CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

Locais e ambientes, pessoas e costumes, histórias, curiosidades e acontecimentos.

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quarta-feira, março 23, 2005

RESULTADOS DE UMA INÉRCIA INSTALADA

Abstraindo os casos patológicos, é costume classificar as pessoas, quanto ao seu grau de iniciativa, em proactivas e reactivas. As primeiras seriam aquelas que comandariam os acontecimentos, que actuariam independentemente de pressões exteriores, as que, em suma, escreveriam a História. As outras limitar-se-iam a responder, com mais ou menos dificuldade, aos estímulos do ambiente, sendo em tudo, ou quase tudo, comandadas, caminhando a reboque dos acasos. Para as primeiras, não haveria inércia capaz de se opor aos seus projectos. Para as outras não haveria força anímica capaz de vencer a sua inércia, tendo necessidade de fortes empurrões para se manterem minimamente integradas na sociedade.Em situações de fronteira, alguns reactivos quase caem no âmbito da inactividade, só não sendo chamados de inactivos porque, afinal, todos os seres vivos, incluindo, pois, os humanos, de uma forma ou de outra possuem o dom da irritabilidade, que é a propriedade de reagir a estímulos. Assim, parece não ser tecnicamente lícito considerar inactivos puros.
Porém, contra todas as expectativas, contra tudo o que tenho lido sobre o assunto, contra tudo o que constitui a minha experiência acumulada, deparei recentemente com três casos de pura inactividade, de ausência completa de resposta a estímulos concretos, de incapacidade de vencer a inércia para satisfazer necessidades imediatas, em pessoas aparentemente “normais”, ou seja, não abrangidas por diagnóstico ou tratamento do foro psiquiátrico ou psicológico. São estes os casos:
Caso I.
Átrio de entrada de uma empresa prestadora de serviços médicos privados, no Recife. Uma funcionária aguarda pacientemente a chegada do elevador quando eu entro no edifício. Eu fico a aguardar também. Aguardo um bom bocado até que percebo que a funcionária não accionou o botão de chamada. Faço-o eu e ela continua inalterada como se nada tivesse acontecido de insólito.
Caso II.
Átrio de entrada de um dos pavilhões de um hospital privado, no Recife. Donde estou, a cerca de trinta metros, vejo perfeitamente a porta para onde me dirijo, envidraçada, e, para além dela, a porta do elevador. Uma utente aguarda-o. Ele chega e a porta abre-se. A utente mantém-se estática. Estou a vinte metros. Continuo a avançar. Chego ao elevador que ainda tem a porta aberta. Entro. Então, atrás de mim entra a utente que se dirige ao bloco de dermatologia.
Caso III.
Recepção de um hospital público, no Recife. São 6 horas da manhã. Para os diversos serviços, que iniciam a sua actividade às 7, há várias filas, de objectivo e destino próprio, cada uma com algumas centenas de pessoas. Pergunto a uma mulher no final de uma das filas para que serviço é que ela está formada. Responde-me "não sei, é a primeira vez que aqui venho". Insisto, de uma forma acintosa, apontando para todas as outras filas, se não sabe para que está naquela, especificamente. Responde-me tranquilamente que não. Portanto, digo eu, espera, apenas, a sua vez sem saber em que serviço ou procedimento vai desembocar. Em vez de perguntar nas informações, espera a sua vez, com centenas de pacientes à sua frente.
Para além das situações extremas aqui relatadas, todas elas testemunhadas por quem me acompanhava, é fácil deparar todos os dias com formas de inactividade por conformismo, um conformismo gerado não na impossibilidade física de mudar o curso das ocorrências, mas na presunção de que não vale a pena tentar alterar um facto já considerado, por isso mesmo, natural e normal. É um verdadeiro ciclo vicioso. Não vale a pena apelar para a justiça porque é próprio da justiça ser lenta. Não vale a pena contar com a polícia porque é próprio da polícia ser corrupta. Não vale a pena questionar o professor porque é próprio do professor não estar disponível para explicar melhor. Não vale a pena reclamar os centavos do troco porque é próprio do comerciante fazer publicidade enganosa, marcando o produto por 1,98 para cobrar 2,00 por não ter moedas pequenas.
Tudo isto poderá acontecer noutros países? Dependendo de que outros países, vamos admitir que sim. Mas se é do Brasil que estamos a falar, se é neste país que estamos a viver, se é a ele que pertence esta caracterização, se é aqui que se necessita de uma guinada radical na forma como se vive, é tentar iludir a realidade fazer comparações para nos sentirmos menos sozinhos numa existência de qualidade inferior.
Dizer que este tipo de comportamento se deve ao calor, à seca, à humidade ou ao salário baixo é tentar tapar o sol com a peneira, uma peneira de crivo muito largo para um sol exuberante de incandescência. É falsear razões para se sentir confortavelmente desresponsabilizado por tudo continuar sempre na mesma, apesar das queixas, e justificar, por outro lado, essas mesmas queixas.
Indolência e negligência são atributos típicos do nordestino. Aliados à incompetência motivada por fraco índice de alfabetização e deficiente preparação técnico-profissional, projectam-no para patamares baixos de qualidade de vida. Por isso o nordestino emigra para outras regiões e, pelas mesmas razões, em geral regressa cedo à origem.
Esta inércia, este deixar correr, esta falta de confiança em si próprio e nas instituições são um dos factores que permitem e incentivam o banditismo que prolifera no Nordeste, solitário ou grupal, de impulso ou organizado, em grande parte protegido por um encolher de ombros complacente e desinteressado (também o banditismo é aqui uma banalidade natural) e por uma capa de corrupção que estende os seus tentáculos a agentes e níveis superiores da autoridade policial, magistrados, políticos e empresários.
No fim do filme, os proactivos do crime, sem honra mas com glória, levam a palma aos inertes, espreguiçados no marasmo de acreditar – e apregoar, tolos sorridentes – que Deus é brasileiro.



segunda-feira, março 21, 2005

HÁ MALES QUE VÊM POR BEM

Por experiência própria, todos sabemos que o português falado e escrito no Brasil é bem diferente do português ibérico. Mas essa diferença grande, quase da largura do oceano, não se limita à qualidade lexical, rítmica e melódica apresentada à saciedade pelas telenovelas que transbordam dos vários canais de televisão; nem é à eventual diferença na doçura da fala ou no calor da expressão aquilo a que me refiro. Falo da diferença de qualidade na utilização das regras gramaticais da Língua, com repercussão negativa na linguagem e na escrita. Não é apenas um falar diferente e um escrever diferente: é um falar mal e escrever pior que não se confinam a grupos etários, sexos, cores de pele, estatutos sociais, nem localidades; é um falar mal e escrever pior que alastram a uma pesada fatia da população. "Amanhã ela vim trazer os livros pra tu", "nós vai quando ela vim" e "tu foi quando os outros vim" são algumas das mais que frequentes pérolas deste falar/escrever que nada têm a ver com regionalismos nem com a evolução normal e saudável da Língua. São, isso sim, atentados às suas regras por deficiente aprendizagem no meio familiar e na escola onde, entre os professores, muitos há que falam e escrevem incorrectamente. Assim se reproduzem, ampliam e avolumam os erros de geração em geração.
Estas afrontas linguísticas sempre constituíram para mim aguilhoadas ferozes, para mim que tanto orgulho tenho neste instrumento comum de comunicação. Mas, às vezes, há males que confirmam o ditado e vêm por bem, virando o feitiço contra o feiticeiro.
Existe no Brasil um órgão oficial chamado SERASA, que centraliza todas as pendências financeiras, sejam elas motivadas por cheques sem cobertura, incumprimento para com cartões de crédito, ou qualquer outra falta de pagamento ou compromisso pecuniário.
Acontece que, no início de Fevereiro, recebi na minha caixa de correio electrónico um e-mail dessa mesma SERASA, notificando-me de nove incumprimentos que totalizavam avultada quantia – e convidava-me a abrir uma nova página que me esclareceria cabalmente sobre a situação. Desconfiado que aprendi a ser em terras de Vera Cruz, com bastas razões para isso, não abri a página sugerida e analisei pormenorizadamente a mancha da mensagem. Poderia, de facto, ser da SERASA. No final da página, a garantia, por mim reconhecida e relembrada de inúmeros e-mails, de que estava isenta de vírus, nomeando o antivírus respectivo, dava-lhe total segurança. No entanto, a menos que eu tivesse sido vítima de extravio, roubo ou clonagem de cartão, tinha a certeza de que, por dever e honra, auto-respeito e civismo, todos os meus compromissos financeiros estavam a ser cumpridos. Não tinha perdido nenhum cartão de débito ou de crédito, nem nenhum deles tinha ficado em poder dos vendedores, e à minha vista, mais do que o tempo necessário para a transacção comercial. Entendi, pois, ser melhor esperar que a SERASA desfizesse o que eu acreditava ser um equívoco.
Cerca de um mês depois recebi novo e-mail. Desta vez a mancha não deixava dúvidas quanto à sua proveniência, indiscutivelmente SERASA. Não fazia referência a verbas; falava apenas em várias "pendências financeiras" e, polidamente, ameaçava, pedindo "atenção a este comunicado, pois, medidas legais" seriam adoptadas. A seguir à mensagem propriamente dita, uma dúzia de linhas, oferecia-se-me o encaminhamento para eu baixar o extracto respectivo. Ia fazê-lo quando resolvi reler toda a folha, duas vezes, em busca de algum ponto fraco que pudesse denunciar mal-entendido ou fraude. Nada. O aspecto de respeitabilidade oficial era completo. Mesmo assim, decidi imprimir a folha para poder dedicar-lhe atenção mais minuciosa. Li e reli. Nada de nada em que pudesse apoiar-me para afirmar que aquilo não era meu. Vou, então, abrir a página do extracto, quando todas as campainhas de alarme ressoaram na minha cabeça: no início do e-mail, no campo "Assunto", estava escrito em maiúsculas – "SEU NOME TA NA SERASA". Duas letrinhas no interior da frase e tá-se-mesmo-a-ver-que-é-trafulhice. Duas letrinhas a atraiçoar o trafulha analfabeto.
Se aquilo era um pacote de vírus ou qualquer outra coisa mais pesada, ignoro.
Abri a página da SERASA: sem tirar nem pôr, no e-mail que eu tinha recebido, do logotipo ao corpo da letra, da cor do texto à inclusão final da segurança do antivírus utilizado, tudo era igual. No entanto, olhando melhor, havia uma diferença fundamental: na página autêntica, em caracteres vermelhos e sublinhados, na margem da direita um aviso alertava para o facto de que a "Serasa não envia e-mails para notificação de pendências financeiras. Ao receber, delete imediatamente essas mensagens".
No Brasil defrauda-se bem mas escreve-se mal. Há males que vêm por bem.



sexta-feira, março 11, 2005

RECIFE E O (DES) GOSTO PELO TRABALHO

Após o almoço desta sexta-feira, embaciada de nuvens e medonha de calor, tive de me dirigir ao centro da cidade para resolver assuntos de tribunal, relacionados com uma trafulhice de uma transportadora do Recife a quem encomendara a mudança dos meus pertences que se encontravam a 3.600 km, noutro Estado, no sul. A transportadora em questão passou, sem meu consentimento, a missão a uma outra, a quem não pagou o serviço, ficou com o meu dinheiro e os sócios desapareceram. Enfim, coisa banal e corriqueira nos negócios daqui, com a conseqüente denúncia da minha parte na Justiça.
Cheguei à porta do tribunal derretido como manteiga no forno. Portas cerradas. Um mal encarado polícia militar perante a minha pergunta apontou com o nariz um papel impresso por computador, colado na parede, em que se lia que "nesta sexta-feira, devido à procissão do Senhor dos Passos, este fórum [tribunal] encerra às 13 horas". Fiquei perplexo e, ao mesmo tempo, desapontado com a minha magra inteligência que não me permitiu vislumbrar qualquer relação, por ínfima que fosse, entre uma procissão do Senhor dos Passos e o funcionamento de um tribunal. Afinal, quem participou numa procissão fui eu, a dos passos perdidos.
Lembrei-me, então, que há dias o Presidente Lula da Silva referira em discurso a necessidade de fazer no Nordeste o que Roosevelt fizera no Tenessee, ou seja, segundo a minha interpretação, recuperá-lo da pobreza, da miséria, do sub-desenvolvimento endémico. Sem conseguir ler nas linhas nem nas entrelinhas do discurso do Presidente, ele próprio um nordestino, indicações, ou, ao menos, sugestões de como conseguir isso, pus-me a pensar em injecção de capitais, construção de infraestruturas, como estradas, protecção ao preço dos combustíveis para a energia, a indústria e os transportes, obras de irrigação, crédito bonificado à agricultura e à pecuária, incentivos a cursos técnicos e profissionalizantes fundamentais para o desenvolvimento regional e outros instrumentos, provavelmente considerados patetices por um estratega de desenvolvimento económico-social, mas que os meus limitados conhecimentos na área consideraram importantes. Depois, fui eu próprio que rejeitei todos esses instrumentos, pensando seriamente que, antes de mais, há que "recuperar" mentalidades.
O nordestino queixa-se da sua pobreza, da infertilidade da terra, da seca, da rudeza do clima, do excesso de calor que, desabafava uma mulher no autocarro, "dá cá uma moleza, dá cá uma preguiça...". Mas, o que faz contra a pobreza? O quê e como reivindica? Como se organiza? Que estratégias desenha? É certo que o excesso de calor afecta, afecta todos os que têm de trabalhar na rua ou no campo. Mas, e essa multidão que ganha a vida debaixo de telha, nas repartições, nas lojas, nas escolas, nos consultórios, nos escritórios, nos hospitais, nos tribunais (quando não há procissões...), essa multidão que usa do privilégio dos ventiladores e dos aparelhos de ar condicionado? O calor afecta as condições de trabalho, mas o empenhamento no trabalho depende da mentalidade de cada um e do povo no seu conjunto.
O nordestino queixa-se do salário magro, da falta de emprego e das más condições de vida. Mas queixa-se, apenas. Vitima-se. Vitimar-se é mais cómodo do que assumir a responsabilidade pelo seu destino. Por isso pouco ou nada faz para mudar a sua situação e para transformar a sua vida.
É paradigmática a anedota que se conta de um sulista que, em visita ao nordeste, perguntava, ao ver um campo abandonado, se aquela terra não dava batatas; respondia o nordestino que não. E cebolas? Não. E feijão? Não. E mandioca? Não. O sulista parou para pensar e disparou ao nordestino: E se cultivar? Este respondeu-lhe, com um encolher de ombros: Ah!, se cultivar, dá...
Por aqui todos os pretextos são bons para se furtar ao trabalho. É frequente verem-se serviços públicos fechados antes da hora do encerramento. Os feriados, as tolerâncias de ponto e os dias comemorativos constituem um rol avantajado de dias de ausência laboral, o Carnaval dura mais de uma semana, e, como se não bastasse, em Outubro faz-se uma segunda volta do Carnaval, a Recifolia, que dura outra semana, sem falar das ressacas. Curiosamente, nestas épocas ninguém se queixa do calor...
Se não se trabalhar esta mentalidade de modo a substituí-la por uma outra de esforço colectivo para melhorar a qualidade de vida, em todos os patamares, não há infraestrutura que modifique o estado de coisas, nem há Senhor dos Passos, ou qualquer outra entidade da corte celestial que possa desempenhar a função de cada um na transformação do mundo.
Embora limitados pelo contexto, vão progredindo, apesar de tudo, aqueles que constituem as excepções que confirmam as regras, e que são os que conseguem ir à procissão do Senhor dos Passos, sem, no entanto, deixarem de trabalhar.



domingo, março 06, 2005

RECIFE - IMPUNIDADE, DESCONHECIMENTO E DESCONTROLO

Domingo, 30 de Janeiro, quatro horas e vinte minutos da madrugada, Bairro de Areias, a cerca de 20 km do centro do Recife.
Dormia tranqüilo há muito tempo quando fui brutalmente despertado pela explosão dos alto-falantes de um automóvel particular que estacionara junto do meu prédio, e debitava os ruídos estridentes de uma qualquer banda roufenha. Como nunca se sabe em que estado de corpo e de espírito se encontram os autores de semelhantes actos, resolvi, por precaução, não descer à rua para reclamar o direito ao meu descanso, mas, em vez disso, telefonar para o 12º Batalhão da Polícia Militar, o que zela pelo meu bairro, pedindo a sua intervenção.O soldado de plantão que me atendeu declarou-me de imediato que deveria contactar o 190, número nacional de emergência, solicitando ajuda. Insisti para que me mandassem um carro de patrulha, alegando que há pouco tempo atrás, o que era inteiramente verdade e pode ser testemunhado, um tenente daquele Batalhão me assegurara que se eu tivesse um problema, fosse qual fosse, viriam de imediato. O plantão, pouco interessado nas minhas razões, remeteu-me de novo para o 190, dizendo que todos os carros estavam na rua. Na minha inocência e confiança, tornei a insistir, pedindo para que ele próprio contactasse a viatura que mais próximo se encontrasse do local. Respondeu-me que não poderia fazer isso, sem explicar porquê, rematando, impaciente, que uma vez que era eu o queixoso, eu que resolvesse o problema. Assim mesmo... Falei, então, para o 190 onde fui atendido com prontidão e gentileza. Porém, para espanto meu, informaram-me de que a partir do meio de Janeiro as infracções por ruídos nocturnos tinham deixado de ser da alçada da PM e pertenciam agora ao âmbito de um departamento da Prefeitura. Liguei, pois, para o telefone que me forneceram, e aí um funcionário, pouco simpático e pouco prestável, me retorquiu com voz de sono que nada tinha a ver com o assunto, pois da sua competência eram apenas os barulhos provenientes de bares. Em tom de despedida, forneceu-me outro telefone donde nunca ninguém me respondeu ao longo de meia hora de tentativas... Fiz o mesmo circuito de telefonemas três vezes, na esperança de ser bem sucedido numa ajuda de que estava necessitado, mas em vão, conseguindo apenas irritar cada vez mais os meus interlocutores. Acabei por ter de me deitar a ranger os dentes ao compasso do som horripilante de um qualquer notívago desrespeitador impune e, mais e pior do que isso, certo da sua impunidade.
Segunda-feira de manhã dirigi-me a um posto de atendimento da Prefeitura, numa Loja do Cidadão, onde expus a minha queixa. A funcionária olhou-me com complacência e, porque, asseverou, não era caso de Prefeitura, encaminhou-me para a DIRCOM do meu bairro, Directoria de Controle Urbano e Ambiental. Lá fui, debaixo de um sol de picareta e um calor de assar os ossos, falei com a responsável pela fiscalização e fiquei a saber que o assunto não era com eles e que, para além disso, não sabiam com quem era. Em desespero de causa, e para salvar a honra do convento, a chefe dos fiscais recomendou-me o Ministério Público. Achei exagerado, mas, em boa verdade, muito intimamente eu decidira já que alguém teria de dar destino à minha queixa, fosse o Presidente da nação, fosse o mais modesto escriturário da mais obscura repartição pública. E com esta intenção galguei a franca entrada daquele Órgão, onde fui recebido de imediato, de modo afável e prestativo, por dois Promotores que tomaram conta da ocorrência por mim declarada e assinada.
Esclareceram-me que este tipo de ocorrência é da jurisdição da CTTU, Companhia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife, cujos elementos têm medo de actuar à noite, uma vez que não possuem armas. No entanto, poderão pedir a colaboração da Polícia Militar que para isso está instruída através de um protocolo assinado por várias entidades, entre elas essa polícia, cujo nome do coronel responsável me foi fornecido. Aliás, a própria DIRCOM está envolvida, e o seu desconhecimento quanto à obrigatoriedade da participação advém do facto de ter faltado à reunião em que o referido protocolo foi assinado. Dias depois, ocasionalmente, numa consulta à Internet, fiquei a saber de uma operação em curso, a operação “sossego e paz”, da Secretaria da Defesa Social, precisamente contra os ruídos nocturnos na cidade, que envolve, entre outras forças, Polícia Militar, Polícia Civil, Dircom e CTTU. Mas como os intervenientes ignoram o meu direito ao sossego e descanso de noite, da próxima vez que for afligido por um cidadão a debitar decibéis excessivos, só me resta aproveitar a insónia e escrever mais umas crónicas sobre a impunidade, o desconhecimento e o descontrolo que reina na cidade.



quinta-feira, março 03, 2005

AUTOCARRO DE PORTUGUESES ASSALTADO NO RECIFE

Nem de propósito. Há dias, em crónica anterior, prometi adiantar alguns dados que pudessem contribuir para justificar a quebra de turismo no Estado de Pernambuco, conforme notícia veiculada por um dos principais órgãos de informação da capital, Recife.
Para além das crónicas que se lhe seguiram com descrições e narrações que lançam alguma luz sobre o assunto, esta hoje resulta, testemunho actualíssimo, de matéria publicada nesta data e na data de ontem em vários jornais do Brasil e de Portugal, pelo menos.
Na opinião das autoridades policiais e segundo declarações de políticos, expressas com maior veemência durante a campanha para as eleições autárquicas de Outubro passado, Recife é a capital nacional do crime, à frente de São Paulo e Rio de Janeiro.
Uma das vítimas mais recentes desta criminalidade foi um grupo de 19 portugueses, quase todos estudantes, que se dirigiam para Porto de Galinhas, uma bela e acolhedora cidadezinha balnear de magníficas águas cristalinas e piscinas naturais, a cerca de 53 km do Recife. Eram 21:30 h da passada terça-feira quando aterraram no aeroporto internacional do Recife. Cumpridas as formalidades de desembarque, os turistas recém chegados ocuparam quatro autocarros que, por razões de segurança, deviam dirigir-se em caravana para o desejado destino. De modo não completamente esclarecido, a última viatura ficou distanciada das restantes, a ponto de perder o contacto com elas. Já perto do fim da viagem, imobilizada por dois automóveis que a bloquearam na estrada e a conduziram depois para um caminho secundário, os seus passageiros foram rapidamente apeados e despojados dos seus principais haveres.
A operação decorreu breve e eficazmente para os assaltantes. No entanto, segundo o jornalista António Cancela, da SIC, uma das vítimas, eles actuaram de forma pouco organizada, revelando muito amadorismo. Amadores ou não, o que dizer, então, da polícia que, mais de 12 horas depois, ainda não tinha qualquer pista dos ladrões, numa região que conhece a palmos? Pior do que amadorismo, a imagem que o povo tem dos seus polícias é de que são incompetentes, mal equipados, corruptos e preguiçosos, o que, não em todos, mas em muitos casos, corresponde à realidade. Em fins do ano passado, um casal de médicos foi vítima de furto em Salvador da Bahia. Apresentada a queixa na Delegacia do Turista, foi-lhes dito que não tivessem esperança de reaver o que tinha sido furtado. Quanto a apoio imediato no terreno, com sorrisos e simpatias declararam nada poder fazer porque o único carro da delegacia não tinha combustível e o telefone fora cortado por falta de pagamento – desculpas demasiado absurdas para serem tomadas como verdade por quem conhece estes meandros; o miserabilismo administrativo tem os seus limites e, muitas vezes, resulta da inépcia dos responsáveis.
O núcleo comercial de Porto de Galinhas, uma união de 30 empresas, prontificou-se a reembolsar os turistas portugueses de todos os prejuízos, mesmo os respeitantes à moeda, que as seguradoras não cobrem por ser difícil provar qual o montante perdido. Tal prestabilidade, quase comovente, assenta no simples facto de Pernambuco receber 70 mil portugueses por ano, sendo Porto de Galinhas o seu principal destino.
Por seu lado, o governador de Pernambuco garante que o transporte para os hotéis passará a ser escoltado pela polícia. Como em muitas outras situações, não deverá passar de conversa, neste caso para português ouvir. Se se quisesse impedir este tipo de actos, há muito que as escoltas estariam a ser feitas, tanto mais que os autocarros, por razões de segurança, já só circulavam em caravana. Portanto, sem escolta, era previsível que, mais dia, menos dia, algo de semelhante acontecesse.
Tem alguma razão o jornalista brasileiro que, recentemente, numa rádio, afirmava que o estrangeiro ama o Brasil enquanto não vive nele. Mas podemos acrescentar que mesmo em pouco tempo é possível adquirir neste país profundas experiências traumáticas.
Dos nossos compatriotas, muitos há que desejam voltar depressa para casa. É que, conforme sublinhou Fátima Almeida, vice-cônsul de Portugal no Recife, "o cidadão europeu não está acostumado com essas abordagens". Realmente. É uma questão de mundos.



quarta-feira, março 02, 2005

RECIFE DA VIOLÊNCIA

Recolha aleatória de notícias nos 3 principais jornais de Pernambuco, sediados na capital, Recife.
Terça-feira, 1 de Março.
Folha de Pernambuco: "Um tiroteio ocorrido na madrugada de ontem em frente ao clube (...) deixou o saldo de 1 morto (21 anos) e 3 feridos (17, 19 e 49 anos)". "O delegado (...) já tem a identificação dos autores das mortes de 3 mulheres, ocorridas em menos de 24 horas, na última sexta-feira (...)".
Jornal do Comércio: "A polícia espera para esta terça-feira a apresentação do policial militar (...) namorado da estudante (...) 23 anos, encontrada morta, na madrugada de domingo 27, dentro de casa (...), zona sul do Recife".
Quarta-feira, 2 de Março.
Diário de Pernambuco: "Pernambucanos são presos por assaltos a carro-forte" [após tiroteio com a polícia, foram presos 16 integrantes da quadrilha, 9 pernambucanos; foram encontrados com eles várias armas de diferentes tipos, mais de 1000 munições, coletes à prova de bala, camisas da polícia federal, e rádio-transmissores]. "Polícia militar suspeito de crime é acusado de matar grávida". "Ônibus com turistas portugueses é assaltado em Porto de Galinhas".
Folha de Pernambuco: "Caseiro é morto por colegas – (...) um dos assassinos é conhecido como um dos principais traficantes de droga do município".
Jornal do comércio: "As polícias militar e civil realizam durante esta quarta-feira uma operação pente-fino no presídio (...), zona sudoeste do Recife. Com 5 cães farejadores, os policiais tentam evitar a entrada de drogas no presídio no dia do encontro conjugal. Segundo a polícia, as drogas entram (...) com mais facilidade nos dias de visitas íntimas".
Todos os dias ocorrem homicídios, não poucas vezes por razões menores. Cerca de metade dos homicídios são cometidos por pessoas sem histórico criminal e por motivos fúteis. O Brasil é o país onde mais se mata com arma de fogo. A cada treze minutos um brasileiro é assassinado no Brasil.
Um estudo realizado pela Unesco em 1998, sobre a violência entre jovens de 15 a 24 anos, nas capitais brasileiras, concluía que Recife estava em 2º lugar, logo depois de Vitória, capital do Estado de Espírito Santo. Os jovens recifenses tinham, então, maior probabilidade de serem assassinados que os jovens da Colômbia, onde a taxa de óbito era de 147,7 por 100 mil habitantes, contra 154,5 no Recife.
Em declarações ao "Diário de Pernambuco" de 17/10/2001, Paulo Guimarães, consultor do instituto de pesquisas GPP (Grupo de Planejamento e Pesquisa), de São Paulo, e professor de Estatística da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas, cidade do Estado de São Paulo), classifica Recife como uma das 10 mais violentas cidades do mundo. Em cada 5 famílias recifenses, uma corre o risco de ter um dos seus elementos assassinados por arma de fogo. Os números seriam superiores se fossem contabilizadas as mortes por arma branca e outras formas de morte violenta.
Mais recentemente, a imprensa do Recife, apoiada em estatísticas, considerou a capital de Pernambuco como a cidade mais violenta do Brasil, bem à frente de São Paulo e Rio de Janeiro, os tradicionais focos de violência urbana.
Em Agosto do ano passado, em plena campanha para as autárquicas que se realizaram em Outubro, um candidato à Prefeitura (Câmara Municipal) do Recife avançava que "o Recife hoje é a capital da violência (...). São cerca de 90 homicídios para cada 110 mil habitantes, o dobro do índice nacional, que é de 45,5".
Para além destes dados, já de si eloquentes e, ao mesmo tempo, estarrecedores, há quem defenda, ainda, que os números oficiais estão mascarados e que apenas 1/3 dos crimes cometidos são notificados.Durante muitos meses tive oportunidade de conhecer bem um bairro limítrofe da cidade. Sem ser um bairro pobre, não está, porém, incluído nas chamadas zonas nobres – Boa Viagem e Zona Norte, a primeira onde se instalou o novorriquismo recifense e alguns endinheirados estrangeiros, e a segunda de carácter tradicionalista.
O que mais impressiona nesse bairro é o seu aspecto de presídio, comum, de resto, a todos os bairros deste tipo, aumentando de intensidade para a periferia. Deprimentes, os passeios pela rua lembram marchas através de imensos corredores da morte. Todas as habitações, das mais humildes às de aspecto mais abastado, das mercearias minúsculas aos supermercados avantajados, dos cafés às papelarias, das creches às farmácias, todas são protegidas por gradeamentos intransponíveis, às vezes em sucessivas camadas, para que os seus proprietários ou meros utilizadores aí possam trabalhar, conviver, descansar sem a preocupação do assalto iminente; porque aqui assalta-se de arma em punho e mata-se por uma bicicleta se preciso for, literalmente; nem as patrulhas frequentes da polícia, motorizada, a cavalo ou a pé, dissuadem os bandidos, como aqui se chama a todo o tipo de assaltante, seja ele sequestrador, violador ou simples ladrão.
Nalguns locais mais esconsos, ou a horas mais tardias, onde os odores são mais intensos, a água que escorre pela rua é mais untuosa, negra e putrefata, o tapete de lixo é mais evidente, o esburacado das ruas de terra batida é mais pronunciado, as pessoas fazem o seu comércio através de grades e através de grades conversam com os vizinhos.
Mas isto, esta violência e o medo que ela comporta por antecipação, é esperado, num país onde existe preconceito racial admitido pelas autoridades, onde a maioria da população tem de viver com um salário mínimo, mínimo, também, na verdadeira acepção da palavra, onde, segundo informação de 2002 de um dos principais jornais da região sul, o "Diário Catarinense", de Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, os voluntários, individuais e organizações, que trabalham no combate à fome acorrem a 80 milhões de bocas, onde, conforme notícia de 9 de Dezembro deste ano, do "Globo Online", de São Paulo, 27 milhões de crianças vivem na pobreza (os brasileiros de 0 a 14 anos constituem 35% da população, ou seja, 63 milhões de pessoas), onde a corrupção é descarada, em todos os patamares da escala social, e é descaradamente negada e sempre confirmada mais tarde pelas investigações imparciais (o Brasil vem no lugar 59 da corrupção, em que o lugar 1 da transparência é ocupado pela Finlândia e o 145, o último, pelo Haiti e pelo Bangladesh) e onde a Polícia tem salários miseráveis, está mal apetrechada, e, com frequência, se passa para o outro lado da lei; numa cidade do interior, a menos de 200 km daqui, a esquadra da polícia (chamada Delegacia) para proteger cerca de 72.000 pessoas dispõe de um prédio de dois andares em que: há apenas um telefone; não existe fax e muito menos internet; a única viatura disponível só arranca de empurrão; os polícias pagam do seu bolso à empregada de limpeza que diariamente lhes varre o chão, despeja os cestos de papéis e faz alguma comida para os que não podem almoçar em casa (almoçar no restaurante é impensável); se quiserem ter uma arma que faça frente às sofisticadas armas dos bandidos, têm de se endividar e desdobrar em múltiplas prestações; cada agente ganha um salário mínimo, quase tanto como um médico, é verdade, mas muito menos que um traficante; o agente escrivão desta Delegacia foi assassinado há alguns meses numa povoação próxima e os autores do homicídio continuam por descobrir, ou, pelo menos, andam à solta.
O Governo inventa receitas que não surtem efeito no combate ao crime. A última foi a lei do desarmamento, pela qual proibiu o porte de armas a todo e qualquer cidadão, fosse qual fosse o pretexto, e, em contrapartida, ofereceu um salário mínimo, pelo menos, por cada arma voluntariamente entregue, aumentando o prémio consoante o tipo de arma. Isto teve dois resultados: por um lado, a ala mais criativa do sector mais miserável da população começou a construir, desenfreadamente, armas artesanais para se habilitar ao prémio, o que obrigou o governo a catalogar as armas susceptíveis de contra-reembolso; em segundo lugar, todo o cidadão se viu privado de um mecanismo de dissuasão do assaltante que, por seu turno, passou a actuar mais às claras, mais desinibidamente, mais seguramente, já que, ele próprio, nunca entregou a sua arma. Uma lei, pois, que veio, sem margem para dúvidas, beneficiar o infractor.
É por isso que cada vez mais se lança mão das cercas electrificadas e das milícias particulares, eufemisticamente chamadas "seguranças", para defender pessoas e bens em guetos das elites ricas. Vinicius Caldeira Brandt, sociólogo no Centro de Análise e Planeamento brasileiro, Cebrap, diz: "Trata-se de facto de uma guerra civil das pessoas que têm dinheiro e poder para se protegerem. Na Europa, os criminosos vivem entre muros; no nosso país são os ricos".



terça-feira, março 01, 2005

RECIFE E A CULTURA DO LIXO

A produção de lixo e o que fazer com ele é um problema que ocupa, preocupa e, às vezes, aflige os responsáveis pela gestão das comunidades. Mas o destino imediato, acto contínuo, do resíduo ocasionado depende da consciência ecológica e da educação de base do agente consumidor: nalgumas cidades, o chão é de uma limpeza imaculada, sendo os próprios cidadãos a exercer uma mútua acção pedagógica nesse sentido; noutras, a desconsideração e o desprezo são de tal ordem que um visitante daquelas primeiras poderá ser levado, legitimamente, a pensar que se passeia por uma lixeira a céu aberto.
O Brasil é um país com cidades exemplarmente limpas, muitas e em variadas regiões, que não cito pela impossibilidade prática de nomear todas. Mas não posso esconder, em contrapartida, que considero Recife uma das cidades mais sujas das que já conheci, no Brasil e fora dele. Aliás, no Brasil não encontrei ainda comparação.
Nesta cidade, cerca de 1.600.000 habitantes numa área de 220 km2 produzem, em números redondos, 3.000 toneladas de lixo por dia, o que significa que cada habitante do Recife dá origem a quase 2 quilos de resíduos diariamente. Poder-se-ia discutir se é possível diminuir essa carga, mediante campanhas e programas que criem nas pessoas hábitos diferentes. Mas a questão premente é o que se faz com esse volume de detritos. O facto de 76% dos lixos das ruas das cidades brasileiras ser depositado a céu aberto já é alarmante. Mas a situação torna-se assustadora quando se constata o seguinte:
- Recife, como muitas outras cidades brasileiras, não possui contentores de rua, fechados, para o lixo doméstico. Algumas experiências, tímidas, muito restritas e, até agora, inconsequentes, de colecta selectiva, não habituaram a população a proceder a uma separação dos lixos;
- os produtos residuais das casas são, então, acondicionados em sacos de plástico, geralmente os que transportaram as compras do supermercado, nem sempres bem fechados, quase nunca hermeticamente fechados, e deixados a monte na via pública, aguardando a passagem do camião do lixo;
- assim expostos com toda a vulnerabilidade decorrente, estão sujeitos à acção de vândalos e beberrões que se entretêm a pontapear os sacos; de cães e gatos vadios, que ocupam impunemente a cidade, esfomeados e, por isso mesmo, de faro mais apurado, que esventram os sacos em busca do osso ou da espinha de peixe; de catadores de lixo para comercializar (só a trabalhar para depósitos particulares há cerca de 1.500 na cidade) que, geralmente, não respeitam as normas de higiene e limpeza e deixam o local de depósito dos sacos como uma ampla e literal estrumeira; a chuva e o vento encarregam-se de fazer o resto.
Não se pense, erradamente, que este panorama é exclusivo, ou mesmo típico, dos bairros de gente de menor renda. Nos chamados bairros nobres, designação, de resto, abusiva, a situação não é essencialmente diferente; talvez aqui os serviços de prontidão de recolha e limpeza acorram mais depressa, mas a filosofia e a práxis são as mesmas.
Na imprensa, na rádio, na televisão, na Internet, deparo com denúncias e protestos pelo aspecto relaxadamente sujo da cidade. Nos transportes públicos, nos supermercados, na rua, ouço os meus concidadãos reclamar do aspecto relaxadamente sujo da cidade. Alguns recantos das margens dos rios, em particular na maré baixa, são montureiras. Nos jardins, em praças, ruas e avenidas, é frequente formarem-se constantes tapetes de esterco, orgânico e inorgânico. E, de facto, os meus concidadãos queixam-se disso com amargura e revolta, mas, ao mesmo, com mágoa e o desânimo de quem se conformou por não poder deixar de ser assim, a ponto de reclamarem cada vez menos e de encararem como normal o estado imundo da cidade. Ora, isto leva-nos à outra face do problema.
Pelo ritmo e encaminhamento desta prosa, poder-se-ia pensar que todo o quadro caótico descrito resulta da incompetência ou da irresponsabilidade autárquica. Nada disso. A responsabilidade é de todos nós, reclamantes ou não. Constatei que, na generalidade - e que me perdoem as honrosas excepções - o recifense, seja qual for a idade, o sexo ou a posição social, não possui espírito ecológico, e, no campo da higiene pública, demosntra não ter noção das mais elementares regras de asseio, co-existência, civismo e cidadania.
Se tivesse filmado (talvez comece a fazê-lo), poderia mostrar-vos uma curta-metragem elucidativa e ilustrativa do que afirmo acima. Peço que apelem à vossa imaginação e que tentem visualizar interiormente cenas como estas: a avozinha e o netinho passeiam no parque, a avozinha dá uma guloseima ao netinho e, bem natural e displicentemente, lança no chão invólucro, seguido, bem depressa, pelo guardanapo de papel que utilizou; para além do lixo que produz, a avozinha passa para o neto uma mensagem deseducativa, ou seja, reproduz socialmente o erro; e o contentor ali tão perto... sim, porque a cidade não possui contentores para recolha de lixo das habitações, mas tem disseminadas pela cidade caixas para o pequeno lixo, como o pauzinho do sorvete, a garrafa de água vazia, o lenço de papel ou o copo de plástico; pois o cidadão do recife, para espanto de quem o visita, remete para o chão um qualquer desperdício, tendo a dois metros de si, dois metros, sem exagero, a caixa de recolha; seguimos de automóvel por uma ponte magnífica que liga dois bairros da cidade, à nossa frente um carro de último modelo, atestando o poder de compra do seu proprietário, e, precisamente do lado do condutor, sai pela janela um lenço de papel, enquanto que, do lado oposto, atrás, sai uma lata de refrigerante; precisei de tomar uma autocarro, numa das minhas muitas incursões pela cidade, e espantei-me ao ver a cobradora lançar para a via pública, em andamento, a garrafinha plástica de que tinha sorvido as últimas gotas; entretanto, os passageiros juncavam o chão do veículo de pauzinhos de gelado, invólucros de rebuçado, cascas de amendoim e, até mesmo, cascas de laranja; lembrei-me, então, que já vira fazer o mesmo a idênticas garrafinhas a dois motoristas em outras duas viagens; estarrecido fiquei quando, em frente a minha casa, vi, de um carro de polícia parado num semáforo, abrir-se a porta do motorista e dela sair uma mão-cheia de papéis amarrotados.
Meu Caro Leitor, sem tintas desnecessárias, tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é Recife.
Tenho esperança de um dia poder dizer ao Prefeito da cidade, o equivalente ao Presidente da Câmara Municipal, em Portugal, o quanto o admiro e respeito, e agradeço e, ao mesmo tempo, lamento, pelo verdadeiro batalhão de funcionários camarários que vejo, todos os dias, incansáveis, em magotes, a recolher o lixo dos recifenses. Mas acontece que o batalhão de recifenses que vem logo atrás, derramando pelo chão centenas de copos e sacos de plástico, garrafas vazias, papéis inutilizados, lenços sujos, cascas de fruta e de marisco, latas de refrigerante e de cerveja, enfim, tudo o que é poluidor, não reconhece o esforço dos primeiros, nem as necessidades estéticas e higiénicas da cidade. Até um peixe, Prefeito, dir-lhe-ia, até um gordo peixe a apodrecer ao sol eu já vi, em frente a uma grande loja que anuncia a última moda em roupa masculina e feminina.
É verdade que eu nunca deparai em algum out-door, das centenas que proliferam pela cidade, com qualquer apelo à contenção poluidora, nem tenho conhecimento da existência de campanhas contra a sujeira, levadas a cabo, seja pela Prefeitura, seja pelo Governo do Estado. Mas será que este hábito tão entranhado de arremessar ao chão o que é inútil poderá modificar-se com simples apelos ou mesmo campanhas? Eu não sei.
Um amigo brasileiro sugeria, com graça, meio a brincar, meio a sério, que a todo o recifense, fosse ele quem fosse, apanhado em flagrante, conspurcando o chão, se punisse com quatro fins-de-semana de recolha de lixo nas ruas do seu bairro, integrando as equipas de funcionários camarários, com divulgação na TV e na imprensa para que servisse de exemplo. Resultaria? Talvez... Só experimentando... Se um dia encontrar o Prefeito, dir-lhe-ei.



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