CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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terça-feira, outubro 25, 2005

TAPAR O SOL COM O REFERENDO

Nem sempre um referendo num país constitui um gesto democrático por parte das autoridades que governam. Há países, democráticos desde há séculos, que nunca fizeram um referendo. Outros, também velhos na democracia, o fizeram uma ou duas vezes, no máximo.
Isto prova que há mecanismos de governação, tanto ou mais democráticos, para fazer boa gestão da coisa pública, da
res publica, como diziam os romanos, da República, pois.
Muitas vezes, encarar a opção pelo referendo não passa de um ensaio para lavar as mãos, à maneira de Pilatos, uma conduta de afastamento de quem não tem uma solução, ou de quem não quer comprometer-se com a solução que se impõe.
Foi o que aconteceu no Brasil no passado domingo 23, com o referendo sobre o comércio de armas e munições. Falsa questão.
O Governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva atirou para cima do povo a responsabilidade de decidir se esse comércio deveria ou não ser permitido, advertindo de que a sua liberalização é responsável pela violência, e, ao contrário, a proibição a extinguiria.
Puro engano, porque os números, no Brasil e no resto do mundo, dizem há muito que não é assim. Os EUA, a Inglaterra, a Suíça, o Japão e a Argentina, todos eles, cada um à sua maneira, uns fortemente armados, outros completamente desarmados, comprovam que não há relação entre a liberalização do comércio de armas e o índice de violência nos respectivos países.
Curioso notar que no próprio Brasil, no estado do Rio Grande do Sul, na fronteira meridional, onde se encontra o maior número de armas cadastradas por habitante no país, e, ao mesmo tempo, onde se regista o menor número de crimes por armas de fogo, o resultado do referendo tenha sido 86,8% a favor da liberalização do comércio de armas.
Por outro lado, grande parte das armas utilizadas na violência neste país nem sequer podem ser compradas em armeiros, como sejam metralhadoras e espingardas exclusivas das forças armadas, nacionais e estrangeiras, ou pistolas e revólveres de calibre utilizado "apenas" pelos militares e as polícias.
O referendo estava enfermo de má-fé em muitos aspectos. Para além dos já referidos acima, um outro consistia na própria formulação da pergunta.
"O comércio de armas e munição deve ser proibido no Brasil?".
Pergunta traiçoeira, logo, desonesta, porque induz, ela própria, uma resposta, e porque a forma como está construída confunde o cidadão. É preciso não esquecer a elevada taxa de analfabetismo funcional no Brasil.
Até poucos dias antes do voto nas urnas, inquéritos de rua verificaram que os interrogados davam respostas erradas. Isto é, por má interpretação da pergunta, diziam o contrário do que queriam exprimir.
Significativo que o "Sim" tenha revelado, pouco depois do início da campanha, mais de 80% das intenções de voto, e que tenha obtido menos de 40% dos votos expressos.
Não foi por desconhecimento técnico sobre a construção de perguntas para referendo que isto aconteceu, mas por razões subterrâneas bem determinadas.
A frente do "Sim" rejeitou uma proposta do grupo "Não" para alterar a forma como a pergunta estava formulada, de modo a torná-la mais compreensível. Contra todas as defesas que o "Sim" possa fazer, as evidências da recusa apontam no sentido de tentar criar e manter confusão na cabeça dos eleitores.
A filosofia e a conduta das duas frentes foram bem distintas ao longo da campanha.
O grupo que defendia o "Não" trouxe a público dados, estatísticas e testemunhos simples, idóneos e incontestáveis. Pôs o dedo na ferida, ao chamar a atenção, directa ou indirectamente, para as causas da violência no Brasil, para quem a pratica, como e porquê, e para a incapacidade do Governo em garantir a segurança dos cidadãos.
A frente do "Sim" foi liderada pelo presidente do Senado, um senador pelo estado de Alagoas, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), da base aliada do Governo Lula. Por aqui se percebe o interesse do Governo em que o resultado do referendo fosse "Sim" à proibição do comércio de armas e munições no Brasil. As razões disso veremos mais à frente.
O "Sim" enveredou, muitas vezes, pela demagogia, pela distorção das estatísticas, pela ocultação das razões de fundo da violência. Escolheu para figuras de apelação da campanha artistas de novela e cantores da moda, e não escapou à crítica pública, e verdadeira, de que essas vedetas circulam protegidas por guarda-costas armados, e vivem em residências que mais parecem abrigos militares, providos de todas as possíveis condições técnicas e humanas de protecção.
O "Sim", por estas e outras razões, perdeu. Mas não se julgue que os resultados foram devidos à maior ou menor penetração das campanhas nas massas populares. Isso seria considerar, incorrectamente, que o brasileiro é de menoridade mental.
Num conjunto de 122 milhões de eleitores, o "Não" ganhou com cerca de dois terços dos votos expressos, 98 milhões.
Afinal, a quem interessava a vitória do "Sim", que retiraria aos brasileiros um direito consignado no Estatuto de Desarmamento, em vigor desde Dezembro de 2003?
Pelas posições que tomou neste assunto, parece evidente que o Governo de Lula da Silva, que até agora se tem mostrado impotente para resolver o problema da criminalidade e da segurança pública da população, vai escudar-se nos resultados que o povo expressou nas urnas para imputar a esse povo, como consequência dessa expressão, a continuação, ou o aumento, da criminalidade no país. Ou seja, vai afirmar que o povo quis as armas de fogo à descrição nas lojas, por isso os crimes com arma de fogo aumentaram. Tal afirmação foi insinuada antes do referendo, durante a campanha, pela frente do "Sim" e por interpostos políticos fiéis ao governo.
Mais um equívoco. As armas de fogo produzidas no Brasil destinam-se, em maior percentagem, à exportação. Vendem-se legalmente no comércio interno cerca de 3000 por ano. As autoridades estimam que as armas clandestinas, adquiridas ilegalmente, totalizam à volta de 20 milhões. Portanto, a tese do Governo e de seus apoiantes nesta matéria cai por terra.
Para alguns governos, como está sobejamente estampado na História, o desarmamento completo dos cidadãos é fundamental para a conquista e manutenção do Poder. População desarmada é população vulnerável perante aventuras totalitárias de governantes com tendências ditatoriais.
Benjamim Franklin, o jornalista e político americano (1706-1790), dizia: "quando todas as armas forem de propriedade do governo, este decidirá de quem são as outras propriedades".
Algumas vozes respeitadas no Brasil tocaram neste assunto melindroso.
Os escândalos político-financeiros que, desde Maio deste ano, têm vindo a público no Brasil, revelaram um vasto esquema de corrupção envolvendo parlamentares, vereadores e empresários, com possíveis capilaridades difusas ao judiciário e às polícias, engendrado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o partido do presidente, com vista a perpetuar, segundo opiniões abalizadas, o domínio do aparelho do Estado, naquilo a que essas opiniões chamaram de ditadura branca mascarada de democracia.
Para os defensores desta teoria, a vitória do "Sim" seria uma vitória do Governo, na rota dos seus objectivos.
O "Sim" também seria vantajoso para o Movimento dos Sem Terra (MST), de resto, eles próprios a favor desta alternativa.
De há bastante tempo a esta parte, o Movimento, ou algumas das suas facções, têm vindo a invadir e a ocupar fazendas produtivas, muitas delas de capitais estrangeiros ou mistos, criadoras de alguns milhares de postos de trabalho, directos e indirectos. Justificação: não produzem alimentos. Aparentemente, desde que não haja cultivo de terrenos agrícolas para alimentação humana, a unidade de produção não serve os interesses do povo, mesmo que milhares de cabeças de gado e alguns hectares de árvores para pasta de papel possam constituir uma verdadeira riqueza nacional.
Em algumas destas fazendas o MST tem deparado com resistência armada dos proprietários, dificultando as invasões.
Ao ser proibido o comércio de armas e munições, os fazendeiros seriam privados dos seus meios de legítima defesa, e a ocupação das propriedades estaria, teoricamente, facilitada.
A vitória do "Sim" beneficiaria, também e sem sombra de dúvida, o banditismo. Aqui em duas vertentes.
Ao saberem o povo desarmado, os roubos e furtos, os assaltos a pessoas e bens, os sequestros, os estupros seriam mais rápidos, simples e seguros. A possibilidade de as vítimas virem a responder com potencial de fogo igual ou superior ao do bandido, poderá criar neste algumas reservas. Mas sabendo de antemão que a pessoa de bem está desarmada, o crime corre fluido, sem obstáculos.
Por outro lado, a proibição do comércio de armas e munições levaria os portadores legalizados a procurar obter por outras vias os meios de defesa de si próprios, de suas famílias e de seus bens.
Não se cogita que uma família que viva numa fazenda perdida no meio de um deserto fique à espera de eventuais assaltantes munidos com armas de fogo, confiando nas pedras ou nos paus que amontoou atrás da porta.
A fonte de fornecimento das munições a que os cidadãos com direito a porte de arma seriam obrigados a recorrer estaria nas redes de contrabando que se formariam para o efeito, alargando as já existentes. Ou seja, a defesa pessoal contra o crime alimentar-se-ia do próprio crime.
Para encurtar o rol, outros beneficiados com a pretendida proibição seriam as empresas de segurança. Tais empresas, hoje, já arrecadam qualquer coisa como 13 mil reais por mês (com 1 real a cerca de 0,33 euros), em média, por pessoa, a quem prestam segurança privada, segundo dados fornecidos por empresário do ramo. Com o aumento previsível de criminalidade, ou, pelo menos, com o aumento do medo que a situação criaria, as empresas de segurança privada veriam a sua facturação florescer, com óbvio prejuízo de quem não tivesse disponibilidade financeira para assegurar tais serviços. Ou seja, a maioria da população.
O referendo foi não só inoportuno como desnecessário. Mas acabou por não ser de todo inútil, na medida em que permitiu tirar algumas conclusões que deveriam constituir motivo sério de reflexão e acção por parte das autoridades municipais, estaduais e federais.
A primeira foi a maturidade e o discernimento do povo brasileiro. Talvez houvesse muita gente a desdenhar de tais qualidades, e que, perante os resultados, teve de se acoitar no aconchego de falsas explicações quanto a esses mesmos resultados, para tentar iludir receios que eles trouxeram à luz do dia.
O povo não só não se deixou intimidar com argumentos enganosos, como não prescindiu de um direito constitucional e, acima de tudo, natural: o direito inalienável à defesa pessoal, da família e dos bens.
Outra inferência foi a da inaptidão do Governo Lula para administrar as verbas que arrecada dos impostos dos cidadãos. Em 2005 as polícias foram dotadas de 109 milhões de reais para o seu apetrechamento. O referendo, cujos resultados em nada mudaram o quadro em que se vivia, custou aos cofres, ao bolso do contribuinte, 500 milhões. Sem mais comentários.
Finalmente, com o referendo, as discussões que ele proporcionou e os respectivos resultados, se ficou a perceber claramente a ineficácia do Governo para resolver o problema da segurança pública. E mais. Ficou mostrado que o povo tem nítida consciência disso.
Nas manchetes dos jornais, das rádios e das televisões o espaço e o tempo de antena são disputados pelos crimes do dia e pelos escândalos de corrupção na vida política.
O Governo Lula não consegue impor moralidade na prática política porque o seu próprio partido, PT, é a fonte e o foco dos escândalos.
O Governo Lula não consegue criar uma estratégia de segurança pública, da mesma forma que se tem mostrado incompetente para solucionar os problemas com os quais ela se relaciona e dos quais depende.
A distribuição de renda é a segunda mais injusta do mundo.
O emprego não é criado ao ritmo do crescimento da população activa e do termo da preparação escolar.
A Escola não motiva os professores a cumprirem o seu papel na formação pedagógica, didáctica e cívica dos alunos.
A legislação penal favorece a impunidade.
As verbas destinadas à segurança pública, polícias e sistema penitenciário, vêm sendo sistematicamente reduzidas de ano para ano.
A corrupção rola em todo o aparelho do Estado, o que conferiu recentemente ao Brasil a classificação de 3,7 numa escala de 0 a 10, em que 10 representa o máximo de honestidade e 0 o mínimo, por parte de uma idónea organização internacional.
O presidente Lula, incapaz já de governar, limita-se a alardear todos os dias que a economia brasileira atravessa o melhor momento dos últimos 30 anos. Mas o emprego nalguns sectores decai, a produção industrial diminui, os juros são os mais elevados do mundo, o crescimento económico é mínimo, o dólar em queda prejudica as exportações, e a carne de bovino tem cada vez mais interdições no mundo, 43 países, devido aos crescentes casos de febre aftosa.
Incompetente para realizar a tarefa de resolver as sucessivas crises no Brasil, em variados sectores, o Governo Lula procurou tapar o sol com o referendo. Sem êxito. Mais uma vez.
Seria bom que o presidente se desse conta de que os eleitores brasileiros estão a somar os insucessos do seu Governo presidencialista.



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