CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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quarta-feira, março 02, 2005

RECIFE DA VIOLÊNCIA

Recolha aleatória de notícias nos 3 principais jornais de Pernambuco, sediados na capital, Recife.
Terça-feira, 1 de Março.
Folha de Pernambuco: "Um tiroteio ocorrido na madrugada de ontem em frente ao clube (...) deixou o saldo de 1 morto (21 anos) e 3 feridos (17, 19 e 49 anos)". "O delegado (...) já tem a identificação dos autores das mortes de 3 mulheres, ocorridas em menos de 24 horas, na última sexta-feira (...)".
Jornal do Comércio: "A polícia espera para esta terça-feira a apresentação do policial militar (...) namorado da estudante (...) 23 anos, encontrada morta, na madrugada de domingo 27, dentro de casa (...), zona sul do Recife".
Quarta-feira, 2 de Março.
Diário de Pernambuco: "Pernambucanos são presos por assaltos a carro-forte" [após tiroteio com a polícia, foram presos 16 integrantes da quadrilha, 9 pernambucanos; foram encontrados com eles várias armas de diferentes tipos, mais de 1000 munições, coletes à prova de bala, camisas da polícia federal, e rádio-transmissores]. "Polícia militar suspeito de crime é acusado de matar grávida". "Ônibus com turistas portugueses é assaltado em Porto de Galinhas".
Folha de Pernambuco: "Caseiro é morto por colegas – (...) um dos assassinos é conhecido como um dos principais traficantes de droga do município".
Jornal do comércio: "As polícias militar e civil realizam durante esta quarta-feira uma operação pente-fino no presídio (...), zona sudoeste do Recife. Com 5 cães farejadores, os policiais tentam evitar a entrada de drogas no presídio no dia do encontro conjugal. Segundo a polícia, as drogas entram (...) com mais facilidade nos dias de visitas íntimas".
Todos os dias ocorrem homicídios, não poucas vezes por razões menores. Cerca de metade dos homicídios são cometidos por pessoas sem histórico criminal e por motivos fúteis. O Brasil é o país onde mais se mata com arma de fogo. A cada treze minutos um brasileiro é assassinado no Brasil.
Um estudo realizado pela Unesco em 1998, sobre a violência entre jovens de 15 a 24 anos, nas capitais brasileiras, concluía que Recife estava em 2º lugar, logo depois de Vitória, capital do Estado de Espírito Santo. Os jovens recifenses tinham, então, maior probabilidade de serem assassinados que os jovens da Colômbia, onde a taxa de óbito era de 147,7 por 100 mil habitantes, contra 154,5 no Recife.
Em declarações ao "Diário de Pernambuco" de 17/10/2001, Paulo Guimarães, consultor do instituto de pesquisas GPP (Grupo de Planejamento e Pesquisa), de São Paulo, e professor de Estatística da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas, cidade do Estado de São Paulo), classifica Recife como uma das 10 mais violentas cidades do mundo. Em cada 5 famílias recifenses, uma corre o risco de ter um dos seus elementos assassinados por arma de fogo. Os números seriam superiores se fossem contabilizadas as mortes por arma branca e outras formas de morte violenta.
Mais recentemente, a imprensa do Recife, apoiada em estatísticas, considerou a capital de Pernambuco como a cidade mais violenta do Brasil, bem à frente de São Paulo e Rio de Janeiro, os tradicionais focos de violência urbana.
Em Agosto do ano passado, em plena campanha para as autárquicas que se realizaram em Outubro, um candidato à Prefeitura (Câmara Municipal) do Recife avançava que "o Recife hoje é a capital da violência (...). São cerca de 90 homicídios para cada 110 mil habitantes, o dobro do índice nacional, que é de 45,5".
Para além destes dados, já de si eloquentes e, ao mesmo tempo, estarrecedores, há quem defenda, ainda, que os números oficiais estão mascarados e que apenas 1/3 dos crimes cometidos são notificados.Durante muitos meses tive oportunidade de conhecer bem um bairro limítrofe da cidade. Sem ser um bairro pobre, não está, porém, incluído nas chamadas zonas nobres – Boa Viagem e Zona Norte, a primeira onde se instalou o novorriquismo recifense e alguns endinheirados estrangeiros, e a segunda de carácter tradicionalista.
O que mais impressiona nesse bairro é o seu aspecto de presídio, comum, de resto, a todos os bairros deste tipo, aumentando de intensidade para a periferia. Deprimentes, os passeios pela rua lembram marchas através de imensos corredores da morte. Todas as habitações, das mais humildes às de aspecto mais abastado, das mercearias minúsculas aos supermercados avantajados, dos cafés às papelarias, das creches às farmácias, todas são protegidas por gradeamentos intransponíveis, às vezes em sucessivas camadas, para que os seus proprietários ou meros utilizadores aí possam trabalhar, conviver, descansar sem a preocupação do assalto iminente; porque aqui assalta-se de arma em punho e mata-se por uma bicicleta se preciso for, literalmente; nem as patrulhas frequentes da polícia, motorizada, a cavalo ou a pé, dissuadem os bandidos, como aqui se chama a todo o tipo de assaltante, seja ele sequestrador, violador ou simples ladrão.
Nalguns locais mais esconsos, ou a horas mais tardias, onde os odores são mais intensos, a água que escorre pela rua é mais untuosa, negra e putrefata, o tapete de lixo é mais evidente, o esburacado das ruas de terra batida é mais pronunciado, as pessoas fazem o seu comércio através de grades e através de grades conversam com os vizinhos.
Mas isto, esta violência e o medo que ela comporta por antecipação, é esperado, num país onde existe preconceito racial admitido pelas autoridades, onde a maioria da população tem de viver com um salário mínimo, mínimo, também, na verdadeira acepção da palavra, onde, segundo informação de 2002 de um dos principais jornais da região sul, o "Diário Catarinense", de Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, os voluntários, individuais e organizações, que trabalham no combate à fome acorrem a 80 milhões de bocas, onde, conforme notícia de 9 de Dezembro deste ano, do "Globo Online", de São Paulo, 27 milhões de crianças vivem na pobreza (os brasileiros de 0 a 14 anos constituem 35% da população, ou seja, 63 milhões de pessoas), onde a corrupção é descarada, em todos os patamares da escala social, e é descaradamente negada e sempre confirmada mais tarde pelas investigações imparciais (o Brasil vem no lugar 59 da corrupção, em que o lugar 1 da transparência é ocupado pela Finlândia e o 145, o último, pelo Haiti e pelo Bangladesh) e onde a Polícia tem salários miseráveis, está mal apetrechada, e, com frequência, se passa para o outro lado da lei; numa cidade do interior, a menos de 200 km daqui, a esquadra da polícia (chamada Delegacia) para proteger cerca de 72.000 pessoas dispõe de um prédio de dois andares em que: há apenas um telefone; não existe fax e muito menos internet; a única viatura disponível só arranca de empurrão; os polícias pagam do seu bolso à empregada de limpeza que diariamente lhes varre o chão, despeja os cestos de papéis e faz alguma comida para os que não podem almoçar em casa (almoçar no restaurante é impensável); se quiserem ter uma arma que faça frente às sofisticadas armas dos bandidos, têm de se endividar e desdobrar em múltiplas prestações; cada agente ganha um salário mínimo, quase tanto como um médico, é verdade, mas muito menos que um traficante; o agente escrivão desta Delegacia foi assassinado há alguns meses numa povoação próxima e os autores do homicídio continuam por descobrir, ou, pelo menos, andam à solta.
O Governo inventa receitas que não surtem efeito no combate ao crime. A última foi a lei do desarmamento, pela qual proibiu o porte de armas a todo e qualquer cidadão, fosse qual fosse o pretexto, e, em contrapartida, ofereceu um salário mínimo, pelo menos, por cada arma voluntariamente entregue, aumentando o prémio consoante o tipo de arma. Isto teve dois resultados: por um lado, a ala mais criativa do sector mais miserável da população começou a construir, desenfreadamente, armas artesanais para se habilitar ao prémio, o que obrigou o governo a catalogar as armas susceptíveis de contra-reembolso; em segundo lugar, todo o cidadão se viu privado de um mecanismo de dissuasão do assaltante que, por seu turno, passou a actuar mais às claras, mais desinibidamente, mais seguramente, já que, ele próprio, nunca entregou a sua arma. Uma lei, pois, que veio, sem margem para dúvidas, beneficiar o infractor.
É por isso que cada vez mais se lança mão das cercas electrificadas e das milícias particulares, eufemisticamente chamadas "seguranças", para defender pessoas e bens em guetos das elites ricas. Vinicius Caldeira Brandt, sociólogo no Centro de Análise e Planeamento brasileiro, Cebrap, diz: "Trata-se de facto de uma guerra civil das pessoas que têm dinheiro e poder para se protegerem. Na Europa, os criminosos vivem entre muros; no nosso país são os ricos".



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