Domingo, 30 de Janeiro, quatro horas e vinte minutos da madrugada, Bairro de Areias, a cerca de 20 km do centro do Recife.
Dormia tranqüilo há muito tempo quando fui brutalmente despertado pela explosão dos alto-falantes de um automóvel particular que estacionara junto do meu prédio, e debitava os ruídos estridentes de uma qualquer banda roufenha. Como nunca se sabe em que estado de corpo e de espírito se encontram os autores de semelhantes actos, resolvi, por precaução, não descer à rua para reclamar o direito ao meu descanso, mas, em vez disso, telefonar para o 12º Batalhão da Polícia Militar, o que zela pelo meu bairro, pedindo a sua intervenção.O soldado de plantão que me atendeu declarou-me de imediato que deveria contactar o 190, número nacional de emergência, solicitando ajuda. Insisti para que me mandassem um carro de patrulha, alegando que há pouco tempo atrás, o que era inteiramente verdade e pode ser testemunhado, um tenente daquele Batalhão me assegurara que se eu tivesse um problema, fosse qual fosse, viriam de imediato. O plantão, pouco interessado nas minhas razões, remeteu-me de novo para o 190, dizendo que todos os carros estavam na rua. Na minha inocência e confiança, tornei a insistir, pedindo para que ele próprio contactasse a viatura que mais próximo se encontrasse do local. Respondeu-me que não poderia fazer isso, sem explicar porquê, rematando, impaciente, que uma vez que era eu o queixoso, eu que resolvesse o problema. Assim mesmo... Falei, então, para o 190 onde fui atendido com prontidão e gentileza. Porém, para espanto meu, informaram-me de que a partir do meio de Janeiro as infracções por ruídos nocturnos tinham deixado de ser da alçada da PM e pertenciam agora ao âmbito de um departamento da Prefeitura. Liguei, pois, para o telefone que me forneceram, e aí um funcionário, pouco simpático e pouco prestável, me retorquiu com voz de sono que nada tinha a ver com o assunto, pois da sua competência eram apenas os barulhos provenientes de bares. Em tom de despedida, forneceu-me outro telefone donde nunca ninguém me respondeu ao longo de meia hora de tentativas... Fiz o mesmo circuito de telefonemas três vezes, na esperança de ser bem sucedido numa ajuda de que estava necessitado, mas em vão, conseguindo apenas irritar cada vez mais os meus interlocutores. Acabei por ter de me deitar a ranger os dentes ao compasso do som horripilante de um qualquer notívago desrespeitador impune e, mais e pior do que isso, certo da sua impunidade.
Segunda-feira de manhã dirigi-me a um posto de atendimento da Prefeitura, numa Loja do Cidadão, onde expus a minha queixa. A funcionária olhou-me com complacência e, porque, asseverou, não era caso de Prefeitura, encaminhou-me para a DIRCOM do meu bairro, Directoria de Controle Urbano e Ambiental. Lá fui, debaixo de um sol de picareta e um calor de assar os ossos, falei com a responsável pela fiscalização e fiquei a saber que o assunto não era com eles e que, para além disso, não sabiam com quem era. Em desespero de causa, e para salvar a honra do convento, a chefe dos fiscais recomendou-me o Ministério Público. Achei exagerado, mas, em boa verdade, muito intimamente eu decidira já que alguém teria de dar destino à minha queixa, fosse o Presidente da nação, fosse o mais modesto escriturário da mais obscura repartição pública. E com esta intenção galguei a franca entrada daquele Órgão, onde fui recebido de imediato, de modo afável e prestativo, por dois Promotores que tomaram conta da ocorrência por mim declarada e assinada.
Esclareceram-me que este tipo de ocorrência é da jurisdição da CTTU, Companhia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife, cujos elementos têm medo de actuar à noite, uma vez que não possuem armas. No entanto, poderão pedir a colaboração da Polícia Militar que para isso está instruída através de um protocolo assinado por várias entidades, entre elas essa polícia, cujo nome do coronel responsável me foi fornecido. Aliás, a própria DIRCOM está envolvida, e o seu desconhecimento quanto à obrigatoriedade da participação advém do facto de ter faltado à reunião em que o referido protocolo foi assinado. Dias depois, ocasionalmente, numa consulta à Internet, fiquei a saber de uma operação em curso, a operação “sossego e paz”, da Secretaria da Defesa Social, precisamente contra os ruídos nocturnos na cidade, que envolve, entre outras forças, Polícia Militar, Polícia Civil, Dircom e CTTU. Mas como os intervenientes ignoram o meu direito ao sossego e descanso de noite, da próxima vez que for afligido por um cidadão a debitar decibéis excessivos, só me resta aproveitar a insónia e escrever mais umas crónicas sobre a impunidade, o desconhecimento e o descontrolo que reina na cidade.