CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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sexta-feira, maio 12, 2006

"DEUS É FIEL"

Recebio-o em casa como amigo, naquilo que a amizade tem de grande como a disponibilidade, a ajuda, a verdade, a honestidade, a lealdade.
Estendeu-me uma mão calorosa e sorriu com uma fiada de dentes a alvejar na negritude cerrada do rosto.
Era a primeira vez que nos víamos.
Acompanhava-o quem o recomendara, um homem de confiança, o vendedor do meu apartamento, e recomendara-o como conhecido de há muito, pessoa por quem poria as mãos no fogo.
Instalei-o comodamente, dei-lhes água fresca como manda a cortesia e a necessidade neste clima tórrido do Recife, e entrámos no negócio.
O negócio era a mudança do recheio de uma casa, do estado de Santa Catarina, no sul, para Pernambuco, no nordeste. Cerca de 4000 quilómetros.
Abrimos as agendas, estudámos prazos e circuitos. Acordámos datas.
Em 15 dias poderia ter todos os meus pertences na nova residência. Os seus quatro carregadores fariam o empacotamento na origem, e a montagem no destino.
Entrámos na matéria final, a mais delicada: o preço.
Discutimos números, cifrões, centavos.
Depois de muito regateio, como se fôssemos dois árabes, fez e refez contas, pensou, falou sozinho.
Por 4500 reais faria a mudança. Era, garantia enfaticamente, preço especial de amigo, com desconto de 500 reais.
Nessa época, Janeiro de 2005, cada 3 reais custava-me 1 euro.
Fazer o quê? O senhorio da casa de Santa Catarina já tinha locatário, e eu precisava deixar a casa vaga de imediato.
Era pegar ou largar.
Peguei.
Quanto ao pagamento, bom... havia uma pequena questão que, segundo ele, eu deveria compreender: seria a pronto, de preferência em dinheiro, porque ele iria ter despesas na compra de caixotes e outro tipo de material para embalar as minhas coisas.
Estranhei tanto dinheiro para caixotes, cartão canelado, cordel, fita adesiva, mas não neguei. Eu sabia que no miserável Pernambuco, as empresas, principalmente as mais pequenas, sofrem com dificuldades de tesouraria para desenvolver os seus negócios.
Passei-lhe para as mãos os 4500 reais em notas de banco. Em troca, deu-me um recibo colorido de DANIEL SANTANA, MUDANÇAS NOVA MORADA, do Recife.
Por baixo do logotipo da empresa, em letras destacadas a ouro, "DEUS É FIEL".
Ainda com as notas na mão, sorriu de novo com a dentuça imaculada sob a moldura dos beiços grossos de descendente de Cabinda.
Tranquilizou-me, tudo iria dar certo, dentro do combinado. No entanto, para além dos contactos referidos no recibo, deixava-me o número do telefone móvel, para qualquer eventualidade.
E referiu nomes sonantes de clientes para quem habitualmente fazia serviço de mudanças, entre a América do Sul e a Alemanha e a Holanda.
Até hoje nunca mais vi o Daniel Santana, para sorte dele.
Uma semana antes da data aprazada para a mudança, pus-me a caminho de Santa Catarina para esvaziar a casa e entregá-la ao proprietário.
Na véspera, recebi um telefonema de alguém que eu desconhecia, perguntando-me se a mudança poderia ser adiada. Respondi prontamente que não, pois tinha programado a minha vida de acordo com o que ajustara com o sr. Daniel Santana.
No dia combinado, três horas depois do horário estabelecido, liguei para o Daniel Santana, mas nem no escritório, nem no telefone móvel consegui que alguém me atendesse.
Mais três horas se passaram e, finalmente, apareceu uma camioneta com o respectivo motorista e dois carregadores.
Insurgi-me contra o atraso, que prejudicava o meu regresso ao Recife, e pelo facto de só trazerem dois carregadores em vez dos quatro prometidos pelo sr. Daniel Santana.
Responderam-me com um certo desprezo que não sabiam quem era esse tal Daniel Santana, e que se eu estava aborrecido que falasse com o patrão, o sr. Joãozinho.
Foi o que fiz, embora não percebesse nada do que estava a passar-se. No fim da conversa tudo se esclareceu. A camioneta parada à minha porta, nada tinha a ver com a MUDANÇAS NOVA MORADA. Não era de Pernambuco nem de Santa Catarina, mas sim de outro estado. Fora contratada pelo Daniel Santana para fazer uma mudança por 3000 reais, mas nada pagara ainda. A mudança seguiria para o outro estado, onde ficaria nos armazéns ata ao pagamento.
Mês e meio depois, ninguém sabia do Daniel Santana, e do pagamento ainda menos.
No entanto, a empresa por ele contratada, com medo de implicações legais pela retenção dos meus bens, colocou-mos em casa.
Apresentei queixa na polícia contra a MUDANÇAS NOVA MORADA e seu sócio gerente, Daniel Santana.
A polícia nada fez porque não havia retenção de bens, e não tinha autoridade para actuar em fraudes.
O tribunal onde apresentei queixa indagou e concluiu que um segundo sócio desaparecera, as camionetas haviam sumido, os escritórios e os armazéns estavam de taipais de ferro corridos, e que o Daniel Santana mudara de residência: pegara na família e distanciara-se para São Paulo.
Pelo género de carácter que se revelou, lá é o local privilegiado para ele fazer alguma pós-graduação em vigarice.E eu, quando vejo em algumas bancas ou vitrines de casas comerciais, ou em janelas de camionetas de passageiros, ou em toldos de camiões de mudanças ou de mercadorias o dístico "Deus é fiel", tão usual aqui, fico pensando se essa evocação do Santo Nome não será em vão, se não será, também, uma expressão de estilo da escola de Daniel Santana.



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