CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

Locais e ambientes, pessoas e costumes, histórias, curiosidades e acontecimentos.

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terça-feira, maio 30, 2006

CANJA DE GALINHA FUGITIVA

Entusiasmado, prepara no Brasil, onde vive, o jantar comemorativo do nascimento da sua neta em Portugal.
Escolhe os vinhos, portugueses, pois então, de acordo com o cardápio onde você introduziu o queijo da Serra, pelo menos aproximado, que, apesar de tudo, conseguiu encontrar numa loja especial, ao preço dos olhos da cara, é bem de ver; arroz doce, o verdadeiro arroz doce feito de uma receita que a sua mulher herdou da avó; um prato de bacalhau, talvez à Zé do Pipo, talvez à Gomes de Sá; e uma canja, uma canja genuína, com galinha do campo, aqui chamada galinha caipira, com pezinhos, miudezas e ovos, daquela canja que o Jacinto atacou três vezes, e cujo perfume enternecia, n' "A Cidade e as Serras", de Eça de Queiroz.
Marcou o jantar para o fim da tarde, sete e meia.
Certo e sabido que às seis e meia, uma hora antes, os seus amigos brasileiros estão a entrar pela porta dentro. E, para espanto seu, para além da meia dúzia (de seis) que convidou, apareceu outra meia dúzia (de dúzia ou dúzia e meia), mais de metade da qual você nunca vira antes, não conhece e de quem nunca ouviu falar.
Engole em seco, fica meio atordoado, faz um sorriso amarelo. Nada disto escapa aos convidados e penetras que, perante a sua desagradável surpresa, se apressam a dizer, com um brilho alvíssimo de boca, de orelha a orelha, que não vêm todos jantar, apenas beber um drinquinho para dar os parabéns. Jantar mesmo só para os convidados.
Você, mais aliviado, sorri, embora ainda a contragosto. Diz-lhes que se instalem à vontade, na sala, e volta para a cozinha onde algumas panelas reclamam a sua presença.
De olho no fogão e olho na sala,
et pour cause, deita, ainda, olhos ansiosos para o relógio que está ao lado do armário, rogando para que os seus amigos portugueses não se atrasem – et pour cause, também.
Passados dez minutos, você e todos os que estão na cozinha consigo têm companhia: uma morena de olhos verdes, com um decote que você não sabe se é assim mesmo ou por engano, e um
short demasiado curto para a situação, mete a cabeça pela porta, com todos os dentes à mostra – aqui tudo é sempre feito com os dentes à mostra, quando não outras anatomias – e pergunta se há gelo.
Enquanto você prepara o gelo, mais duas personagens invadem a sua privacidade: uma, para dizer que o trisavô era português, não sabe de que terra; outra, para perguntar se você é capaz de fazer pasteis de Belém.
Antes que você consiga responder, esta última grita para a sala, para alguém que você não identifica, e entram na sua cozinha mais três convivas a quem aquela mostra, com trejeitos eufóricos, um volumoso livro ilustrado sobre comida portuguesa, subtraindo-o aos olhos de sua mulher que seguia o procedimento para confeccionar um dos pratos.
Você acabou de perder o controlo sobre o que se passa em sua casa. Já não sabe quem está na sala, nem nas outras dependências. A cozinha parece uma feira: ninguém se ouve, tal é a algazarra; os encontrões multiplicam-se, já sem pedidos de desculpa; um dos não convidados entorna o uísque (que você não lhe ofereceu) com gelo e água por cima da camisa que você estreou duas horas antes.
Tocam a campainha. Você respira de alívio e vai à porta. Os seus amigos portugueses chegaram. Mas não – ó, destino cruel – é o porteiro, trazendo algumas cartas, nas quais você reconhece contas para pagar.
A caminho do escritório, um casal tolhe a sua passagem, e pergunta que idade você tinha naquele quadro da parede. Você, contrafeito, explica que o retrato é de seu pai, quando tinha mais quinze anos do que você tem agora.
Depois do esclarecimento, uma cólica fininha leva-o ao sanitário. Você sente-se cansado e com vontade de ir para a cama. Mas resiste. Heroicamente resiste.
Volta à cozinha.
Tocam de novo a campainha. Você pergunta para si mesmo quem será desta vez – já nem se lembra dos seus amigos portugueses. Mas sim, são eles. E você quase chora. Ao mesmo tempo não sabe como lhes explicar a balbúrdia.
Faz as apresentações sumárias. Tenta, delicadamente, evacuar a cozinha dos intrusos.
Numa reviravolta inesperada, os seus amigos brasileiros começam a despedir-se – todos.
Você não entende e diz "mas então?...". Eles riem e riem, pedem que não leve a mal, já deram os parabéns, não querem incomodar.
"Mas o jantar?...", indaga você, incrédulo.
Que não senhor, noutra ocasião, muito agradecidos, muito prazer, fica todo beijocado, e vão saindo. Têm um jantar com um casal que parte para o sul.
Um grito angustiado de sua mulher na cozinha faz parar as despedidas. Você corre.
"A galinha!", diz ela, pálida. "Qual galinha?", pergunta você. "A galinha! A galinha da canja! Desapareceu da panela!".
Você olha para a sua mulher. Apalpa os bolsos, estupidificado. Olha para os convidados que saem, quase todos já na rua. A medo, pergunta a dois retardatários que riem da cena se viram a galinha da canja.
Eles riem mais. Um deles atira-lhe de mansinho: "Vai vê, cara, que cê esqueceu di matá á gálinha antes di colocá ela no tacho. Daí ela sumiu". Divertidos, dizem "tchau" e desaparecem.
Você sucumbe sobre um banco da cozinha. Sua mulher, em pranto, lembra-lhe uma série de coisas que você sabe que são verdade a respeito de convites.
O caminho do fogão à porta da rua está salpicado de manchas de gordura, manchas de canja.
Você, contrito, fica a pensar se esqueceu mesmo de matar a galinha antes de a pôr a cozer.
A meio desta singular confissão, que partilha com a sua mulher, ela jura, em silêncio, marcar no dia seguinte, bem cedinho, uma consulta para o seu médico assistente. E decide firmemente nunca mais deixar nas suas mãos os convites para jantares em sua casa.



sexta-feira, maio 26, 2006

A MOEDA BRASILEIRA

Corrupção e violência são as duas faces da mesma moeda corrente no Brasil.
Uma moeda de grande núcleo estrelado, onde em cada uma das pontas se lê fome, doença, analfabetismo, falta de abrigo decente, ausência de espírito de serviço no comércio, irresponsabilidade na função pública, para falar só dos mais visíveis.
Gerindo esta moeda no seu próprio e único interesse, está uma classe política caracterizada pela imoralidade e pela impunidade.
Há quem chame à imunidade parlamentar "impunidade para lamentar".
Mais do que uma classe, é uma corporação em que os seus membros vão-se mutuamente perdoando nas votações plenárias, desfecho ridículo, revoltante e dramático dos processos movidos pelas Comissões de Inquérito e pelas Comissões de Ética, umas e outras a caminho do descrédito total e permanente.
Todos iguais, iguais a si mesmos, são denunciados nos jornais, nas rádios e nas televisões.
Sem vergonha, choram lágrimas de crocodilo e mentem de forma obscena durante os julgamentos. Riem, ufanos e venais, quando festejam as sucessivas absolvições, muitas delas concedidas a crimes confessados.
Entretanto preparam as novas eleições, para Outubro, onde perpetuarão as tramóias há muito começadas.
O povo, o povão, esse espanta-se, depois encolhe os ombros aos primeiros sinais de conluio para o perdão dos crimes, e instala-se nas suas novelas, nos seus futebóis, nos seus carnavais, nos seus fins-de-semana prolongados para esquecer os tormentos que a si mesmo deixa infligir.
Nos intervalos bebe mais uma cerveja.
De memória curta, o povão vai dar os próximos votos aos mesmos, a troco de uma camiseta, de um saco de cimento, de meia dúzia de tijolos, ou de um cheque (nem sempre com provisão).
Desistindo da coisa pública, é do seu próprio destino que desiste.
Por isso, este país de fortunas colossais é o pior do mundo em distribuição de rendimentos, fora a Serra Leoa.
Enquanto assim for, a corrupção e a violência continuarão a ser as duas faces da mesma moeda, a única válida nesta terra, moeda que dá pelo nome degradante de
miséria.



segunda-feira, maio 22, 2006

TERRORISMO URBANO EM SÃO PAULO

Os dias 12, 13, 14 e 15 de Maio não vão ser esquecidos tão cedo, quer pela população pacífica, quer pelos bandidos e pela polícia de São Paulo.
Para além da carnificina que fez centena e meia de vítimas mortais, há que acrescentar os feridos, os mais de cem autocarros (ônibus, como aqui se diz) carbonizados, as vitrines de lojas espatifadas, as agências bancárias estouradas, os edifícios policiais alvejados a tiro, e os 12 milhões de reais perdidos pela hotelaria em 4 dias (cerca de 4 milhões de euros).
O arranque foi dado pela eclosão simultânea de motins numa dúzia de presídios do Estado. É dos presídios que saem as ordens de terrorismo urbano e as orientações para a sublevação civil.
E o Estado de Direito (será?) que o Brasil tenta vender como imagem à comunidade internacional só consegue controlar (conseguirá mesmo?) a situação caótica conferenciando, negociando e perdendo com os chefes do crime organizado – embora garanta que não, mas sem êxito, contrariado nessa sua negativa por reportagens de investigação levadas a cabo por órgãos de comunicação fidedignos.
Tudo começou quando um funcionário responsável pelo sector de áudio e vídeo das sessões da Câmara dos Deputados vendeu por 200 reais, menos de 7 euros, informações secretas sobre transferências prisionais de líderes do crime, previstas para esse fim-de-semana.
Num país de miséria, todo o preço é bom preço...
Os compradores foram dois advogados dos criminosos.
Através desses advogados, há advogados para todos os gostos e necessidades, os seus clientes, bandidos comprovados, ouviram na íntegra, via telemóvel (aqui chamado celular) as decisões que a Câmara tomara na sua reunião secreta, uma Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga o tráfico de armas.
Curiosamente, tal Comissão era desconhecida do grande público, e, até, da imprensa, e só foi divulgada na sequência dos acontecimentos.
Posteriormente, um membro dessa Comissão afirmou à TV que os bandidos puderam, inclusivamente, assistir nas suas celas à reunião, por vídeo conferência recebida nos telemóveis, ou celulares, como se queira.
O banditismo envolvido enquadra-se, na sua maioria, no chamado PCC (Primeiro Comando da Capital), organização criminosa que tem como lema "Comando único – União – Obediência".
Neste aspecto, batem aos pontos as várias polícias existentes, inúmeras e ineficazes polícias, sem órgão coordenador central, sem troca de informações entre si, disputando resultados que acabam por ser os que estão à vista. Os seus chefes não falam uns com os outros, não planeiam estratégias, não trocam informações, não sabem o que cada um está a fazer ou vai fazer, não actuam de forma combinada.
Reina na polícia o descontrolo e a disritmia, tão favoráveis à corrupção que cresce na polícia como cogumelos em chão húmido.
O homem que dá a cara pelo PCC é um tal Marcos Camacho, conhecido por Marcola, de 38 anos, que começou a sua carreira nos cadastros policiais aos 9, roubando carteiras. Da prisão de "alta segurança" em que se encontra, ele controla com um simples telemóvel 100 mil presos, fora os "adeptos" que andam na rua, não identificados.
Resta saber se ele é, de facto, o mentor e grande-chefe, ou um simples peão com o papel de cortina de fumo. No entanto, foi com ele que o Governo conferenciou para cessarem as hostilidades.
E as hostilidades cessaram. As previstas transferências dos líderes do crime, até agora, não se realizaram.
À pressa, o gordo, principescamente pago, adormecido e preguiçoso Senado aprovou 11 medidas de segurança pública que se encontravam congeladas há 10 anos, imagine-se, e enviou-as para discussão pela Câmara dos Deputados, onde ficarão em lista de espera, presumo, por uma batelada de tempo, tanto mais que a situação em São Paulo se encontra sanada, e há muitos interesses em jogo.
É mais que sabido que essa Câmara de Deputados é um antro de banditismo também, como o mostram as recentes denúncias, comprovadas em investigação, que envolvem cerca de metade dos seus membros em compras sobrefacturadas de ambulâncias. Assim sendo, pouco se espera desses parlamentares, a não ser uma união cada vez maior com o banditismo.
As empresas de telefonia móvel têm agora 48 horas para bloquear os sinais dentro dos presídios, o que acarreta alguns problemas técnicos, como seja não afectar utilizadores inocentes das imediações.
Pergunta a minha cínica ingenuidade: por que nunca houve a vontade séria de confiscar todos os telemóveis em poder dos presos? Por que se permitiu a entrada descarada e fluida de telemóveis nas prisões? Respondo com o mesmo cinismo: porque os guardas prisionais e gente mais graúda ao longo da escala de responsáveis, dentro e fora das prisões, está comprometida com o esquema e interessada na sua manutenção.
Há muito dinheiro em jogo num país de miséria.
Arma-se um carnaval que se pretende fazer passar por seriedade para o contribuinte ver: colocam-se na rua 130 mil polícias, à procura dos responsáveis do PCC que promoveram os distúrbios. Isto, deixem-me rir de gozo, quando toda a gente sabe quem são esses responsáveis directos, como se chamam, qual o cadastro, e onde se encontram – nas cadeias do Estado.
Entretanto, no meio da palhaçada, apreendem-se armas ligeiras, metralhadoras, armas pesadas, dinamite e granadas. Algum deste material está na mão de menores – 10 a 12 anos, que o exibem sem medo de morrer daí a pouco, conforme o declararam numa reportagem recente da CNN.
As apreensões são exibidas na TV como troféus, como se a polícia não soubesse há muito tempo em que mãos se encontravam...
Tudo voltou à normalidade, dizem os comunicados oficiais.
Desde há dois anos, as verbas destinadas à segurança pública nacional vêm sendo sistemática e drasticamente cortadas.
O campeonato do mundo vai consumir boa parte dessas verbas, porque o dinheiro não chega para tudo, e há que estabelecer prioridades...
O Brasil prepara-se, coeso, unido, solidário, para enfrentar esse grande desafio...
Quanto ao país real, isso fica para depois da festa – quando, e se, houver tempo.



terça-feira, maio 16, 2006

NO REINO DA VIGARICE

Imagino que os brasileiros não gostarão de ser tidos como trafulhas, mas a verdade é que o são, com a devida ressalva das raras e honrosas excepções. No entanto, é bom lembrar às excepções que a responsabilidade dessa imagem também lhes pertence, na medida em que não confrontam os seus concidadãos com a necessidade de mudar de hábitos.
"Quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele", diz o ditado. Portanto, quem não quer ser chamado de aldrabão que não se comporte como tal.
Cenas vexatórias se passam todos os dias no estrangeiro, envolvendo brasileiros. A mais recente que conheço ocorreu num supermercado dos EUA, onde entrara uma pequena excursão de brasileiros acabados de chegar ao país. De repente gera-se uma confusão e verifica-se que houve um roubo. Logo o gerente aparece aos gritos de "onde estão os brasileiros, onde estão os brasileiros?".
Muitos outros testemunhos, privados e públicos, me têm chegado sobre a desonestidade generalizada deste povo.
Mulheres brasileiras que se correspondem com europeus perguntam umas para as outras: "quanto vais esfolar ao gringo?". Gringo, aqui, é todo o estrangeiro; desgraçado do gringo que vá atrás dos sorrisos convidativos e dos ademanes sedutores destas mocinhas... Sei de uma caso de uma delas que inventou uma avaria fatal no computador rudimentar que possuía, para que o gringo lhe oferecesse um computador novo, de topo de gama.
Tais denúncias públicas não devem ofender o brasileiro, mesmo o honesto.
O que o brasileiro tem de fazer é mudar o seu comportamento, para que a sua imagem também mude.
O primeiro passo para mudar o comportamento é ver e sentir o que há de errado nele. Depois, reconhecer o erro.
Foi o que fez um livro de História para o 7º ano de escolaridade, adoptado no Recife, da autoria de Cláudio Vicentino e editado pela Scipione.
Nele se conta uma historieta em quadradinhos (chamados quadrinhos no Brasil), sobre uma família europeia que parte para o Brasil em busca de melhor vida, atraída pela publicidade de cartazes e panfletos brasileiros.
Mas, uma vez instalados no país, verificam, desiludidos e revoltados, que as promessas feitas se transformaram em trabalho escravo.
A pequena estória, para além de chamar a atenção dos estrangeiros para o "conto do vigário" (sic) que se pratica nesta terra, termina o episódio sublinhando que muitos países, na defesa dos interesses dos seus cidadãos, proíbem a emigração para o Brasil.
Aqui fica, para que conste, mais este aviso insuspeito, um alerta a todos os incautos e desprevenidos, eventualmente ofuscados pelo sol e pelas belezas divulgadas nos postais ilustrados, muitos deles, também, uma mentira.



sexta-feira, maio 12, 2006

"DEUS É FIEL"

Recebio-o em casa como amigo, naquilo que a amizade tem de grande como a disponibilidade, a ajuda, a verdade, a honestidade, a lealdade.
Estendeu-me uma mão calorosa e sorriu com uma fiada de dentes a alvejar na negritude cerrada do rosto.
Era a primeira vez que nos víamos.
Acompanhava-o quem o recomendara, um homem de confiança, o vendedor do meu apartamento, e recomendara-o como conhecido de há muito, pessoa por quem poria as mãos no fogo.
Instalei-o comodamente, dei-lhes água fresca como manda a cortesia e a necessidade neste clima tórrido do Recife, e entrámos no negócio.
O negócio era a mudança do recheio de uma casa, do estado de Santa Catarina, no sul, para Pernambuco, no nordeste. Cerca de 4000 quilómetros.
Abrimos as agendas, estudámos prazos e circuitos. Acordámos datas.
Em 15 dias poderia ter todos os meus pertences na nova residência. Os seus quatro carregadores fariam o empacotamento na origem, e a montagem no destino.
Entrámos na matéria final, a mais delicada: o preço.
Discutimos números, cifrões, centavos.
Depois de muito regateio, como se fôssemos dois árabes, fez e refez contas, pensou, falou sozinho.
Por 4500 reais faria a mudança. Era, garantia enfaticamente, preço especial de amigo, com desconto de 500 reais.
Nessa época, Janeiro de 2005, cada 3 reais custava-me 1 euro.
Fazer o quê? O senhorio da casa de Santa Catarina já tinha locatário, e eu precisava deixar a casa vaga de imediato.
Era pegar ou largar.
Peguei.
Quanto ao pagamento, bom... havia uma pequena questão que, segundo ele, eu deveria compreender: seria a pronto, de preferência em dinheiro, porque ele iria ter despesas na compra de caixotes e outro tipo de material para embalar as minhas coisas.
Estranhei tanto dinheiro para caixotes, cartão canelado, cordel, fita adesiva, mas não neguei. Eu sabia que no miserável Pernambuco, as empresas, principalmente as mais pequenas, sofrem com dificuldades de tesouraria para desenvolver os seus negócios.
Passei-lhe para as mãos os 4500 reais em notas de banco. Em troca, deu-me um recibo colorido de DANIEL SANTANA, MUDANÇAS NOVA MORADA, do Recife.
Por baixo do logotipo da empresa, em letras destacadas a ouro, "DEUS É FIEL".
Ainda com as notas na mão, sorriu de novo com a dentuça imaculada sob a moldura dos beiços grossos de descendente de Cabinda.
Tranquilizou-me, tudo iria dar certo, dentro do combinado. No entanto, para além dos contactos referidos no recibo, deixava-me o número do telefone móvel, para qualquer eventualidade.
E referiu nomes sonantes de clientes para quem habitualmente fazia serviço de mudanças, entre a América do Sul e a Alemanha e a Holanda.
Até hoje nunca mais vi o Daniel Santana, para sorte dele.
Uma semana antes da data aprazada para a mudança, pus-me a caminho de Santa Catarina para esvaziar a casa e entregá-la ao proprietário.
Na véspera, recebi um telefonema de alguém que eu desconhecia, perguntando-me se a mudança poderia ser adiada. Respondi prontamente que não, pois tinha programado a minha vida de acordo com o que ajustara com o sr. Daniel Santana.
No dia combinado, três horas depois do horário estabelecido, liguei para o Daniel Santana, mas nem no escritório, nem no telefone móvel consegui que alguém me atendesse.
Mais três horas se passaram e, finalmente, apareceu uma camioneta com o respectivo motorista e dois carregadores.
Insurgi-me contra o atraso, que prejudicava o meu regresso ao Recife, e pelo facto de só trazerem dois carregadores em vez dos quatro prometidos pelo sr. Daniel Santana.
Responderam-me com um certo desprezo que não sabiam quem era esse tal Daniel Santana, e que se eu estava aborrecido que falasse com o patrão, o sr. Joãozinho.
Foi o que fiz, embora não percebesse nada do que estava a passar-se. No fim da conversa tudo se esclareceu. A camioneta parada à minha porta, nada tinha a ver com a MUDANÇAS NOVA MORADA. Não era de Pernambuco nem de Santa Catarina, mas sim de outro estado. Fora contratada pelo Daniel Santana para fazer uma mudança por 3000 reais, mas nada pagara ainda. A mudança seguiria para o outro estado, onde ficaria nos armazéns ata ao pagamento.
Mês e meio depois, ninguém sabia do Daniel Santana, e do pagamento ainda menos.
No entanto, a empresa por ele contratada, com medo de implicações legais pela retenção dos meus bens, colocou-mos em casa.
Apresentei queixa na polícia contra a MUDANÇAS NOVA MORADA e seu sócio gerente, Daniel Santana.
A polícia nada fez porque não havia retenção de bens, e não tinha autoridade para actuar em fraudes.
O tribunal onde apresentei queixa indagou e concluiu que um segundo sócio desaparecera, as camionetas haviam sumido, os escritórios e os armazéns estavam de taipais de ferro corridos, e que o Daniel Santana mudara de residência: pegara na família e distanciara-se para São Paulo.
Pelo género de carácter que se revelou, lá é o local privilegiado para ele fazer alguma pós-graduação em vigarice.E eu, quando vejo em algumas bancas ou vitrines de casas comerciais, ou em janelas de camionetas de passageiros, ou em toldos de camiões de mudanças ou de mercadorias o dístico "Deus é fiel", tão usual aqui, fico pensando se essa evocação do Santo Nome não será em vão, se não será, também, uma expressão de estilo da escola de Daniel Santana.



terça-feira, maio 09, 2006

A GALINHA DOS OVOS DE OURO

Toda a gente conhece a história... bem... este "toda a gente conhece" pode tornar-se ofensivo para quem não conhece, mas, em contrapartida, talvez sirva de estímulo para querer conhecer e conhecer mesmo.
Portanto, toda a gente conhece, se não já, daqui a pouco, a história da galinha dos ovos de ouro, uma abençoada galinha que todos os dias, sem excepção, sem olhar a sábados, domingos, feriados nacionais, regionais ou municipais, dias santos de guarda, pontos facultativos, greves de zelo, de fome ou de asas caídas, todo o santo ou danado dia punha o seu ovo de ouro no caixote de palha do galinheiro.
O dono, um fazendeiro já podre de rico (e não só disso, como veio a verificar-se) mercê dos ovos que a generosa galinha lhe oferecia a troco de uma bagatela de milho e água limpa, cego de ambição, e, ao que parece, sem qualquer outro objectivo pessoal ou colectivo que não fosse satisfazer essa ganância, sem qualquer projecto que não fosse arrecadar mais, ser mais e mais rico, resolveu explorar a mina até às suas últimas consequências, isto é, matar a galinha para lhe sacar os ovos todos de uma vez.
Depois de a ter degolado, aberto, e de nada ter encontrado dentro dela, não valeu a pena ter-se arrependido, pois perdeu para sempre a galinha e a sua provisão diária de ovos de ouro.
Esta a estória que quase toda a gente já conhecia, e que quem ainda não conhecia, mas estava quase, agora já conhece.
De algum modo e com as devidas reservas, ela está sintetizada no velho provérbio português "quem tudo quer, tudo perde".
Mas a prática deste fazendeiro, apesar de desastrosa, continua a ter muitos seguidores, pelo menos no Brasil. Gente que, movida por pretensões não sustentadas, dá um passo maior do que a perna, e acaba por estatelar-se.
Dar com os burrinhos na água não faz mal, desde que não passe disso e, ao mesmo tempo, sirva de lição.
Mas o pior é que, geralmente, os burrinhos levam às cavalitas familiares, amigos, conhecidos, vizinhos, fornecedores, clientes, enfim, toda uma multidão que, ingénua e inocentemente, vai também parar à água, enquanto o condutor dos burricos trepa pelas costas dos afogados para se pôr a salvo.
Todas estas metáforas brincalhonas têm por base a angústia de quem nunca sabe no Brasil com que tipo de serviços pode contar, sejam eles públicos ou privados.
Aqui toda a gente mata a galinha dos ovos de ouro, no sentido de que uma qualidade prometida e conseguida durante algum tempo é subitamente desvirtuada por ambições desmedidas.
Um fabricante oferece-me um produto de qualidade. Quando já estou habituado a ele, substitui-o por outro de qualidade inferior e maior custo. Matou a galinha.
O assassinato multiplica-se e potencia-se em cascata.
O fabricante passa este estilo aos vendedores, que o passam aos revendedores grossistas (atacadistas, no Brasil), que o passam aos comerciantes nos hipermercados, nos centros comerciais (shoppings, no Brasil) e nas lojinhas de bairro.
Assim no comércio, assim na indústria, assim na agricultura e na pecuária, assim nas pescas, assim no ensino, assim na informação, assim no turismo, assim na política, assim nas relações interpessoais, assim no Brasil.
Assim se vão extinguindo as galinhas dos ovos de ouro.
Quanto aos ovos arrecadados, andam aí por mercados paralelos, mas há quem reclame e, por isso, clame que estão contagiados por certos tipos, perdão, por certos tifos chamados salmonelas. Ou será salmão e elas?...



segunda-feira, maio 01, 2006

DIA DO TRABALHO

Comemora-se em todo o mundo o dia do trabalhador.
No Brasil, muitos brasileiros dizem "dia do trabalho".
Talvez tenhas razão, meu amigo brasileiro. Celebras o trabalho uma vez por ano, para que ele, assim gratificado, se ponha a andar para longe de ti.
Porque, amigo brasileiro, bem vistas as coisas, há uma coisa que tu adoras: não trabalhar. E há uma coisa que te repugna, que tu odeias, que tu rejeitas: trabalhar.
Não digas, amigo brasileiro, que sou tendencioso, faccioso, preconceituoso porque eu ouso dizer, alto e bom som, que tu trabalhas o tempo todo para arranjares pretextos para não trabalhar.
Estendes o Natal até ao Ano Novo, e sabes que nessa época ninguém repara nisso.
Do Carnaval nem se fala. Se dependesse de ti, o ano seria um imenso Carnaval com a duração de dois anos.
Na Páscoa, mais comedido, talvez com medo das represálias das figuras que adoras com superstição, só estás por fora seis dias, o dobro do que se passa noutros países.
Se há eleições, na véspera ficas a reflectir sobre o que hás-de fazer. No dia a seguir ao voto na urna, ficas em casa a reflectir sobre o que fizeste.
Se o teu clube ganhou, seja o que for, no dia seguinte ficas em casa a comemorar. Se perdeu, no dia seguinte ficas em casa a carpir.
Se é sexta-feira, sais mais cedo porque é fim-de-semana; isto no caso de ires ao serviço. Se é segunda-feira, chegas mais tarde porque foi fim-de-semana, ou nem sequer compareces ao trabalho.
Se amanhã é feriado, os transportes públicos hoje já só trabalham a meio gás, porque amanhã é feriado.
Ao longo do ano tens casamentos, baptizados, crismas, funerais, aniversários que te dispensam do trabalho por imperativo social.
Chegam as férias, para descansares do que não fizeste durante o ano. E partes mais cedo porque dizes estar cansado e precisar de férias, e chegas mais tarde porque te cansaste nas férias.
Uma vez por ano, amigo brasileiro, tu lembras-te do trabalho para celebrar o trabalho, homenagear o trabalho, bem-dizer o trabalho, porque nesse dia não há trabalho.
Por isso, nesse dia dizes "dia do trabalho", e não "dia do trabalhador".
Assim vais passando a vida.
Queixas-te quando não há trabalho. Quando o tens, queixas-te e foges dele logo que podes.
Na verdade, amigo brasileiro, tu amas o teu país, os teus deuses, a família (nem sempre), o teu time (sempre), os teus amigos, a tua terra, a feijoada, a cachaça e a cerveja. Só detestas uma coisa: o trabalho.
Este dia 1º de Maio é a tua vergonha.
Quando transformares a tua mentalidade, a tua atitude, o teu ser e estar no teu Brasil, quando se sentir em cada dia que passa o cheiro e a cor do teu trabalho, então esta festa será tua também.
Até lá, o 1º de Maio no Brasil, amigo brasileiro, será um engano com que te enganas, embora não consigas enganar quem trabalha.



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