CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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sexta-feira, outubro 07, 2005

QUANDO O POLÍCIA É O LADRÃO

Um dos mais preocupantes indicadores da subversão de princípios e valores na sociedade brasileira é o noticiário quotidiano sobre o envolvimento da polícia com o mundo do crime. Um envolvimento para além das suas atribuições profissionais. Um envolvimento para tirar vantagem desse mundo.
Dias há em que são divulgadas mais prisões de polícias do que de bandidos, e, quando tal acontece, alguma coisa vai mal no reino do carnaval.
Como poderei eu, cidadão de bem, confiar nestas polícias para defender o património público e privado? Como poderei eu, cidadão de bem, confiar nestas polícias para defender o meu património e de minha família? Como poderei eu, cidadão de bem, confiar nestas polícias para defender a minha família e a mim próprio?
Perguntas como estas, a que ninguém se digna responder, feitas por milhões de pessoas de bem que vivem neste país, sejam ou não brasileiras, estão legitimadas pelo comportamento obsceno e criminoso da polícia.
Quando o ladrão é da casa, o constrangimento é grande para a família. Quando a casa tem muitas portas e janelas e tudo se sabe na rua, o constrangimento torna-se ainda maior.
Quando é público e notório que o ladrão é o polícia da própria corporação onde o roubo foi praticado, não há constrangimento, há preocupação e desconfiança. Quando o roubo é praticado na corporação não por um, mas por vários polícias, então instala-se a insegurança nas ruas e estala mais um escândalo no país.
A operação Caravelas, planeada com esmero a partir de investigações que duraram mais de um ano, constituiu um êxito da colaboração das Polícias de Repressão a Entorpecentes do Rio de Janeiro, Goiás e Brasília.
A Polícia Federal (PF) entrou em acção na quinta-feira, 15 de Setembro. Foram presos sete integrantes de uma quadrilha internacional de portugueses e brasileiros que operava na Colômbia, Brasil, América do Norte e Europa. Apreendidas duas toneladas de cocaína, escondida em peças de carne congelada que seria exportada para Portugal, onde cada quilo poderia render 35 mil dólares. Confiscado dinheiro em moeda estrangeira (euro e dólar) e nacional, em valor superior a 3,5 milhões de reais (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros). Selada uma extensa propriedade cuja casa, só por si, está avaliada em 7 milhões de reais. Confiscados dez carros de luxo e uma lancha.
A PF comemorou com fogo de artifício.
Droga e dinheiro foram arrecadados na Superintendência da PF, no centro do Rio de Janeiro. Habitualmente, o dinheiro captado em circunstâncias semelhantes é encaminhado para um banco. Não foi explicada a razão deste procedimento excepcional.
Quatro dias depois, na manhã de segunda-feira 19, os agentes que se apresentam ao trabalho verificam que a porta onde estava guardado o dinheiro tinha sido arrombada, e que 2 milhões de reais haviam sumido.
A primeira versão de que as portas derrubadas seriam duas é rapidamente desmentida e substituída por outra em que o número de portas sobe para seis.
São afastados 60 agentes da PF, entre eles 5 delegados (o equivalente ao chefe da esquadra, em Portugal) que se encontravam de plantão nesse fim-de-semana.
As investigações iniciam-se com um grupo de agentes enquadrados por peritos criminalistas.
Duas semanas depois não há resultados quanto aos possíveis ladrões, que só podem ser da casa, pois claro, mas descobre-se, em contrapartida, que 20 quilos de cocaína, confiscados no ano passado e retidos na mesma sala onde se encontra a capturada na operação Caravelas, haviam sido substituídos por inofensivo pó branco.
Estes episódios rocambolescos obrigam a colocar algumas questões.
A primeira delas é a do comportamento desta polícia, com o passo certo e alinhado pela onda de corrupção que invadiu o país a partir de dentro.
Os maus exemplos dados pela classe política, aquela que deveria posicionar-se na sociedade como um modelo de ética, a surpreendente impunidade que acompanha os infractores ricos ou influentes, a passividade do Congresso, que começa a ser conluio, perante as manobras para abafar as devidas punições aos deputados implicados nos esquemas de suborno para compra de votos favoráveis ao Governo no Parlamento, as renúncias de mandato por parte de deputados implicados em baixezas que, deste modo, ficam à margem de qualquer consequência política, podendo voltar a candidatar-se dentro de alguns meses são outros tantos impedimentos a uma chamada geral à ordem e à moralidade, uma vez que as fontes civis de moralidade foram arrasadas pelos seus próprios actos imorais.
Outra questão é a do número de envolvidos. Não se circunscreveu a um qualquer Zé Ninguém da corporação a iniciativa e a execução do roubo. Nem podia, dado o volume e o grau de complexidade da operação. Para já, foram afastados 60 agentes, com altos responsáveis à mistura. Esta capilaridade mostra a que ponto se acha minada e contaminada a Polícia Federal nos seus vários escalões.
Outro ponto é o do processo de recrutamento e selecção destes e destas profissionais. Que critérios orientam a escolha de homens e mulheres a quem vão ser entregues armas de fogo, tecnologia sofisticada, autoridade, para perseguirem o crime, seja onde for e contra quem for, e não para se aliarem a ele? Que formação é ministrada a esta gente que acaba por pactuar com o crime e dele tirar vantagem, quando é paga com o dinheiro dos cidadãos de bem para o prevenir e combater?
Outro ponto, ainda, diz respeito às verbas envolvidas. Na operação Caravelas, os bens da organização criminosa até agora conhecidos da PF estão avaliados em 50 milhões de reais. A PF dispõe, para o combate ao tráfico de drogas em todo o país, por ano, de 12 milhões.
O produto da venda de veículos, de armas, de equipamentos e de propriedades apreendidos aos bandidos, de destino desconhecido, não poderia ser canalizado para as corporações de polícias responsáveis pelas respectivas operações, como dotação de verba extraordinária, com obrigatoriedade de prestação de contas? Parte dessa verba não poderia ser distribuída, a título de prémio, pelos agentes intervenientes no processo?
Estes são alguns dos temas que me ocorrem para debate, embora inseridos num contexto mais vasto e mais radical.
É preciso que o Legislativo produza leis realistas e com seriedade, não desperdiçando energias, tempo e dinheiro em estratégias para ganhar jogos de poder partidário. É preciso que o Executivo faça cumprir essas leis, doa a quem doer, não desperdiçando energias, tempo e dinheiro a tecer intrigas palacianas para dominar os outros Poderes, e tentar iludir, assim, a sua própria incompetência. É preciso que o judiciário julgue com isenção e puna exemplarmente, não desperdiçando energias, tempo e dinheiro a procurar ser do agrado de gregos e troianos, ou, o que é pior, a cultivar preconceitos que favorecem os poderosos e prejudicam os socialmente desfavorecidos.
É preciso, afinal, que toda esta gente exerça a função pública com integridade e competência, honestidade e empenho, sem a preocupação máxima e constante de tirar vantagem do povo para depressa e a qualquer preço enriquecer.
A não ser assim, a pouca-vergonha continuará a ser bandeira no Brasil.



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