Por experiência própria, todos sabemos que o português falado e escrito no Brasil é bem diferente do português ibérico. Mas essa diferença grande, quase da largura do oceano, não se limita à qualidade lexical, rítmica e melódica apresentada à saciedade pelas telenovelas que transbordam dos vários canais de televisão; nem é à eventual diferença na doçura da fala ou no calor da expressão aquilo a que me refiro. Falo da diferença de qualidade na utilização das regras gramaticais da Língua, com repercussão negativa na linguagem e na escrita. Não é apenas um falar diferente e um escrever diferente: é um falar mal e escrever pior que não se confinam a grupos etários, sexos, cores de pele, estatutos sociais, nem localidades; é um falar mal e escrever pior que alastram a uma pesada fatia da população. "Amanhã ela vim trazer os livros pra tu", "nós vai quando ela vim" e "tu foi quando os outros vim" são algumas das mais que frequentes pérolas deste falar/escrever que nada têm a ver com regionalismos nem com a evolução normal e saudável da Língua. São, isso sim, atentados às suas regras por deficiente aprendizagem no meio familiar e na escola onde, entre os professores, muitos há que falam e escrevem incorrectamente. Assim se reproduzem, ampliam e avolumam os erros de geração em geração.
Estas afrontas linguísticas sempre constituíram para mim aguilhoadas ferozes, para mim que tanto orgulho tenho neste instrumento comum de comunicação. Mas, às vezes, há males que confirmam o ditado e vêm por bem, virando o feitiço contra o feiticeiro.
Existe no Brasil um órgão oficial chamado SERASA, que centraliza todas as pendências financeiras, sejam elas motivadas por cheques sem cobertura, incumprimento para com cartões de crédito, ou qualquer outra falta de pagamento ou compromisso pecuniário.
Acontece que, no início de Fevereiro, recebi na minha caixa de correio electrónico um e-mail dessa mesma SERASA, notificando-me de nove incumprimentos que totalizavam avultada quantia – e convidava-me a abrir uma nova página que me esclareceria cabalmente sobre a situação. Desconfiado que aprendi a ser em terras de Vera Cruz, com bastas razões para isso, não abri a página sugerida e analisei pormenorizadamente a mancha da mensagem. Poderia, de facto, ser da SERASA. No final da página, a garantia, por mim reconhecida e relembrada de inúmeros e-mails, de que estava isenta de vírus, nomeando o antivírus respectivo, dava-lhe total segurança. No entanto, a menos que eu tivesse sido vítima de extravio, roubo ou clonagem de cartão, tinha a certeza de que, por dever e honra, auto-respeito e civismo, todos os meus compromissos financeiros estavam a ser cumpridos. Não tinha perdido nenhum cartão de débito ou de crédito, nem nenhum deles tinha ficado em poder dos vendedores, e à minha vista, mais do que o tempo necessário para a transacção comercial. Entendi, pois, ser melhor esperar que a SERASA desfizesse o que eu acreditava ser um equívoco.
Cerca de um mês depois recebi novo e-mail. Desta vez a mancha não deixava dúvidas quanto à sua proveniência, indiscutivelmente SERASA. Não fazia referência a verbas; falava apenas em várias "pendências financeiras" e, polidamente, ameaçava, pedindo "atenção a este comunicado, pois, medidas legais" seriam adoptadas. A seguir à mensagem propriamente dita, uma dúzia de linhas, oferecia-se-me o encaminhamento para eu baixar o extracto respectivo. Ia fazê-lo quando resolvi reler toda a folha, duas vezes, em busca de algum ponto fraco que pudesse denunciar mal-entendido ou fraude. Nada. O aspecto de respeitabilidade oficial era completo. Mesmo assim, decidi imprimir a folha para poder dedicar-lhe atenção mais minuciosa. Li e reli. Nada de nada em que pudesse apoiar-me para afirmar que aquilo não era meu. Vou, então, abrir a página do extracto, quando todas as campainhas de alarme ressoaram na minha cabeça: no início do e-mail, no campo "Assunto", estava escrito em maiúsculas – "SEU NOME TA NA SERASA". Duas letrinhas no interior da frase e tá-se-mesmo-a-ver-que-é-trafulhice. Duas letrinhas a atraiçoar o trafulha analfabeto.
Se aquilo era um pacote de vírus ou qualquer outra coisa mais pesada, ignoro.
Abri a página da SERASA: sem tirar nem pôr, no e-mail que eu tinha recebido, do logotipo ao corpo da letra, da cor do texto à inclusão final da segurança do antivírus utilizado, tudo era igual. No entanto, olhando melhor, havia uma diferença fundamental: na página autêntica, em caracteres vermelhos e sublinhados, na margem da direita um aviso alertava para o facto de que a "Serasa não envia e-mails para notificação de pendências financeiras. Ao receber, delete imediatamente essas mensagens".
No Brasil defrauda-se bem mas escreve-se mal. Há males que vêm por bem.