CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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segunda-feira, março 21, 2005

HÁ MALES QUE VÊM POR BEM

Por experiência própria, todos sabemos que o português falado e escrito no Brasil é bem diferente do português ibérico. Mas essa diferença grande, quase da largura do oceano, não se limita à qualidade lexical, rítmica e melódica apresentada à saciedade pelas telenovelas que transbordam dos vários canais de televisão; nem é à eventual diferença na doçura da fala ou no calor da expressão aquilo a que me refiro. Falo da diferença de qualidade na utilização das regras gramaticais da Língua, com repercussão negativa na linguagem e na escrita. Não é apenas um falar diferente e um escrever diferente: é um falar mal e escrever pior que não se confinam a grupos etários, sexos, cores de pele, estatutos sociais, nem localidades; é um falar mal e escrever pior que alastram a uma pesada fatia da população. "Amanhã ela vim trazer os livros pra tu", "nós vai quando ela vim" e "tu foi quando os outros vim" são algumas das mais que frequentes pérolas deste falar/escrever que nada têm a ver com regionalismos nem com a evolução normal e saudável da Língua. São, isso sim, atentados às suas regras por deficiente aprendizagem no meio familiar e na escola onde, entre os professores, muitos há que falam e escrevem incorrectamente. Assim se reproduzem, ampliam e avolumam os erros de geração em geração.
Estas afrontas linguísticas sempre constituíram para mim aguilhoadas ferozes, para mim que tanto orgulho tenho neste instrumento comum de comunicação. Mas, às vezes, há males que confirmam o ditado e vêm por bem, virando o feitiço contra o feiticeiro.
Existe no Brasil um órgão oficial chamado SERASA, que centraliza todas as pendências financeiras, sejam elas motivadas por cheques sem cobertura, incumprimento para com cartões de crédito, ou qualquer outra falta de pagamento ou compromisso pecuniário.
Acontece que, no início de Fevereiro, recebi na minha caixa de correio electrónico um e-mail dessa mesma SERASA, notificando-me de nove incumprimentos que totalizavam avultada quantia – e convidava-me a abrir uma nova página que me esclareceria cabalmente sobre a situação. Desconfiado que aprendi a ser em terras de Vera Cruz, com bastas razões para isso, não abri a página sugerida e analisei pormenorizadamente a mancha da mensagem. Poderia, de facto, ser da SERASA. No final da página, a garantia, por mim reconhecida e relembrada de inúmeros e-mails, de que estava isenta de vírus, nomeando o antivírus respectivo, dava-lhe total segurança. No entanto, a menos que eu tivesse sido vítima de extravio, roubo ou clonagem de cartão, tinha a certeza de que, por dever e honra, auto-respeito e civismo, todos os meus compromissos financeiros estavam a ser cumpridos. Não tinha perdido nenhum cartão de débito ou de crédito, nem nenhum deles tinha ficado em poder dos vendedores, e à minha vista, mais do que o tempo necessário para a transacção comercial. Entendi, pois, ser melhor esperar que a SERASA desfizesse o que eu acreditava ser um equívoco.
Cerca de um mês depois recebi novo e-mail. Desta vez a mancha não deixava dúvidas quanto à sua proveniência, indiscutivelmente SERASA. Não fazia referência a verbas; falava apenas em várias "pendências financeiras" e, polidamente, ameaçava, pedindo "atenção a este comunicado, pois, medidas legais" seriam adoptadas. A seguir à mensagem propriamente dita, uma dúzia de linhas, oferecia-se-me o encaminhamento para eu baixar o extracto respectivo. Ia fazê-lo quando resolvi reler toda a folha, duas vezes, em busca de algum ponto fraco que pudesse denunciar mal-entendido ou fraude. Nada. O aspecto de respeitabilidade oficial era completo. Mesmo assim, decidi imprimir a folha para poder dedicar-lhe atenção mais minuciosa. Li e reli. Nada de nada em que pudesse apoiar-me para afirmar que aquilo não era meu. Vou, então, abrir a página do extracto, quando todas as campainhas de alarme ressoaram na minha cabeça: no início do e-mail, no campo "Assunto", estava escrito em maiúsculas – "SEU NOME TA NA SERASA". Duas letrinhas no interior da frase e tá-se-mesmo-a-ver-que-é-trafulhice. Duas letrinhas a atraiçoar o trafulha analfabeto.
Se aquilo era um pacote de vírus ou qualquer outra coisa mais pesada, ignoro.
Abri a página da SERASA: sem tirar nem pôr, no e-mail que eu tinha recebido, do logotipo ao corpo da letra, da cor do texto à inclusão final da segurança do antivírus utilizado, tudo era igual. No entanto, olhando melhor, havia uma diferença fundamental: na página autêntica, em caracteres vermelhos e sublinhados, na margem da direita um aviso alertava para o facto de que a "Serasa não envia e-mails para notificação de pendências financeiras. Ao receber, delete imediatamente essas mensagens".
No Brasil defrauda-se bem mas escreve-se mal. Há males que vêm por bem.



1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

BOBAGENS SOBRE O ACORDO ORTOGRÁFICO
"E deixe os Portugais morrerem à míngua..."
- Caetano Veloso

Marcos Bagno
Publicado em Caros Amigos, maio de 2008

Quando o assunto é língua, praticamente tudo o que aparece na mídia é equivocado, distorcido. Pululam atualmente, por exemplo, bobagens a respeito do acordo de unificação ortográfica que entrará em vigor nos países de língua oficial portuguesa. Vamos ver as mais graves.
Bobagem no 1: falar de "unificação da língua". O acordo prevê apenas uniformização da ortografia, isto é, do modo de escrever em português. Quem fala "mêzmu", "mêjmu", "mêijmu", "mêhmu" etc. vai continuar falando como sempre falou, mas só pode escrever mesmo. Nenhuma ortografia de nenhuma língua do mundo dá conta do fenômeno da variação, que é da própria natureza das línguas humanas. Por isso mesmo os Estados sentiram a necessidade política de fixar, por lei, um modo único de escrever. Mas não existe lei que uniformize os modos de falar, porque isso é impossível, tanto quanto é impossível uniformizar a cor da pele, dos cabelos ou dos olhos das pessoas - falar faz parte da nossa configuração biológica. Só nazistas podem pensar em uniformizar as pessoas em suas características físicas. E é também um quase nazismo querer que todas as pessoas falem de um modo uniforme, considerado o único "certo", só porque a classe alta, minoritária e branca fala assim.

Bobagem no 2: falar de "reforma" ortográfica. O acordo prevê apenas a unificação das duas ortografias atualmente em vigor (a brasileira e a portuguesa), eliminando os poucos aspectos que diferenciam as duas normas. São tantas as discrepâncias entre o que se fala e o que se escreve que, para criar uma ortografia minimamente próxima da fala, mesmo incorporando só o que é comum a todos os falantes de português no mundo, a reforma teria que ser tão radical que desfiguraria a tradição escrita da língua e perturbaria a transmissão do patrimônio cultural escrito em português. Por isso o inglês e o francês se escrevem do mesmo jeito há 500 anos. A escrita não é, de jeito nenhum, um retrato fiel da língua falada, nem tem como ser. Ela é uma mera convenção para registrar a língua, convenção baseada em critérios históricos, políticos, culturais, de classe social, muito mais do que em considerações propriamente lingüísticas.

Bobagem no 3, decorrente da no 2: dizer que a reforma é "tímida" ou "meia-sola" (como disse um "professor de português" que brilha na mídia, só para confirmar seu despreparo para tratar do que quer exija uma análise um pouco mais bem fundada). Se não existe "reforma" nenhuma, como é que ela pode ser "tímida"?

Bobagem no 4: achar que o acordo não tem importância. Tem importância, sim, e muita, porque o que interessa no acordo não é a ortografia em si, mas o papel político que o Brasil tem a desempenhar na comunidade lusófona. Portugal, infinitamente menos importante que o Brasil no cenário político e econômico mundial, se recusa a ver que quem lidera a lusofonia, hoje, somos nós. O PIB brasileiro é o 8o maior do mundo; o de Portugal é o 41o... Só na metrópole de São Paulo tem mais falantes de português do que em toda a Europa! Defender o acordo de uniformização ortográfica é defender essa liderança, é exigir que Portugal pare de se arvorar como fonte "original e pura" de irradiação do português e de decisões internacionais acerca da língua. O português que conta hoje, no mundo, é o nosso. E os portugueses que enfiem sua viola no saco e parem de ter saudades de um império que começou a ruir em 1808, senão antes...

quinta-feira, julho 17, 2008 7:06:00 da tarde  

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