Por diversas vezes, falando com brasileiros sobre o Brasil e a sua gente, me foi dito por eles que, ao levantar-se, a primeira questão que o brasileiro coloca a si próprio é: "Quem vou enganar hoje?". E a seguir, "Como?".
No que me diz respeito, da experiência que colho de 4 anos a viver no Brasil, isto parece-me verdade, em particular no Nordeste, em Pernambuco, na sua capital Recife.
É claro que há maus profissionais em toda a parte. Mas quando a incompetência caminha de mãos dadas com a desonestidade, então a pouca vergonha ganhou o lance, e todos os intervenientes, por isso mesmo, perderam.
Perdeu o contratante porque perdeu o dinheiro que pagou num serviço que não o satisfez, ou nem sequer obteve.
Perdeu o contratado porque, mais do que esse cliente que acabou de perder, perdeu todos os outros potenciais clientes a quem o contratante vai denunciar a torpeza do contratado.
Perdeu a sociedade no seu todo, porque se perdeu o respeito pelas relações de honestidade (que envolve competência técnica, preço justo, prazos cumpridos, assistência eficaz) entre fornecedor e cliente.
Eis um exemplo curto, mas bem eloquente.
Zé dos Santos, a viver num edifício de apartamentos de 14 andares, quis oferecer à filha uma tomada de televisão no quarto ligada à colectiva do prédio.
As imagens captadas pela antena interna eram más, com manchas, com "fantasma", canais, até, que não se viam.
Zé dos Santos, antegozando a surpresa que faria à filha, indagou na Administração do condomínio como poderia resolver o seu problema.
Foi-lhe dito que uma empresa estava contratada para se encarregar da manutenção desses equipamentos e fazer esse tipo de obras. O condomínio pagava mensalmente o estipulado no contrato.
Ainda que grande parte dos moradores estivesse descontente, a coisa ia andando.
Um tal Nerivaldo era o patrão, e foi Nerivaldo que Zé dos Santos contactou.
Só ao fim de cinco tentativas conseguiu conhecê-lo. Uma figura apagada, gaguejante, inclinada em desculpas e mal-dizer dos seus empregados. Promessa e mais promessa, arrastaram-se três semanas até que Nerivaldo se dignou aparecer com três acólitos a que chamava técnicos.
Nerivaldo mediu a olho a distância, fez contas, disse preço.
Zé dos Santos mostrou-lhes a imagem com a antena interna. Nerivaldo e seus técnicos falaram entre si e disseram a Zé dos Santos que era um problema de antena. Isso Zé dos Santos já sabia.
Zé dos Santos perguntou se pelo preço ajustado tudo ficaria em condições.
Nerivaldo garantiu que punha uma tomada a funcionar com as imagens directas da antena exterior. Que seria diferente. Antena interna nunca dá boa imagem. E outras coisas que Zé dos Santos não entendeu, mas que considerou um mimo, com os olhos a antever a alegria da filha.
Dois dias depois os técnicos de Nerivaldo apareceram para fazer o serviço.
Pediram uma extensão emprestada, porque se tinham esquecido do material não se sabe onde, pingaram-lhe o chão do quarto de cola, fizeram um buraco na parede do prédio, junto à janela do quarto da filha, para passar o cabo, deixaram um cheiro insuportável a sujo no ambiente, e marcas de mão negra nas paredes, mas tudo isto Zé dos Santos ignorou, pela surpresa que faria à filha.
Trabalho terminado, Zé dos Santos, contente como um pioneiro da tv, ligou o aparelho. Surpresa. As imagens estavam iguais às da antena interna.
Zé dos Santos, inocente, olhou os três técnicos de Nerivaldo à espera de uma explicação.
Um deles disse que tinha ali o recibozinho para o seu Zé dos Santos pagar.
Zé dos Santos perguntou em vernáculo "que merda é esta?".
Os técnicos do Nerivaldo disseram que o problema era da antena externa, e disso eles não tinham culpa.
Zé dos Santos apelou para o contrato de manutenção que os comprometia com o prédio.
Responderam que a manutenção era uma coisa, a tomada de tv era outra. Que no dia seguinte afinariam as imagens.
Então Zé dos Santos disse-lhes que não pagava enquanto o serviço não estivesse em condições.
Os técnicos telefonaram para o patrão Nerivaldo. Conferência e mais conferência. O patrão quis falar com Zé dos Santos.
Zé dos Santos manteve que não pagava até o serviço contratado ter sido feito.
Então os técnicos de Nerivaldo, após nova conferência com o patrão, arrancaram todos os cabos instalados, deixando um chão de lixo, de tinta arrancada do rodapé, de babas pegajosas de cola pregadas na madeira do soalho, e um buraco escancarado, indiscreto, da parede do quarto para o olho da rua.
Foi assim.
Esta esperteza estúpida que pretende que os outros são ainda mais estúpidos, é uma das razões por que o Brasil continua a ser uma país de futuro incerto, à deriva num confrangedor terceiromundismo, apesar de tudo cómodo para quem vive da exploração da sórdida aliança desonestidade/incompetência.