Depois de oito horas de viagem, o roncar dos motores do airbus tinha-se tornado numa zoada distante, perdida algures dentro da cabeça.
O meu vizinho do lado, um brasileiro de regresso à terra, tocou-me no braço: "Olhe lá para baixo".
Olhei. Uma vasta massa de monótona cor cinzenta, eriçada de torres de escritórios e apartamentos era a paisagem.
- "Concreto e mais concreto sem espaços verdes, a não ser os do aeroporto" – comentou o meu vizinho.
São Paulo. Uma metrópole de 1509 km2 no sudeste do Brasil, onde se acotovelam para cima de 10 milhões de residentes.
A mais povoada e desenvolvida (segundo parâmetros macroeconómicos) cidade brasileira é, também, um dos mais violentos territórios de crime, organizado ou de circunstância, devido ao afastamento cada vez maior entre o pico e a base da distribuição de rendimentos.
Concentram-se aqui as sedes das mais fortes multinacionais a operar no país e das empresas domésticas de reconhecida dimensão em todos os sectores económicos, da indústria às comunicações, das finanças ao entretenimento.
O seu aeroporto é, em todo o território, o que factura mais elevado movimento de pessoas e cargas, de e para o exterior. No terminal rodoviário interestadual, placa giratória de um dos principais eixos do Brasil, concentram-se, por algumas horas, os nordestinos que chegaram em busca de melhores condições de vida e os que voltam às origens, desiludidos, falhados, frustrados.
O custo de vida é castigador. Quem tem emprego certo, principalmente se remunerado em condições de algum desafogo nesta selva de cimento, dá graças ao seu Deus, todas as noites e todas as manhãs, pela generosidade.
Era isto que fazia Aílson, um pai de família casado com uma advogada bem sucedida. O que ganhava como bancário de mais de 15 anos de casa em lugar de destaque, acrescido das regalias que o sector concede aos seus empregados, permitia, com o ordenado da mulher, que a família tivesse os quatro filhos a estudar em bons colégios, dois automóveis na garagem do apartamento adquirido num bairro confortável da cidade, planos de saúde tranquilizadores para todos e férias numa bem conhecida estância do litoral.
A estabilidade da vida serena e os bons momentos de lazer gozados nas férias, decidiram o casal a comprar uma casa fora do alvoroço da cidade, onde pudessem passar os fins-de-semana e algumas mini férias por ocasião de feriados distendidos. Puseram-se à procura e encontraram o lugar apropriado. Aílson pediu um empréstimo bonificado ao seu banco para a compra do imóvel.Entretanto, chegaram as férias escolares de Janeiro, e a família partiu para a costumada estância à beira-mar.Um mês depois, no regresso a casa, havia uma carta do Banco à espera deles.
Ainda de bagagens esparramadas pelo chão, precipitaram-se para a carta. De quanto seria o empréstimo? Quando estaria disponível?
Num estilo directo e formal, claro e conciso, a carta informava Aílson de que dentro de 30 dias já não faria parte dos quadros do Banco, mercê de um processo de reestruturação que tinha como um dos principais objectivos a contensão de custos. Nessa linha, o Banco via-se “obrigado a dispensar algumas centenas de colaboradores, cujos prestimosos serviços, lealdade e abnegação jamais seriam esquecidos” etc., etc., etc.
Dispensar era o eufemismo de despedir. Daí a menos de um mês, Aílson estaria sem emprego, com uma indemnização magra, acordada numa negociata entre o Banco e o Sindicato.
Três meses depois, Aílson continuava procurando trabalho. Com 44 anos era difícil arranjar colocação.
"Há uma crise muito grande, meu amigo". "Estão muitos jovens para entrar no mercado de trabalho". "Se souber de alguma coisa, digo-lhe". "Não perca a esperança".
Tiveram de reduzir despesas. Venderam um dos carros. Dos seguros de saúde, conservaram apenas os das crianças.
Foi por essa altura que a mulher começou a sofrer de dores abdominais. A princípio, incomodativas; pouco depois, lancinantes.
Fila nos hospitais desde as cinco da manhã para marcar consulta. As dores aumentando. Análises. Mais exames. Contraprovas. Necessidade de cirurgia. Como era urgente, o hospital agendou para daí a três semanas.
Tinham decorrido dois meses desde os primeiros sintomas, e as despesas aumentavam, em grande parte pelos medicamentos, caríssimos. As economias esvaíam-se. Os rendimentos da mulher diminuíam por constantes faltas ao escritório. Os clientes procuravam outros advogados.
Os filhos passaram para escolas públicas. Sem dramas. O que era preciso era a mãe curar-se e o pai conseguir um emprego.
Oitenta e cinco dias depois a mãe morreu, entre doses generosas de morfina para atenuar as dores do cancro disseminado pelo abdómen.
Aílson vendeu o apartamento e mudou-se com os filhos para um lugar modesto, nos subúrbios, onde às vezes a polícia faz incursões à procura de traficantes. O automóvel da família também foi vendido, logo após o funeral da mulher.
Hoje, os filhos continuam na escola; são bons alunos. Aílson trabalha. Puxa pelos varais duma carroça em que vai recolhendo latas, garrafas vazias, papel e papelão que cata nas lixeiras ao longo de ruas e avenidas.
Foi assim que o encontrou a reportagem de uma grande cadeia de televisão em entrevistas de rua. Contada a história, com mágoa mas sem vergonha, Aílson, puxando com esforço o pesado carro de entulho, terminou a conversa com o repórter: "Perdi quase tudo na vida. Restaram-me a dignidade e quatro filhos para criar. Tenho de salvar a honra dos meus filhos".
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