CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

Locais e ambientes, pessoas e costumes, histórias, curiosidades e acontecimentos.

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sexta-feira, março 24, 2006

A SOLUÇÃO MANUELINA

Manuel, assumido e reconhecido natural da portuguesíssima província da Beira Alta, não tem paciência para certas coisas, e teve de relembrar a táctica da sua terra natal, a de partir para cima do outro de cacete em punho.
A princípio critiquei-lhe este ímpeto de ferrabrás. Depois, acabei por dar-lhe razão: aqui, no Nordeste, é a forma mais expedita da coisa funcionar - a coisa é a Justiça.
Manuel, emigrante há 37 anos no Brasil, veio para cá aos 17, quando ficou órfão de pai e mãe, devido a uma explosão na fábrica de fogos de artifício em que ambos trabalhavam.
Trouxe-o um tio, irmão da mãe, estabelecido no Recife com um restaurante de boa fama construída ao longo de duas décadas.
Por quatro anos ficou como empregado do tio, sempre bem tratado, sempre mutuamente bem tratado.
Mas não agüentou o clima, nem o lixo das ruas, nem o comportamento oportunista, para não dizer vigarista, das pessoas.
Pediu, então, ao tio, que o deixasse partir para São Paulo, miragem dos nordestinos que não se sentem bem no chão de origem, ou de acolhimento.
O tio fez-lhe ver os inconvenientes e os perigos da grande metrópole de betão, e sugeriu-lhe Curitiba, a capital de um Estado mais ao sul, diferente na forma e no jeito de ser. Aí tinha um amigo, e poderia recomendá-lo.
Manuel acedeu e gostou de Curitiba. O amigo do tio, dono de uma loja de ferragens e fechaduras, acarinhou-o, e ensinou-lhe os truques do negócio.
Manuel montou casa, casou, constituiu família.
Dez anos depois criou a sua própria empresa de materiais de construção civil, ajudado pelo tio e pelo patrão, ex-patrão.
Um dia, aparece na loja um homem do Recife que diz conhecer o tio. Faz uma encomenda de material para casa que está a construir. Propõe pagar metade em cheque, e a outra metade em cheque também, à chegada da encomenda. Manuel aceita. O que fica por pagar é uma quantia avultada, mas Manuel confia, tanto mais que o cliente traz como referência o honrado nome do seu tio.
O material é entregue, mas o segundo cheque não tem provisão.
Manuel tenta várias vezes o desconto do cheque, sem êxito.
Fala, então, com o cliente. Este diz que se descontrolou nas contas; promete liquidar depressa.
Várias vezes Manuel tem de falar com o cliente. Promessas, mais promessas, e mais promessas. Mas o dinheiro não chega. Ao fim de oito meses acha que é demais e recorre à Justiça. Tribunal do Consumidor, ano e meio sem êxito. Tribunal comum, com advogado a cobrar couro e cabelo, 15 meses de insucesso e despesas.
É aí que resolve fazer as coisas à sua maneira, de acordo com aquilo que conhece do Nordestino.
Visita o tio no Recife. Conta-lhe a história. O tio, muito velho já, mas muito rijo e lúcido ainda, aposentado já, mas com muitos conhecimentos ainda, indica-lhe a pessoa que Manuel pretende. Garante que a cobrança será feita, mediante uma comissão de serviço de 10% da dívida.
O agente da Polícia Militar a quem Manuel propõe a tarefa é um veterano nessa coisas de justiça. Aceita. As sovas no devedor ficam garantidas até ao pagamento integral.
A coisa fez-se. A dívida ficou saldada. Tudo pago em notas do Banco Central do Brasil. E não se falou mais no assunto.
Há dois tipos de Justiça pelas quais o Manuel jamais espera: a divina, cujos mistérios são insondáveis; a brasileira, cujas demoras são insuportáveis.



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