"Ricos e pobres brasileiros são igualmente desonestos. (...) Somos um país corrupto".
Quem o afirma é um brasileiro da Bahia. Chama-se João Ubaldo Ribeiro, 64 anos, jornalista e escritor com 3 milhões de volumes vendidos.
Na mesma desenvoltura e frontalidade que assume para falar de si, em entrevista recente à revista "Veja" desanca sem dó nem piedade o governo, de quem é um dos mais ácidos críticos, em particular na pessoa do presidente Luís Inácio Lula da Silva. As suas declarações fazem todo o sentido quando passamos a pente fino os actos da governação de que conseguimos ter conhecimento.
O último escândalo, em Brasília, tornado público pela mesma revista "Veja", e quase em simultâneo com as afirmações do escritor, envolve personalidades da cena política e altos funcionários da estatal ECT, Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Os factos são, já de si, escandalosos, mas a forma como o governo reagiu, e está a reagir, torna a situação ainda mais embaraçosa. Tão embaraçosa que se fala à boca cheia em crise política.
Tudo começa com uma reportagem da revista, na semana passada, em que o ex-chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material dos Correios é confrontado com uma gravação, na posse da "Veja", em que ele próprio, na sede da empresa estatal, negociava com três empresários o estabelecimento de comissões (aqui chamadas "propinas") como contrapartida de futuros favores a conceder pelos Correios. A gravação mostra a entrega, por parte dos empresários, de 3 mil reais que seriam uma primeira parcela das comissões exigidas por aquele chefe de departamento. Perante a evidência, afirmou, então, haver um esquema de corrupção na empresa, esquema esse que teria o comando do presidente do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), um deputado pelo Rio de Janeiro.
A bomba rebenta. Estamos em vésperas da partida do presidente Lula para a sua viagem à Coreia do Sul e ao Japão.
Afastado do lugar de chefia que ocupava, o funcionário é ouvido pela Polícia Federal (PF) e cai em sucessivas contradições. Começa por isentar o presidente do PTB, dizendo que só o vira duas ou três vezes, ocasionalmente, e apresenta-se como único e total responsável pela negociação das propinas. Depois diz que o dinheiro provém de um seu trabalho de consultoria. Mais adiante, afinal o dinheiro destinava-se à formação de uma sociedade a que ele se dedicaria quando se aposentasse; já teria pedido, até, o afastamento do cargo, por doença. Declara a seguir que nunca teve nenhum envolvimento com qualquer empresário, o que contraria as imagens da gravação. Finalmente, afirma que não há nenhum esquema de corrupção e que o episódio constituiu uma "armação" contra ele, engendrada por uma multinacional (não diz qual, nem para quê). Por seu lado, o advogado de defesa avança com "uma armação com motivações políticas" e com "uma armação da direita militar" (melhor seria deixar a direita militar dormir o seu sono descansado, antes que a fera acorde).
O delegado que conduz o inquérito não acredita em nada do que lhe pretendem vender e indicia o ex-funcionário de coisas bem mais realistas do que possíveis intentonas: fraude em licitação e corrupção passiva.
Entretanto a PF faz buscas e apreende documentos e memórias de computador em oito endereços de dirigentes afastados dos Correios, todos eles denunciados por envolvimento no esquema de cobrança de comissões. Políticos do PTB e funcionários dos Correios indicados pelo partido parecem ser também coniventes. Um ex-director desaparece. No meio da confusão, o ex-funcionário declara que vai doar o dinheiro recebido a uma instituição de caridade para o combate ao cancro (câncer, no Brasil).
Das figuras mais sonantes que aparecem na imprensa como arrastadas no caso destacam-se: um ex-candidato à presidência em 89, muito amigo de entidades de proa do presente governo; o ministro das comunicações; o presidente do Senado; o secretário executivo do Ministério das Comunicações, que já foi ministro noutra presidência; o presidente dos Correios; um administrador dos Correios; o presidente de uma empresa de informática, que fazia acertos para reajustar contratos com os Correios e que ganhou em 2004 a licitação para venda de computadores ao governo federal. Ligado a estes, ainda aparece na história um chantagista que quis negociar a gravação comprometedora, em troca de favores em contratos com os Correios.
A administração dos Correios é composta por 1 elemento do PTB, 2 do PT (Partido do Trabalho, sustentáculo do presidente Lula da Silva) e 3 do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), partido da oposição, mas que entra actualmente na base social de apoio do governo. O presidente da administração é, também, do PMDB, o que cria um incómodo acrescido na situação. Quando tocar a lavar a roupa suja, poder-se-á sempre argumentar que a maioria da responsabilidade é da oposição. Isto preocupa o PMDB, a ponto de virem já, embora veladamente, ameaçando desenterrar um processo aparentemente arquivado, em que um ex-acessor do actual ministro da Casa Civil, o mesmo que diz "este governo não rouba nem deixa roubar", foi flagrado a pedir comissões a um empresário de jogo.
Quando o caso "Correios" escapou para a opinião pública, o presidente Luís Inácio Lula da Silva prometeu rigor e isenção nas investigações. Mas tão logo o Senado e a Câmara dos deputados assinaram um pedido de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) às actividades dos Correios, foi montada uma operação para barrar a constituição ou, pelo menos, o funcionamento de uma possível CPI, e Lula da Silva recusou-se a emitir mais declarações.
Senadores e deputados sofreram pressões para retirarem as respectivas assinaturas do requerimento de criação da CPI. Muitos o fizeram, outros o fizeram e voltaram a assinar, e alguns que nunca tinham assinado subscreveram o documento.
Na noite de quarta-feira, 25, no Japão, Lula da Silva tomou conhecimento da derrota do seu governo.
A operação de boicote ostensivisou-se e hostilizou-se. O presidente nacional do PT, partido no poder, deu a entender claramente que o senador e os 11 deputados que assinaram o pedido de CPI serão isolados pelo partido (fim da carreira política naquela filiação). O governo diz que a CPI é uma tentativa de desestabilização. O líder do governo no parlamento afirma que vai lutar para que a base aliada obtenha a presidência e a relatoria da CPI (para melhor e mais tranquila manipulação, claro) – e acrescenta que pretende que as investigações se limitem aos Correios (parece haver, portanto, outras histórias ainda não contadas...).
Em 2006 teremos eleições para a presidência da República, para senadores e para deputados.
É sabido que no Brasil as razões de Estado são subvertidas por razões pessoais. A CPI, se funcionar e se conseguir entender-se, disporá de 6 meses para se pronunciar. O povo tem a memória curta, e outros interesses de circunstância, talvez uma nova telenovela, ofuscarão o "caso dos Correios".
"Este governo não rouba nem deixa roubar", diz o estadista.
"Somos um país corrupto. (...) Ricos e pobres brasileiros são igualmente desonestos", diz o jornalista escritor.
Não parece difícil concluir quem tem razão.