CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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sexta-feira, outubro 14, 2005

GOVERNO ENGOLIDO POR GREVE DE FOME

Fez greve de fome durante 11 dias e conseguiu o que queria.
Trata-se de Dom Luiz Flávio Cappio, franciscano brasileiro de 59 anos, bispo da Barra, cidade baiana a 610 quilómetros de Salvador, a capital do estado.
As razões que o levaram a esse extremo estão na intenção do Governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva levar a efeito a transposição do rio São Francisco, ou seja, o desvio de águas deste rio para rios, ribeiros e riachos das regiões nordestinas semi-áridas, as mais atingidas pela seca.
O "Velho Chico", tratamento carinhoso com que lhe prestam homenagem, é o maior dos rios que nascem no Brasil. Os seus 2.800 quilómetros banham 5 estados: Minas Gerais, onde se situa a nascente, Bahia, Sergipe, Alagoas e Pernambuco.
O projecto de transposição do rio, envolvendo 4,5 bilhões de reais (com um real a cerca de 0,33 euros), tem-se revelado polémico. Como tal, incentiva apoiantes e opositores. Independentemente de saber qual deles está em maior número, os debates públicos já realizados levam a crer que os que rejeitam o projecto apresentam mais e melhores argumentos, pelo menos de ordem técnica, a justificar as suas posições.
Os estados de Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, os grandes beneficiados, aplaudem a obra. Pernambuco, embora beneficiado também, não declara o seu voto enquanto não vir confirmada a realização no seu terreno de uma série de pequenos projectos hídricos pelos quais se bate. Os estados abastecedores, os cinco por onde o rio serpenteia, referidos mais acima, são francamente contra.
É curioso notar que nenhuma agência, nacional ou internacional, incluindo o FMI, quis financiar o projecto, e o Banco Mundial, em relatório divulgado, afirma que a transposição não visa o consumo humano, como alegam os seus defensores, mas sim a irrigação.
Um dos pontos quentes da controvérsia está, precisamente, na justificação para o empreendimento. Os que o defendem jogam com os 12 milhões de pessoas a beneficiar com água para beber. Os que o contestam apresentam números bem diferentes. Apenas pouco mais de um milhão poderiam beber dessa água. O resto estaria destinado a rega. Ou seja, os grandes beneficiados seriam pomares e agro-pecuárias.
Outra questão que cria reservas é a da oportunidade desta operação no contexto das prioridades dos estados semi-áridos, face a alternativas locais mais vantajosas,do ponto de vista técnico, económico e de objectivos.
Uma última questão prende-se com o rio em si mesmo. Os técnicos parecem unânimes em afiançar que o São Francisco está doente, poluído, morto nalguns locais. A transposição poderia comprometer de forma irreversível a sua vida já precária, e conduzir a um desastre ambiental.
Os opositores, segundo afirmam, não estão contra a ajuda a outros estados para minorar os efeitos da seca, como às vezes são acusados. Estão contra o projecto tal como ele foi construído, contra a falta de debate público em todos os patamares da sociedade brasileira, contra o aproveitamento político e demagógico que se pretende fazer desde 1982, e que agora, pela crise política do país, ganha nova dimensão como bandeira, e contra a paralisia da revitalização do rio, revitalização que tinha sido prometido pelo Governo, bem como o saneamento urgente em muitos locais necessitados ao longo do percurso, e para os quais libertaria 300 milhões de reais.
Quando foi anunciado o início das obras, o bispo Dom Luiz Flávio Cappio, formado em Economia e profundo conhecedor do rio, autor de um livro publicado sobre o assunto, deslocou-se à cidadezinha de Cobrobó, a 600 quilómetros do Recife, no estado de Pernambuco, ponto inicial da execução do projecto, e aí começou a greve de fome, como protesto.
Também quanto a isto as opiniões, e as correspondentes acções, se dividiram.
Organizaram-se romarias a Cobrobó, e o bispo teve a companhia permanente de muitos solidários com a sua posição.
A Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), na pessoa do presidente e do secretário-geral, colocou-se ao seu lado, embora com discrição.
Ostensivamente contra estiveram os bispos de Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Pernambuco, os estados potencialmente beneficiados.
Perante a divisão na própria igreja católica, e as repercussões no mundo, o Vaticano interveio com uma carta de certa dureza para que o franciscano terminasse a greve. Apelou à vida, ao pecado que é o atentado à vida, à obrigação de conservar a vida e a saúde, e, como arma final, esgrimiu o argumento da obediência. Nada disto resultou. Dom Luiz Cappio continuou a greve.
A CNBB deixou de apoiar o clérigo, mas não se manifestou contra.
O presidente Lula da Silva e seus ministros consideraram, e declararam publicamente, a conduta do bispo como irresponsável e autoritária. Jaques Wagner, ministro da Secretaria das Relações Institucionais, disse à comunicação social que a preocupação do Governo em relação à greve era zero.
Mas quando a greve começou a ganhar mais apoios expressos, e o eco internacional subiu de tom, o próprio Jaques Wagner correu ao encontro de Dom Luiz Cappio, levando uma carta de Lula em que este prometia não iniciar as obras de transposição sem um largo debate público, e sem a revitalização prévia do rio.
Era acompanhado na missão pelo núncio apostólico no Brasil, o representante do Vaticano, D. Lorenzo Baldineri, que vinha reforçar o pedido feito por escrito pelos serviços do Papa para terminar a greve.
O bispo terminou a greve. Aparentemente, não por influência dos seus superiores religiosos, mas pela promessa de Lula, assinada no documento entregue pelo ministro Wagner. Avisou, no entanto, por causa de um dito por não dito que o ministro ensaiou no próprio local perante a imprensa, que se o presidente voltasse com a palavra atrás, ele retomaria a greve de fome até às últimas consequências, desta vez acompanhado por largo número de católicos que o apoiam.
Sobre a igreja a que pertence, nem uma palavra. A questão para o bispo é, pois, política, e ele parece não querer admitir interferências da Igreja a que pertence. De resto, tem-nas ignorado.
Deixemos agora a transposição com os seus adeptos e opositores. Deixemos também Dom Luiz Cappio nas intrincadas relações hierárquicas e canónicas da igreja católica. Pensemos noutra coisa.
O que terá levado o Governo do presidente Lula a ceder perante a greve de fome de um entre 184 milhões de brasileiros, sendo certo que ela não seria levada até à morte, quanto mais não fosse por intervenção directa da igreja católica?
O que terá levado o Governo do presidente Lula a ceder perante a greve de fome de um clérigo, quando tinha por si, contra essa greve, a hierarquia da igreja católica, as mais altas instâncias dessa hierarquia?
Será que o Governo do presidente Lula mentiu ao bispo Dom Luiz Cappio, ao prometer aquilo que não tem intenção de cumprir?
Será que o governo do presidente Lula espera que algo aconteça na carreira eclesiástica, ou na vida, do bispo Dom Luiz Cappio, que o impeça de continuar a ser um agente mediático, nacional e internacional, de oposição ao projecto de transposição das águas do rio São Francisco?
Ou será que esse projecto de 4,5 bilhões de reais, dos quais já foram gastos 12 milhões só em papelada para o formalizar, não é defensável, e, por isso, o governo abriu mão dele?
O tempo se encarregará de fornecer as respostas.
Para já, uma coisa parece certa. O Governo criou um precedente perigoso, porque a cedência foi a forma que encontrou para gerir a situação. E um Governo idóneo não pode ter dois pesos e duas medidas.
Já outro clérigo, o padre Djaci, de Santa Cruz, no Alto Sertão da Paraíba, ameaçou em 5 de Outubro que iniciaria uma greve de fome com os seus paroquianos, caso o Governo não solucionasse o problema da falta de água na sua região.
Qual o número de eclesiásticos no Brasil?



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