CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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domingo, maio 08, 2005

PROMOÇÕES - PERMANENTES E INSÓLITAS

Se no Recife, ponto mais oriental do nordeste brasileiro, você acordar aos primeiros alvores do dia, o que significa pouco depois das 5 da manhã, pode crer que até à hora de se deitar, cerca das 10 da noite, é um potencial beneficiado por uma qualquer promoção.
Eu lhe digo: a vida comercial nesta cidade, capital do Estado de Pernambuco, é uma permanente promoção.
Embora não haja estações do ano, tal como podem sentir-se no sul do Brasil, ou na Europa, a gente do Recife, mesmo sabendo que a temperatura muito dificilmente desgrudará dos 30° C à sombra, divide os 365 dias climáticos em Calor e Fresco. A primeira grande classificação das promoções é, pois, por época de roupas.
Vêm a seguir épocas mais curtas, mas nem por isso menos promocionais: natal, entrudo e páscoa. Aqui poderá dizer-se que cada artigo é uma promoção.
Nas grandes lojas há o artigo do mês: uma televisão do tamanho dum cinema, um automóvel ou, mesmo, um apartamento. Muitas das empresas de serviços também fazem promoções mensais; por exemplo, um servidor de Internet pode conceder 30 ou 45 dias de acesso gratuito, a título de experiência para o cliente. Chamam a isto cortesia ou gentileza.
As promoções da semana já englobam artigos mais baratos, uns de primeira necessidade, grande consumo, outros não: leite, açúcar, arroz ou feijão de determinados fornecedores, detergente ou sabonete que dão prémios, livros, ou um livro em particular com sessão de autógrafos.
No fim-de-semana, muitos postos de gasolina baixam vertiginosamente o preço dos combustíveis; a gasolina normal pode passar de 2,38 para 2,05 Reais por litro. Os restaurantes aproveitam, por seu lado, para promover alguns pratos ou refeições completas.
Também se encontram promoções por dias. É frequente os supermercados terem o dia dos legumes, o dia da carne, o dia das bebidas. No que toca ao comércio de roupas e calçado, de vez em quando ostenta nas vitrines grandes cartazes, anunciando atraentes descontos com a indicação só hoje. É claro que, nestes casos, o "só hoje" se prolonga por vários dias, permanecendo actualizado, às vezes, por semanas.
E até por horas há promoções. Durante uma, duas, quatro ou sete horas um artigo pode oferecer-se ao público em condições de aquisição consideradas excepcionalmente vantajosas (pelos promotores). Geralmente são as rádios locais que veiculam este tipo de publicidade.
Promove-se tudo, produto de farmácia (sem qualquer receita médica), supermercado, cosmética, pronto-a-vestir, sapatos, oculista (médico incluído), por todo o período imaginável, e todos os meios de promoção são válidos.
É possível e usual acordar sobressaltado pela passagem de uma carrinha tipo furgão, em que o tejadilho desaparece, imerso por todos os lados em alto-falantes de grandes dimensões. Apesar do mau humor, bem cedo se fica a saber da primeira promoção do dia, talvez uma festa na sexta, no sábado e no domingo, no clube do bairro. A altura do som é de tal ordem que, em muitas cidades do sul, não tão dadas a estas manifestações extremadas, esses veículos foram proibidos, ou obrigados a reduzir o número de alto-falantes e o volume da gritaria. Durante uma campanha anti-ruído que envolveu várias autoridades da cidade, foram confiscadas aparelhagens que produziam volumes próximos dos de um avião a jacto de longo curso.
Ao sair de casa tem de tomar a máxima cautela para não ser atropelado por uma bicicleta em sentido contrário, armada de uma caixa de som sobre a roda da frente e outra sobre a roda de trás, avisando que D. Xangá faz nessa tarde um desconto especial no tarô ou nos búzios.
No centro da cidade, a zona comercial mais antiga exibe clima de Babilónia. Todas as portas, da farmácia à joalharia, da livraria evangélica à oficina do afiador de alicates de unhas, apregoam, pelo seu próprio equipamento sonoro, os artigos promovidos nesse dia. É um verdadeiro "entrar senhorias, a ver o que cá se passa". Ninguém entende nada, a não ser no exíguo tempo de passagem pela porta da loja, e o que está sendo anunciado leva, muitas vezes, a mordaça dos ecos das portas vizinhas.
Os vendedores ambulantes garantem que as capas de telemóveis (aqui chamados celulares) que estão a vender por dois Reais – só hoje! – custam cinco na loja.
A rua está juncada de papelotes que lá para trás uma dúzia de distribuidores ofereceu à multidão que passava, aliciando para empréstimos na hora, ao "módico" juro de 1,75 ao mês.
Promoções, promoções, promoções...
Um destes dias dei por que se tinha acabado a margarina que habitualmente uso no pão, e fui até ao supermercado do bairro para comprar uma embalagem. Nas prateleiras estava ostensivamente anunciada uma grande promoção, precisamente da minha margarina. Comparei a caixa habitual com a da promoção e nada vi de diferente. Virei e revirei as duas caixas: nada, tudo igual, a forma das embalagens, o produto, a composição, a quantidade. Chamei um empregado e expliquei-lhe a minha dúvida: se tudo era igual, porquê a promoção?
Virou e revirou também as duas caixas, com ar atento e profissional. Leu as respectivas composições. Conferiu as datas de fabrico e validade. Pediu um momento e desapareceu num cubículo envidraçado onde o gerente conferia listas. Demorou algum tempo. Voltou, finalmente, com um sorriso triunfante.
- A promoção é da caixa.
- Como? – perguntei, atordoado.
- Da caixa. Repare: a da promoção tem uma lista amarela.
Emudeci, agradeci com um gesto, paguei e voltei para casa com a caixa promocional, mais barata e com uma lista amarela...
Pelo caminho recordei aquelas simpáticas figurinhas gaulesas da banda desenhada que exclamam, no auge da distribuição de tabefe, "estes romanos são loucos"... Por que me terei lembrado disto?... Vá lá a gente saber porque se lembra do que se lembra...
Bom, talvez o fabricante quisesse despachar um lote anterior, escondido nos confins do armazém, ou, simplesmente, aumentar as vendas, forçando-as com uma publicidade que, não sendo propriamente enganosa, poderia chamar-se, no mínimo, de bizarra.
Após a primeira dentada no pão barrado, não pensei mais no assunto: o gosto era igual.
Até que...
Meses depois, fazia compras num supermercado de grande porte dum centro comercial e comecei a conferir preços de papel higiénico, artigo de que estava desfalcado em casa. Artigo urgente, portanto. A tarefa não era fácil, dada a quantidade de marcas e preços em presença. Escolhi um pacote grandão, geralmente os mais económicos, com papel de textura aparentemente adequada à função principal.
Soou uma campainha na minha memória. Eu já vira aquele mesmo papel em promoção num expositor à parte, na área das bebidas. Para lá me dirigi com o pacote debaixo do braço.
Virei e revirei as duas embalagens em confronto: a mesma marca, o mesmo fabricante, o mesmo distribuidor, o mesmo tipo de papel, a mesma quantidade de rolos, o mesmo número de folhas por rolo, a mesma embalagem, sem qualquer lista amarela, ou verde, ou sinal que pudesse estabelecer uma distinção.
À cautela, não chamei nenhum empregado, não fosse ele dizer-me que a promoção consistia em poder utilizar também o papel lustroso e escorregadio do invólucro na mesma função do miolo.
Lembrei-me de novo dos meus amigos gauleses... Realmente, estes recifenses são loucos...
Caro leitor: se vier ao Recife, tenha em conta que todos os dias, a toda a hora, há promoções. E o que poderá contribuir para uma passagem por cá ainda mais divertida é que muitas dessas promoções são promoções-mistério.
Confira.



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