A produção de lixo e o que fazer com ele é um problema que ocupa, preocupa e, às vezes, aflige os responsáveis pela gestão das comunidades. Mas o destino imediato, acto contínuo, do resíduo ocasionado depende da consciência ecológica e da educação de base do agente consumidor: nalgumas cidades, o chão é de uma limpeza imaculada, sendo os próprios cidadãos a exercer uma mútua acção pedagógica nesse sentido; noutras, a desconsideração e o desprezo são de tal ordem que um visitante daquelas primeiras poderá ser levado, legitimamente, a pensar que se passeia por uma lixeira a céu aberto.
O Brasil é um país com cidades exemplarmente limpas, muitas e em variadas regiões, que não cito pela impossibilidade prática de nomear todas. Mas não posso esconder, em contrapartida, que considero Recife uma das cidades mais sujas das que já conheci, no Brasil e fora dele. Aliás, no Brasil não encontrei ainda comparação.
Nesta cidade, cerca de 1.600.000 habitantes numa área de 220 km2 produzem, em números redondos, 3.000 toneladas de lixo por dia, o que significa que cada habitante do Recife dá origem a quase 2 quilos de resíduos diariamente. Poder-se-ia discutir se é possível diminuir essa carga, mediante campanhas e programas que criem nas pessoas hábitos diferentes. Mas a questão premente é o que se faz com esse volume de detritos. O facto de 76% dos lixos das ruas das cidades brasileiras ser depositado a céu aberto já é alarmante. Mas a situação torna-se assustadora quando se constata o seguinte:
- Recife, como muitas outras cidades brasileiras, não possui contentores de rua, fechados, para o lixo doméstico. Algumas experiências, tímidas, muito restritas e, até agora, inconsequentes, de colecta selectiva, não habituaram a população a proceder a uma separação dos lixos;
- os produtos residuais das casas são, então, acondicionados em sacos de plástico, geralmente os que transportaram as compras do supermercado, nem sempres bem fechados, quase nunca hermeticamente fechados, e deixados a monte na via pública, aguardando a passagem do camião do lixo;
- assim expostos com toda a vulnerabilidade decorrente, estão sujeitos à acção de vândalos e beberrões que se entretêm a pontapear os sacos; de cães e gatos vadios, que ocupam impunemente a cidade, esfomeados e, por isso mesmo, de faro mais apurado, que esventram os sacos em busca do osso ou da espinha de peixe; de catadores de lixo para comercializar (só a trabalhar para depósitos particulares há cerca de 1.500 na cidade) que, geralmente, não respeitam as normas de higiene e limpeza e deixam o local de depósito dos sacos como uma ampla e literal estrumeira; a chuva e o vento encarregam-se de fazer o resto.
Não se pense, erradamente, que este panorama é exclusivo, ou mesmo típico, dos bairros de gente de menor renda. Nos chamados bairros nobres, designação, de resto, abusiva, a situação não é essencialmente diferente; talvez aqui os serviços de prontidão de recolha e limpeza acorram mais depressa, mas a filosofia e a práxis são as mesmas.
Na imprensa, na rádio, na televisão, na Internet, deparo com denúncias e protestos pelo aspecto relaxadamente sujo da cidade. Nos transportes públicos, nos supermercados, na rua, ouço os meus concidadãos reclamar do aspecto relaxadamente sujo da cidade. Alguns recantos das margens dos rios, em particular na maré baixa, são montureiras. Nos jardins, em praças, ruas e avenidas, é frequente formarem-se constantes tapetes de esterco, orgânico e inorgânico. E, de facto, os meus concidadãos queixam-se disso com amargura e revolta, mas, ao mesmo, com mágoa e o desânimo de quem se conformou por não poder deixar de ser assim, a ponto de reclamarem cada vez menos e de encararem como normal o estado imundo da cidade. Ora, isto leva-nos à outra face do problema.
Pelo ritmo e encaminhamento desta prosa, poder-se-ia pensar que todo o quadro caótico descrito resulta da incompetência ou da irresponsabilidade autárquica. Nada disso. A responsabilidade é de todos nós, reclamantes ou não. Constatei que, na generalidade - e que me perdoem as honrosas excepções - o recifense, seja qual for a idade, o sexo ou a posição social, não possui espírito ecológico, e, no campo da higiene pública, demosntra não ter noção das mais elementares regras de asseio, co-existência, civismo e cidadania.
Se tivesse filmado (talvez comece a fazê-lo), poderia mostrar-vos uma curta-metragem elucidativa e ilustrativa do que afirmo acima. Peço que apelem à vossa imaginação e que tentem visualizar interiormente cenas como estas: a avozinha e o netinho passeiam no parque, a avozinha dá uma guloseima ao netinho e, bem natural e displicentemente, lança no chão invólucro, seguido, bem depressa, pelo guardanapo de papel que utilizou; para além do lixo que produz, a avozinha passa para o neto uma mensagem deseducativa, ou seja, reproduz socialmente o erro; e o contentor ali tão perto... sim, porque a cidade não possui contentores para recolha de lixo das habitações, mas tem disseminadas pela cidade caixas para o pequeno lixo, como o pauzinho do sorvete, a garrafa de água vazia, o lenço de papel ou o copo de plástico; pois o cidadão do recife, para espanto de quem o visita, remete para o chão um qualquer desperdício, tendo a dois metros de si, dois metros, sem exagero, a caixa de recolha; seguimos de automóvel por uma ponte magnífica que liga dois bairros da cidade, à nossa frente um carro de último modelo, atestando o poder de compra do seu proprietário, e, precisamente do lado do condutor, sai pela janela um lenço de papel, enquanto que, do lado oposto, atrás, sai uma lata de refrigerante; precisei de tomar uma autocarro, numa das minhas muitas incursões pela cidade, e espantei-me ao ver a cobradora lançar para a via pública, em andamento, a garrafinha plástica de que tinha sorvido as últimas gotas; entretanto, os passageiros juncavam o chão do veículo de pauzinhos de gelado, invólucros de rebuçado, cascas de amendoim e, até mesmo, cascas de laranja; lembrei-me, então, que já vira fazer o mesmo a idênticas garrafinhas a dois motoristas em outras duas viagens; estarrecido fiquei quando, em frente a minha casa, vi, de um carro de polícia parado num semáforo, abrir-se a porta do motorista e dela sair uma mão-cheia de papéis amarrotados.
Meu Caro Leitor, sem tintas desnecessárias, tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é Recife.
Tenho esperança de um dia poder dizer ao Prefeito da cidade, o equivalente ao Presidente da Câmara Municipal, em Portugal, o quanto o admiro e respeito, e agradeço e, ao mesmo tempo, lamento, pelo verdadeiro batalhão de funcionários camarários que vejo, todos os dias, incansáveis, em magotes, a recolher o lixo dos recifenses. Mas acontece que o batalhão de recifenses que vem logo atrás, derramando pelo chão centenas de copos e sacos de plástico, garrafas vazias, papéis inutilizados, lenços sujos, cascas de fruta e de marisco, latas de refrigerante e de cerveja, enfim, tudo o que é poluidor, não reconhece o esforço dos primeiros, nem as necessidades estéticas e higiénicas da cidade. Até um peixe, Prefeito, dir-lhe-ia, até um gordo peixe a apodrecer ao sol eu já vi, em frente a uma grande loja que anuncia a última moda em roupa masculina e feminina.
É verdade que eu nunca deparai em algum out-door, das centenas que proliferam pela cidade, com qualquer apelo à contenção poluidora, nem tenho conhecimento da existência de campanhas contra a sujeira, levadas a cabo, seja pela Prefeitura, seja pelo Governo do Estado. Mas será que este hábito tão entranhado de arremessar ao chão o que é inútil poderá modificar-se com simples apelos ou mesmo campanhas? Eu não sei.
Um amigo brasileiro sugeria, com graça, meio a brincar, meio a sério, que a todo o recifense, fosse ele quem fosse, apanhado em flagrante, conspurcando o chão, se punisse com quatro fins-de-semana de recolha de lixo nas ruas do seu bairro, integrando as equipas de funcionários camarários, com divulgação na TV e na imprensa para que servisse de exemplo. Resultaria? Talvez... Só experimentando... Se um dia encontrar o Prefeito, dir-lhe-ei.