Abstraindo os casos patológicos, é costume classificar as pessoas, quanto ao seu grau de iniciativa, em proactivas e reactivas. As primeiras seriam aquelas que comandariam os acontecimentos, que actuariam independentemente de pressões exteriores, as que, em suma, escreveriam a História. As outras limitar-se-iam a responder, com mais ou menos dificuldade, aos estímulos do ambiente, sendo em tudo, ou quase tudo, comandadas, caminhando a reboque dos acasos. Para as primeiras, não haveria inércia capaz de se opor aos seus projectos. Para as outras não haveria força anímica capaz de vencer a sua inércia, tendo necessidade de fortes empurrões para se manterem minimamente integradas na sociedade.Em situações de fronteira, alguns reactivos quase caem no âmbito da inactividade, só não sendo chamados de inactivos porque, afinal, todos os seres vivos, incluindo, pois, os humanos, de uma forma ou de outra possuem o dom da irritabilidade, que é a propriedade de reagir a estímulos. Assim, parece não ser tecnicamente lícito considerar inactivos puros.
Porém, contra todas as expectativas, contra tudo o que tenho lido sobre o assunto, contra tudo o que constitui a minha experiência acumulada, deparei recentemente com três casos de pura inactividade, de ausência completa de resposta a estímulos concretos, de incapacidade de vencer a inércia para satisfazer necessidades imediatas, em pessoas aparentemente “normais”, ou seja, não abrangidas por diagnóstico ou tratamento do foro psiquiátrico ou psicológico. São estes os casos:
Caso I.
Átrio de entrada de uma empresa prestadora de serviços médicos privados, no Recife. Uma funcionária aguarda pacientemente a chegada do elevador quando eu entro no edifício. Eu fico a aguardar também. Aguardo um bom bocado até que percebo que a funcionária não accionou o botão de chamada. Faço-o eu e ela continua inalterada como se nada tivesse acontecido de insólito.
Caso II.
Átrio de entrada de um dos pavilhões de um hospital privado, no Recife. Donde estou, a cerca de trinta metros, vejo perfeitamente a porta para onde me dirijo, envidraçada, e, para além dela, a porta do elevador. Uma utente aguarda-o. Ele chega e a porta abre-se. A utente mantém-se estática. Estou a vinte metros. Continuo a avançar. Chego ao elevador que ainda tem a porta aberta. Entro. Então, atrás de mim entra a utente que se dirige ao bloco de dermatologia.
Caso III.
Recepção de um hospital público, no Recife. São 6 horas da manhã. Para os diversos serviços, que iniciam a sua actividade às 7, há várias filas, de objectivo e destino próprio, cada uma com algumas centenas de pessoas. Pergunto a uma mulher no final de uma das filas para que serviço é que ela está formada. Responde-me "não sei, é a primeira vez que aqui venho". Insisto, de uma forma acintosa, apontando para todas as outras filas, se não sabe para que está naquela, especificamente. Responde-me tranquilamente que não. Portanto, digo eu, espera, apenas, a sua vez sem saber em que serviço ou procedimento vai desembocar. Em vez de perguntar nas informações, espera a sua vez, com centenas de pacientes à sua frente.
Para além das situações extremas aqui relatadas, todas elas testemunhadas por quem me acompanhava, é fácil deparar todos os dias com formas de inactividade por conformismo, um conformismo gerado não na impossibilidade física de mudar o curso das ocorrências, mas na presunção de que não vale a pena tentar alterar um facto já considerado, por isso mesmo, natural e normal. É um verdadeiro ciclo vicioso. Não vale a pena apelar para a justiça porque é próprio da justiça ser lenta. Não vale a pena contar com a polícia porque é próprio da polícia ser corrupta. Não vale a pena questionar o professor porque é próprio do professor não estar disponível para explicar melhor. Não vale a pena reclamar os centavos do troco porque é próprio do comerciante fazer publicidade enganosa, marcando o produto por 1,98 para cobrar 2,00 por não ter moedas pequenas.
Tudo isto poderá acontecer noutros países? Dependendo de que outros países, vamos admitir que sim. Mas se é do Brasil que estamos a falar, se é neste país que estamos a viver, se é a ele que pertence esta caracterização, se é aqui que se necessita de uma guinada radical na forma como se vive, é tentar iludir a realidade fazer comparações para nos sentirmos menos sozinhos numa existência de qualidade inferior.
Dizer que este tipo de comportamento se deve ao calor, à seca, à humidade ou ao salário baixo é tentar tapar o sol com a peneira, uma peneira de crivo muito largo para um sol exuberante de incandescência. É falsear razões para se sentir confortavelmente desresponsabilizado por tudo continuar sempre na mesma, apesar das queixas, e justificar, por outro lado, essas mesmas queixas.
Indolência e negligência são atributos típicos do nordestino. Aliados à incompetência motivada por fraco índice de alfabetização e deficiente preparação técnico-profissional, projectam-no para patamares baixos de qualidade de vida. Por isso o nordestino emigra para outras regiões e, pelas mesmas razões, em geral regressa cedo à origem.
Esta inércia, este deixar correr, esta falta de confiança em si próprio e nas instituições são um dos factores que permitem e incentivam o banditismo que prolifera no Nordeste, solitário ou grupal, de impulso ou organizado, em grande parte protegido por um encolher de ombros complacente e desinteressado (também o banditismo é aqui uma banalidade natural) e por uma capa de corrupção que estende os seus tentáculos a agentes e níveis superiores da autoridade policial, magistrados, políticos e empresários.
No fim do filme, os proactivos do crime, sem honra mas com glória, levam a palma aos inertes, espreguiçados no marasmo de acreditar – e apregoar, tolos sorridentes – que Deus é brasileiro.