posto para nos transportar. Os passageiros entreolharam-se, não queriam perder mais tempo, e aceitaram, resignados e sem contestação. À laia de consolo, o motorista garantiu que aquele carro, embora mais antigo, aguentava melhor os embates nos buracos que se avizinhavam durante os próximos 60 quilómetros.
Não conformado, ofereci alguma resistência, sem êxito. Falei de mau serviço, de irresponsabilidade, de incompetência, sem sucesso. Exigi, enfim, do chefe do escritório que no próximo posto, a umas tenebrosas oito horas de caminho, estivesse à nossa espera um carro de categoria semelhante à do serviço que tínhamos comprado. Com a promessa vaga de que iria tentar, e a minha insistência acompanhada de ameaça de que poria o caso na justiça, entrámos no "convencional".
Medonho. Mau cheiro, barulho do motor, má suspensão, deficiente calafetagem das janelas que deixavam entrar de rompante fiozinhos de ar agreste teriam tornado aquelas oito horas num massacre, se não fora a promessa de melhores condições a partir do próximo posto, seiscentos quilómetros adiante.
Chegámos com os ossos e os músculos martirizados.
Surpresa, apesar de tudo não tão inesperada quanto isso, surpresa, surpresa, nenhum outro carro nos aguardava.
Os passageiros, como bons e desde sempre brasileiros que conheciam o sistema, condescendiam. Uns remetiam-se a um silêncio confrangedor. Outros filosofavam que "viajar tem destas coisas".
Sozinho, dirigi-me ao escritório da companhia, lembrando-me, vagamente, da perda dos caixotes no romance "A cidade e as serras", de Eça de Queiroz.
Perguntei pelo carro prometido. Ninguém entendeu a pergunta porque ninguém sabia de nada. Falei alto em jornais e tribunais. Então, introduziram-me no escritório do responsável, onde, confortavelmente instalado num sofá, assisti a duas ou três conversas telefónicas de emergência, em que o chefe do posto estava tão solidário com a minha irritação que parecia ele próprio uma das vítimas.
Saí dali com a promessa de que uma nova viatura estaria à nossa espera no posto seguinte, a mais 5 horas de martírio, ou seja, cerca de 350 km.
Aguentámos com bravura e, por consolação, tivemos a grata surpresa, agora sim, surpresa, de ver a promessa cumprida. Às três da manhã, um "executive" aguardava-nos, expressamente deslocado de uma cidade a 150 km dali.
Quando eu e os meus ensonados companheiros começámos a transferir as bagagens de um para outro autocarro, pareceu-me adivinhar nalguns deles, em particular nos que transportavam crianças adormecidas, roupas de cama e volumosos pacotes em profusão, um arremedo de fúria assassina dirigida ao autor dos protestos pela qualidade da viagem, ou seja, eu próprio.
Já no Recife, dois ou três dias após a chegada, apresentei por e-mail uma exposição à empresa. Telefonaram. Quiseram pormenores. Agradeceram. Pediram desculpas. Daí a um mês levantei num dos seus escritórios um bilhete de passagem completamente gratuito, válido por um ano, contra uma declaração minha em como prescindia de qualquer pedido de indemnização ou acção judicial. Não foi elegante, mas, creio, foi muito para o que é costume fazer-se nesta terra.
Já se passaram meses sobre esta viagem. Hoje o serviço prestado deve estar francamente pior, já que as duas empresas transportadoras se fundiram, deixando, assim, de haver concorrência. Além disso, o brasileiro não cuida dos seus direitos. Não protesta de forma persistente nem consequente. Para ele quase tudo está bem, desde que não dê trabalho, não dê incómodo, não exija disponibilidade.E quem se dispuser a fazer valer direitos, os direitos deles, se isso os obrigar a mexer, a quebrar a inércia, a desinstalar, arrisca-se a ser quase linchado em praça pública.
Enfim, esta memorável viagem é digna da cantiga que diz: "Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Mas que beleza...".