Sofre-se de um agudo, descabido e absurdo complexo de culpa em muitas opções que é preciso tomar no quotidiano da vida. Isso induz subterfúgios nos actos e na linguagem do dia-a-dia.
Por vezes carregados de artificialismo e hipocrisia, os "adoçantes" utilizados em sociedade introduzem o falso nas relações interpessoais, confundem conceitos e deseducam.
Instalou-se o medo de chamar as coisas pelos nomes que as coisas realmente têm. Procura-se aliviar a carga de conotação negativa que os actos ou as palavras possam conter, para não violentar a sensibilidade de quem ouve ou de quem se fala.
Mas se quem ouve tem a maturidade que se pode exigir de uma sociedade adulta, o que fará, por certo, será disfarçar um sorriso benevolente, perante a tentativa de disfarce do interlocutor.
Mais do que isso, quem ouve terá de assumir o seu comportamento, tanto no que disse e é alvo de comentário, como no que fez ou faz, sem ter de se sentir ofendido por se aplicar o nome adequado ao que disse e ao que fez ou faz.
Estes pretensos e grosseiros disfarces, distorções por meio da linguística de uma realidade diferente daquela a que querem, de facto, referir-se, acabam por provocar gargalhadas soltas em quem, atento, não se deixa enredar em tais artifícios.
As prostitutas de determinado preço são acompanhantes ou massagistas.
Os arrumadores de automóveis são auxiliares de estacionamento.
Os estafetas do escritório são office-boy.
O servente da escola é auxiliar administrativo.
Um caloteiro passou a chamar-se inadimplente.
Bomba é um engenho de detonação.
Incompetência é falha humana.
Colecta ilegal de dinheiro para a política é fundo não contabilizado.
Alguns crimes são apenas deslizes.
Na última madrugada de Outubro do ano passado, um dos mais perigosos e procurados bandidos do Brasil morreu num confronto com a polícia, durante uma operação para o prender.
Traficante de droga e chefe de quadrilha, com 29 anos, dominava a maior e mais problemática favela do Rio de Janeiro.
Arrogante, duma petulância que lhe nascia da influência que detinha, arrastou para a imprensa os nomes sonantes de algumas estrelas do futebol que, pelo menos, tiveram de ser ouvidas em várias instâncias da Justiça para provarem a sua isenção face ao bandido.
A sua morte, por vários motivos, foi um alívio para muita gente.
Vivia com uma companheira de quem tinha dois filhos e de quem esperava um terceiro.
No rescaldo da operação foram presas duas mulheres a quem apreenderam fotos do e com o traficante, e muitas jóias caras.
A polícia e os órgãos de informação classificaram-nas como namoradas do bandido.
Segundo o conceito clássico de namorados, o cidadão bandido poderia vir a ser acusado, também, de poligamia se o namoro vingasse com ambas.
O hábito de mudar abusivamente o nome das coisas produz caricaturas de retórica como esta.
O que o traficante tinha era duas amantes, para além da mulher, mãe dos seus filhos.
Como o termo amante, com o tempo, ganhou uma conotação negativa de infidelidade, substituiu-se pelo termo inocente e puro de namorada/o, para tornar socialmente aceite a cumplicidade sexual de duas pessoas.
Sai insultado o conceito de namoro e de namorados.
Tradicionalmente, mas de actualidade sempre renovada, o namoro é o período de conhecimento de duas pessoas, com vista a um possível casamento. Portanto, em princípio, não cabe a uma pessoa casada ter namorados, mas sim amantes.
Que os solteiros que não querem compromissos e os casados que não querem ser fieis assumam isso de forma definitiva, e deixem os namorados construir um futuro em que cabe mais do que uma partilha de cama de vez em quando.