Há um jardim em Lisboa, plantado numa das suas sete colinas, que foi motivo e palco de encantos da minha juventude, e que continua hoje a ser fonte de deleite pelas recordações que me propicia.
Junto de um dos bairros ainda aristocráticos da cidade, o Jardim da Estrela abre numa das extremidades para o largo da sumptuosa Basílica construída por promessa de D. Maria I de Portugal nos finais do século XVIII.
Inaugurado em 3 de Abril de 1852, amplo, desafogado, pretendia substituir o antigo Passeio Público, uma alameda onde hoje fica a Praça dos Restauradores, e que na época concentrava os encontros e os namoricos, os penteados exagerados e os vestidos de cauda, as bengalas e os chapéus altos, os charutos e a maledicência da gente grã-fina daquela Lisboa ensonada e poeirenta.
Toda a minha adolescência foi vivida nas suas imediações, e muitos dos episódios marcantes na minha vida desse tempo desenrolaram-se tendo por testemunhas as soberbas árvores que o embelezavam.
Estava eu com 18 anos e tinha acabado de entrar para a Faculdade de Ciências, na rua da Escola Politécnica, a dois passos dali. Se isso era, decerto, motivo de orgulho para a maioria dos estudantes meus colegas, para mim não passava de um fardo, um castigo, uma imposição familiar arbitrária e vaidosa.
Os meus desejos de estudo namoravam as letras, por um lado, e a psicologia, por outro. Contrariaram-me numa e noutra paixão e obrigaram-me a enveredar pelas ciências matemáticas sob pretextos fúteis, materialistas, sem qualquer sentido que conseguisse descortinar. Tratava-se, afinal e tão-só, de dar continuidade a uma actividade surgida recentemente na família, como se de cuidar de uma herança se tratasse.
Ser o filho mais velho sempre trouxe múltiplos inconvenientes onde os mais novos, na sua ingenuidade, só enxergam privilégios.
Claro que à força de tão forçado e tão pouco esforçado, o curso teve um desfecho rápido, terminando a poucos meses do início, bem antes da conclusão do primeiro ano lectivo.
A tempestade doméstica foi inevitável e tremenda. Ainda tenho alguns pedaços de alma chamuscados pelo incêndio que então se ateou.
Mas, nesse martírio diário que era a frequência das aulas de álgebra linear, geometria analítica, geometria descritiva, matemáticas gerais e outras matérias, no meu sentir tão despidas de atractivo, havia um prazer nunca confessado que dava algum alívio, por momentos, àquela via dolorosa que era o percurso de casa para a faculdade.
Prazer matinal, muito matinal, descobri-o ao lusco-fusco das seis e meia das manhãs do Outono de Lisboa dentro do Jardim da Estrela.
Nesse pouco depois da alvorada o jardim estava deserto. Quando me aproximava do local onde o prazer à distância parecia vir ao meu encontro enquanto eu caminhava, invadia-me uma estranha sensação inefável, inexplicável, perante um espectáculo de sublime beleza.
Era um lago elíptico rodeado de árvores que se reviam nas suas águas planas como um espelho. Ao meio, uma estátua que, mais tarde, me disseram representar a filha do rei guardando patos. Não importa que rei, pois nessa altura nem sequer sabia quem ela era. Uma figura, apenas.
A luz madrugadora, coada pela neblina e pelo entrelaçado das folhas nas copas das árvores, incidia de vários ângulos como projectores de teatro sobre nuvens de vapor que cobriam o lago a meio metro acima da água.
O pedestal da estátua ficava, assim, escondido por essas etéreas manchas de algodão aquoso, dando a impressão de que a imagem planava no meio de sombras claras sobre o líquido apenas vislumbrado de quando em onde.
Era uma figura de formas clássicas, em mármore branco, de uma graça delicada e elegante composta de gestos simples. A imobilidade que a vestia era leve, e levava a crer que bastaria um toque de sortilégio para quebrar o encantamento que a devolveria à vida.
A cabeça, ligeiramente inclinada para baixo, deixava dúvidas quanto ao alcance do seu olhar. Seria o lago, ou a própria imagem o motivo da contemplação? Cuidaria dos pequenos palmípedes, ou pretenderia escusar a vista a quem passava?
Aquela estátua, de finos traços viventes e seráficos, representava a soberba trindade de uma deusa humana de pedra.
O frio da manhã parecia transportar o local para outros mundos. A humidade do ar que se esvaía da erva curta e das ramagens criava uma ambiente de sedução liquefeita.
Todos os dias, eu e a estátua, a sós, tínhamos encontro marcado, à mesma hora. Ela não se mexia, em recatado pudor. Eu não parava, para na manhã seguinte poder repetir o encontro com aquela magia instalada que, a pouco e pouco, se transferia para mim.
Durante os meses de Outono e Inverno em que por ali passei, aquela festa de madrugada alimentou o imaginário da minha adolescência terminal. Depois, como tudo, diluiu-se devagar no turbilhão das recordações.
Passados 40 anos, a dama do lago das brumas vem à minha memória evocar aquele caminho de estrelas num jardim de Lisboa. Mal eu imaginava, então, como seria refrescante a lembrança dessa magia no caminho real da minha vida.