CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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quarta-feira, maio 25, 2005

A BURLA DO CENTAVO NO BRASIL

Aceita que o comerciante o engane no troco quando faz uma compra, dando-lhe menos dinheiro do que lhe é devido? Com certeza que não. Admite pagar na caixa um produto por um preço superior ao que está marcado no expositor? Não, com certeza. Pois, ao visitar o Brasil, prepare-se para fazer valer os seus direitos.
Suponha que desembarca no Recife, ponto da América do Sul mais próximo da Europa e, por isso mesmo, cidade privilegiada para a recepção do turismo do velho continente.
Aqui, como para todo o Brasil, a divisa é o Real, apresentado em notas de 1, 2, 3, 5, 10, 20 e 50 reais (também há de 100, mas ninguém sabe onde estão, parece que nem os bancos), e moedas de 50, 25, 10, 5 e 1 centavos.
Aqui, como no resto do país, será confrontado com preços acabados em 9, seja qual for o produto: o medicamento que custa 99 centavos, o chocolate em pó que custa 3,29 reais, o almoço económico que custa 4,49 reais, o fato pronto-a-vestir que custa 99,99 reais.
Se esta prática nacional incide no comércio em geral, e já a vi, também, em prestação de serviços, onde ela se torna mais flagrante é nos mercados, sejam eles hiper, super ou mini. Quase não há preço na prateleira que não seja da mesma família, a família do 9.
Esta predilecção, quase obsessão, comercial pelo 9 não me mereceria tempo de escrita se não fosse o pesar-me no bolso, pesar no bolso dos meus concidadãos, pesar no bolso do país em que vivo, e ser, em última análise, um problema de moral comercial pública.
A questão é esta: compro um dentífrico que está marcado por 2,89 reais, mas pago 2,90 porque o caixa não tem troco. Multiplico isto por todas as compras que faço diariamente e verifico, consternado, que muito passa, gratuitamente, do meu bolso para o do comerciante – passaria se eu deixasse que isso me acontecesse.
Mas se isso não me acontece porque me oponho frontal e ferozmente a essa prática, o mesmo não se passa com a generalidade do brasileiro, acomodado por preguiça, ignorante dos seus direitos por cultura, avesso a questionar por deformação.
Centavo aqui, centavo ali, os comerciantes vão aumentando o seu património sem disso terem de prestar contas à República sob a forma de impostos.
Façamos uma pequena simulação completamente empírica. Imaginemos um supermercado com 12 caixas por onde passam por dia 500 clientes em cada uma delas, ou seja, 6000 clientes no total. Se a cada cliente forem sonegados, em média, 1,5 centavos por dia, o supermercado recolheu 90 reais no fim do dia e 32.400 reais no ano de 360 dias, admitindo que estas superfícies fecham 5 dias por ano (algumas nem isso). São 32.400 reais (10.125 Euros, à cotação de hoje) de lucro livre de impostos, repito, com base numa burla feita ao cliente.
Não sei quanto valerá esta importância na fuga ao fisco, mas posso atrever-me a pensar num número significativamente grande de zeros quando extrapolo esta situação verificada num supermercado de médio/grande porte para o conjunto da economia do país – comercial e não só, já que os serviços públicos usam o mesmo tipo de lógica aritmética.
Ao governo não escapa o truque. A prová-lo está uma campanha efectuada há poucos anos, que incentivava o brasileiro a não deixar o seu centavo na loja. Mas, como muito do que se faz por cá ao nível da moralização dos costumes, foi inoperante, inconsequente, ineficaz.
Usufruem deste esquema de extorsão 99% dos comerciantes do Brasil. Este número que adianto não é o resultado de algum estudo com resultados estatísticos que alguém, incluindo eu, tenha levado a cabo. Significa, sim, que cada um de nós tem qualquer coisa como uma quase impossibilidade de encontrar neste lindo país um comerciante honesto no troco (e só estou a falar de trocos).
A campanha feita pelo governo não surtiu efeito, principalmente porque esta questão tem de ser tomada a peito por cada um dos consumidores. Com origem nas razões atrás apontadas – e outras que não vêm agora ao caso – este povo não tem sentido cívico. É a fortuna, em todas as acepções, dos comerciantes.
Se cada um deve – tem de – zelar pelos seus direitos, eu neste aspecto também zelo, cuidadosa e insistentemente, pelos meus, exigindo sempre o meu centavo de volta.
Por esta prática apurei que o comerciante utiliza uma de duas técnicas (ou as duas combinadas) quando confrontado com o cliente que exige 1, 2 ou os 3 centavos de troco que, com a maior naturalidade contabilística, ficaram na gaveta. Uma é dizer que não tem trocado para poder restituir, e tentar, assim, dar o assunto por encerrado. A outra é fazer esperar o cliente para ver se este desiste. Contra isto, neste caso, eu, cliente, faço o seguinte: insisto em que pretendo o meu troco certo, sem falhas; posso argumentar que, do mesmo modo que ele, fornecedor, não me dará a mercadoria se eu não tiver o seu dinheiro correspondente, também eu, consumidor, não sairei da loja sem o meu troco correspondente; falo alto e desinibidamente para toda a gente perceber o que se passa e poder, de certa forma, ficar contaminada pela minha legítima exigência; nunca saio da fila do caixa até a questão estar resolvida (assim apresso-os para conseguirem os centavos que faltam); se necessário, ameaço-os com a administração da empresa e/ou com a inspecção das actividades económicas; além disso, ando sempre com uma boa provisão de centavos no porta-moedas para, em desespero de causa, esgotadas as demais possibilidades, facilitar o meu troco.
Nunca tive necessidade de utilizar mais do que um dos argumentos acima enumerados. Basta perceberem a minha determinação, para que a loja se mobilize na busca – com sucesso – do centavo, ou, mais raramente mas com alguma frequência, a importância seja arredondada para os dez centavos abaixo.
Poderá, à primeira vista, parecer ridículo fazer tamanho escândalo por 1 centavo. Não entendo assim, por diversas razões.
Admito a falta de 1, 2 ou mesmo 3 centavos num troco, esporadicamente. Mas não posso nem devo aceitar o sistema, o esquema, a instituição do furto encapotado. Em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina, no sul, no balcão de uma grande companhia rodoviária tiveram a ousadia de tentar subtrair-me, na passagem de uma viagem de 45 minutos, 43 centavos. É preciso combater a fraude dos preços enganadores. É preciso moralizar o comércio. É preciso combater a má gestão de tesouraria que me é prejudicial: as caixas têm de ser providas do número suficiente de trocos em centavos. É preciso combater a preguiça – a minha, como comprador, de pedir o troco que me é devido, e a deles, como comerciantes, de encontrar soluções, de que a mais óbvia seria a apresentação de um preçário honesto. É preciso combater a retenção ilegal do centavo, porque 36 centavos não é o mesmo que 35 centavos. E, finalmente e acima de tudo, é preciso denunciar e combater a burla do centavo porque o dinheiro é de cada um de nós, e com o dinheiro alheio não se pode brincar – eu, nem com o meu brinco.



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