Entusiasmado, prepara no Brasil, onde vive, o jantar comemorativo do nascimento da sua neta em Portugal.
Escolhe os vinhos, portugueses, pois então, de acordo com o cardápio onde você introduziu o queijo da Serra, pelo menos aproximado, que, apesar de tudo, conseguiu encontrar numa loja especial, ao preço dos olhos da cara, é bem de ver; arroz doce, o verdadeiro arroz doce feito de uma receita que a sua mulher herdou da avó; um prato de bacalhau, talvez à Zé do Pipo, talvez à Gomes de Sá; e uma canja, uma canja genuína, com galinha do campo, aqui chamada galinha caipira, com pezinhos, miudezas e ovos, daquela canja que o Jacinto atacou três vezes, e cujo perfume enternecia, n' "A Cidade e as Serras", de Eça de Queiroz.
Marcou o jantar para o fim da tarde, sete e meia.
Certo e sabido que às seis e meia, uma hora antes, os seus amigos brasileiros estão a entrar pela porta dentro. E, para espanto seu, para além da meia dúzia (de seis) que convidou, apareceu outra meia dúzia (de dúzia ou dúzia e meia), mais de metade da qual você nunca vira antes, não conhece e de quem nunca ouviu falar.
Engole em seco, fica meio atordoado, faz um sorriso amarelo. Nada disto escapa aos convidados e penetras que, perante a sua desagradável surpresa, se apressam a dizer, com um brilho alvíssimo de boca, de orelha a orelha, que não vêm todos jantar, apenas beber um drinquinho para dar os parabéns. Jantar mesmo só para os convidados.
Você, mais aliviado, sorri, embora ainda a contragosto. Diz-lhes que se instalem à vontade, na sala, e volta para a cozinha onde algumas panelas reclamam a sua presença.
De olho no fogão e olho na sala, et pour cause, deita, ainda, olhos ansiosos para o relógio que está ao lado do armário, rogando para que os seus amigos portugueses não se atrasem – et pour cause, também.
Passados dez minutos, você e todos os que estão na cozinha consigo têm companhia: uma morena de olhos verdes, com um decote que você não sabe se é assim mesmo ou por engano, e um short demasiado curto para a situação, mete a cabeça pela porta, com todos os dentes à mostra – aqui tudo é sempre feito com os dentes à mostra, quando não outras anatomias – e pergunta se há gelo.
Enquanto você prepara o gelo, mais duas personagens invadem a sua privacidade: uma, para dizer que o trisavô era português, não sabe de que terra; outra, para perguntar se você é capaz de fazer pasteis de Belém.
Antes que você consiga responder, esta última grita para a sala, para alguém que você não identifica, e entram na sua cozinha mais três convivas a quem aquela mostra, com trejeitos eufóricos, um volumoso livro ilustrado sobre comida portuguesa, subtraindo-o aos olhos de sua mulher que seguia o procedimento para confeccionar um dos pratos.
Você acabou de perder o controlo sobre o que se passa em sua casa. Já não sabe quem está na sala, nem nas outras dependências. A cozinha parece uma feira: ninguém se ouve, tal é a algazarra; os encontrões multiplicam-se, já sem pedidos de desculpa; um dos não convidados entorna o uísque (que você não lhe ofereceu) com gelo e água por cima da camisa que você estreou duas horas antes.
Tocam a campainha. Você respira de alívio e vai à porta. Os seus amigos portugueses chegaram. Mas não – ó, destino cruel – é o porteiro, trazendo algumas cartas, nas quais você reconhece contas para pagar.
A caminho do escritório, um casal tolhe a sua passagem, e pergunta que idade você tinha naquele quadro da parede. Você, contrafeito, explica que o retrato é de seu pai, quando tinha mais quinze anos do que você tem agora.
Depois do esclarecimento, uma cólica fininha leva-o ao sanitário. Você sente-se cansado e com vontade de ir para a cama. Mas resiste. Heroicamente resiste.
Volta à cozinha.
Tocam de novo a campainha. Você pergunta para si mesmo quem será desta vez – já nem se lembra dos seus amigos portugueses. Mas sim, são eles. E você quase chora. Ao mesmo tempo não sabe como lhes explicar a balbúrdia.
Faz as apresentações sumárias. Tenta, delicadamente, evacuar a cozinha dos intrusos.
Numa reviravolta inesperada, os seus amigos brasileiros começam a despedir-se – todos.
Você não entende e diz "mas então?...". Eles riem e riem, pedem que não leve a mal, já deram os parabéns, não querem incomodar.
"Mas o jantar?...", indaga você, incrédulo.
Que não senhor, noutra ocasião, muito agradecidos, muito prazer, fica todo beijocado, e vão saindo. Têm um jantar com um casal que parte para o sul.
Um grito angustiado de sua mulher na cozinha faz parar as despedidas. Você corre.
"A galinha!", diz ela, pálida. "Qual galinha?", pergunta você. "A galinha! A galinha da canja! Desapareceu da panela!".
Você olha para a sua mulher. Apalpa os bolsos, estupidificado. Olha para os convidados que saem, quase todos já na rua. A medo, pergunta a dois retardatários que riem da cena se viram a galinha da canja.
Eles riem mais. Um deles atira-lhe de mansinho: "Vai vê, cara, que cê esqueceu di matá á gálinha antes di colocá ela no tacho. Daí ela sumiu". Divertidos, dizem "tchau" e desaparecem.
Você sucumbe sobre um banco da cozinha. Sua mulher, em pranto, lembra-lhe uma série de coisas que você sabe que são verdade a respeito de convites.
O caminho do fogão à porta da rua está salpicado de manchas de gordura, manchas de canja.
Você, contrito, fica a pensar se esqueceu mesmo de matar a galinha antes de a pôr a cozer.
A meio desta singular confissão, que partilha com a sua mulher, ela jura, em silêncio, marcar no dia seguinte, bem cedinho, uma consulta para o seu médico assistente. E decide firmemente nunca mais deixar nas suas mãos os convites para jantares em sua casa.