CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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sexta-feira, março 11, 2005

RECIFE E O (DES) GOSTO PELO TRABALHO

Após o almoço desta sexta-feira, embaciada de nuvens e medonha de calor, tive de me dirigir ao centro da cidade para resolver assuntos de tribunal, relacionados com uma trafulhice de uma transportadora do Recife a quem encomendara a mudança dos meus pertences que se encontravam a 3.600 km, noutro Estado, no sul. A transportadora em questão passou, sem meu consentimento, a missão a uma outra, a quem não pagou o serviço, ficou com o meu dinheiro e os sócios desapareceram. Enfim, coisa banal e corriqueira nos negócios daqui, com a conseqüente denúncia da minha parte na Justiça.
Cheguei à porta do tribunal derretido como manteiga no forno. Portas cerradas. Um mal encarado polícia militar perante a minha pergunta apontou com o nariz um papel impresso por computador, colado na parede, em que se lia que "nesta sexta-feira, devido à procissão do Senhor dos Passos, este fórum [tribunal] encerra às 13 horas". Fiquei perplexo e, ao mesmo tempo, desapontado com a minha magra inteligência que não me permitiu vislumbrar qualquer relação, por ínfima que fosse, entre uma procissão do Senhor dos Passos e o funcionamento de um tribunal. Afinal, quem participou numa procissão fui eu, a dos passos perdidos.
Lembrei-me, então, que há dias o Presidente Lula da Silva referira em discurso a necessidade de fazer no Nordeste o que Roosevelt fizera no Tenessee, ou seja, segundo a minha interpretação, recuperá-lo da pobreza, da miséria, do sub-desenvolvimento endémico. Sem conseguir ler nas linhas nem nas entrelinhas do discurso do Presidente, ele próprio um nordestino, indicações, ou, ao menos, sugestões de como conseguir isso, pus-me a pensar em injecção de capitais, construção de infraestruturas, como estradas, protecção ao preço dos combustíveis para a energia, a indústria e os transportes, obras de irrigação, crédito bonificado à agricultura e à pecuária, incentivos a cursos técnicos e profissionalizantes fundamentais para o desenvolvimento regional e outros instrumentos, provavelmente considerados patetices por um estratega de desenvolvimento económico-social, mas que os meus limitados conhecimentos na área consideraram importantes. Depois, fui eu próprio que rejeitei todos esses instrumentos, pensando seriamente que, antes de mais, há que "recuperar" mentalidades.
O nordestino queixa-se da sua pobreza, da infertilidade da terra, da seca, da rudeza do clima, do excesso de calor que, desabafava uma mulher no autocarro, "dá cá uma moleza, dá cá uma preguiça...". Mas, o que faz contra a pobreza? O quê e como reivindica? Como se organiza? Que estratégias desenha? É certo que o excesso de calor afecta, afecta todos os que têm de trabalhar na rua ou no campo. Mas, e essa multidão que ganha a vida debaixo de telha, nas repartições, nas lojas, nas escolas, nos consultórios, nos escritórios, nos hospitais, nos tribunais (quando não há procissões...), essa multidão que usa do privilégio dos ventiladores e dos aparelhos de ar condicionado? O calor afecta as condições de trabalho, mas o empenhamento no trabalho depende da mentalidade de cada um e do povo no seu conjunto.
O nordestino queixa-se do salário magro, da falta de emprego e das más condições de vida. Mas queixa-se, apenas. Vitima-se. Vitimar-se é mais cómodo do que assumir a responsabilidade pelo seu destino. Por isso pouco ou nada faz para mudar a sua situação e para transformar a sua vida.
É paradigmática a anedota que se conta de um sulista que, em visita ao nordeste, perguntava, ao ver um campo abandonado, se aquela terra não dava batatas; respondia o nordestino que não. E cebolas? Não. E feijão? Não. E mandioca? Não. O sulista parou para pensar e disparou ao nordestino: E se cultivar? Este respondeu-lhe, com um encolher de ombros: Ah!, se cultivar, dá...
Por aqui todos os pretextos são bons para se furtar ao trabalho. É frequente verem-se serviços públicos fechados antes da hora do encerramento. Os feriados, as tolerâncias de ponto e os dias comemorativos constituem um rol avantajado de dias de ausência laboral, o Carnaval dura mais de uma semana, e, como se não bastasse, em Outubro faz-se uma segunda volta do Carnaval, a Recifolia, que dura outra semana, sem falar das ressacas. Curiosamente, nestas épocas ninguém se queixa do calor...
Se não se trabalhar esta mentalidade de modo a substituí-la por uma outra de esforço colectivo para melhorar a qualidade de vida, em todos os patamares, não há infraestrutura que modifique o estado de coisas, nem há Senhor dos Passos, ou qualquer outra entidade da corte celestial que possa desempenhar a função de cada um na transformação do mundo.
Embora limitados pelo contexto, vão progredindo, apesar de tudo, aqueles que constituem as excepções que confirmam as regras, e que são os que conseguem ir à procissão do Senhor dos Passos, sem, no entanto, deixarem de trabalhar.



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