CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

Locais e ambientes, pessoas e costumes, histórias, curiosidades e acontecimentos.

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terça-feira, setembro 27, 2005

AS LUZES DO CIRCO

A partir do próximo Outubro, fica proibida a inclusão de animais nos espectáculos de circo no Estado de São Paulo, à semelhança, aliás, do que acontece já noutros Estados brasileiros.
Ganham em prestígio as organizações de defesa dos animais, ao conseguirem o que vinham reivindicando. O Circo perde. E os animais ganham, perdem, ou será indiferente?
Sem saudosismos, antes com profunda gratidão, conservo, ainda hoje, passados mais de 50 anos, recordações vivas, sonoras e brilhantes, das minhas idas ao circo. Imagens de fantasia, imagens mágicas. E quem não conserva?
A música tão característica que ganhou foros de género, música de Circo, incendiava os cuspidores de fogo, compassava o voo dos trapezistas, gargalhava connosco nas tropelias dos palhaços. Os feixes de luzes coloridas ora criavam sombras em recantos misteriosos, ora enchiam de um calor vibrante todo o recinto que parecia, então, um planeta pequeno e cheio de gente feliz. O clarão dos projectores disparava para os olhos centelhas arrancadas aos fatos bordados com lantejoulas, e os acordes da orquestra faziam bater o coração mais forte.
Entravam os bichos. O elefante equilibrista, o tigre saltador, o leão que rebolava, o macaco jogador de futebol, os cães dançarinos, os cavalos que levavam à garupa gentis amazonas em harmonioso aprumo.
Todo esse mundo se infiltrava na memória e alimentava o imaginário. De regresso a casa, as trompetes, os tambores, as luzes, os silêncios dramáticos da pirueta arriscada, acompanhavam-me, embalavam o meu sono, e eu sonhava ser um palhacito atrevido que provocava risadas, ou um elegante cavaleiro que soltava ovações de outros meninos.
A fundamentação que vem tirar os animais do Circo parte de quatro pressupostos, não necessariamente verificáveis: o da crueldade dos treinos, o das más condições de manutenção dos animais, o da afronta à dignidade dos bichos, e o do perigo potencial que eles representam.
Começando pelo último, é verdade que tem havido acidentes, com artistas e com público. Como acidentes, são lamentáveis, mas as estatísticas demonstram a pequena frequência de tais casos, praticamente todos motivados por falha humana, e não muito maiores em número do que os que sucedem nos jardins zoológicos.
Quando se fala em treino, há que distinguir entre crueldade e esforço. O esforço é inerente ao aperfeiçoamento dum desempenho e implica sacrifício, logo, algum sofrimento. Os humanos sujeitam-se a isso permanentemente, por escolha ou por obrigação, com vista a alcançar as metas que estabeleceram para a vida, ou que a vida lhes impõe. Mas isto não significa crueldade. A exigência de regras e limites a uma criança, o treino a que é sujeita durante o processo de integração social constituem motivos de sofrimento, mas não podem entrar na classificação de crueldade.
Nos animais, a própria natureza estabelece limites ao treino, uma vez que os excessos eventualmente cometidos podem desencadear a agressividade do animal, e torná-lo irrecuperável para o treinador, ou tratador.
Quanto às más condições de manutenção dos animais, alojamento inadequado, alimentação deficiente, cuidados de saúde precários, é preciso ter em conta que estas condições são factor de sucesso, ou insucesso, para a exibição dos bichos, logo, para o sucesso ou insucesso do número e, por consequência, para o sucesso ou insucesso do Circo.
Por outro lado, a aquisição de um animal de circo, principalmente de grande porte, é difícil e cara, a sua manutenção é difícil e cara, o seu treino é difícil, demorado e caro. Portanto, parece ser de todo o interesse do domador manter os seus comparsas em boas condições de apresentação, sem falar já do laço afetivo profundo que se estabelece entre homem e animal.
Admito que existam casos de menor consideração por esses seres, quer no que respeita ao treino, quer no que toca ao ambiente que lhes é oferecido. No entanto, abusos acontecem, da mesma forma, em creches e asilos, com pessoas, pessoas que não são capazes de se defender.
Possíveis situações isoladas de desprezo não constituem a regra, e servem para distinguir os bons profissionais dos mercenários. Feita a distinção, é preciso punir de acordo com a Lei. Se não existe lei, então está aí uma boa oportunidade para as organizações amigas dos animais se pronunciarem, darem um contributo para além da simples reclamação, colaborando na feitura dessas leis. Depois, elas próprias assumiriam o papel fiscalizador quanto ao seu cumprimento.
Sobre a dignidade dos animais, eles têm, é certo, uma dignidade que lhes é própria, mas há a tendência absurda para projectar nos bichos qualidades e valores exclusivamente humanos. Desde os nomes aos rituais fúnebres, são inúmeras as tentativas de atribuir dimensão humana aos nossos companheiros ditos irracionais.
Será que um macaquinho vestido de espanhola, que desata risota na assistência, está a ser cruelmente atingido na sua dignidade? Porquê o macaquinho, e não o palhaço com nariz de batata, fato roto, pés de metro e meio, a cair desastradamente a cada três passos? Dirão que o palhaço o faz de propósito, de livre vontade. Será de tão livre vontade assim?
Será que os cães pêlo-de-arame que correm atrás de uma bola, simulando um jogo de futebol, foram excepcionalmente sacrificados nos treinos, ou estão, em boa medida, a aproveitar o ensejo para uma divertida e espontânea brincadeira, embora com algumas regras?
Será mais agradável a situação dos seus irmãos puxadores de trenós?
E os cavalos que trotam ou galopam na pista, não terão muito mais sorte do que os seus primos destinados ao salto ou à corrida, actividades que os podem lesionar sem outro remédio que não seja o abate?
Às organizações amigas dos animais já se colocaram estas dúvidas?
Respeito o pensamento e os sentimentos dos amigos dos animais, mas não posso deixar de lhes pedir que levem a sua missão até ao fim.
Que fazer dos cães e gatos vadios, quase todos esfomeados, muitos deles carregados de moléstias ou podres de velhos, a revolver sacos de lixo pelas cidades, uma ameaça directa e indirecta à saúde pública? Não vale dizer que isso é um problema da autarquia. Isso é um problema de todos, principalmente daqueles que gostam o bastante de animais, a ponto de se constituíram em grupos para a sua defesa.
E os animais em cativeiro? São felizes? Tão infelizes que é raro reproduzirem-se. Tão infelizes que a semelhança entre o seu comportamento atrás das grades e o da liberdade é nula.
Não me esqueço de uma cena comovente que teve lugar no zoológico de Garanhuns, a duas horas de caminho do Recife. Uma leoa sofria de depressão profunda, segundo as palavras do veterinário, devido à morte, três dias antes, do seu companheiro, vitimado por ataque cardíaco durante uma cirurgia a um dente.
Por causa de exemplos destes, vão fechar os zoos?
Argumentarão que o zoo tem uma função didática, pedagógica. Eu retribuo que o Circo tem uma função lúdica e mágica, ambas importantes para a vida. Cada uma destas funções visa tornar o ser humano mais feliz para, assim, poder tornar mais feliz o seu semelhante.
Legislar, sim, para facultar aos animais o conforto e a estima que nos merecem todos os seres vivos, em particular esses que nos tornam a existência mais agradável.
Fiscalizar, sim, para que todos cumpram as leis, e para que não haja desvios por parte daqueles para quem o lucro é tudo, meio e fim.
Proibir radicalmente é o processo mais simples, mais imediato, mais prático e mais barato, mas nem sempre se revela o mais eficaz. E não é, com certeza, o que pode tornar o mundo melhor.
Com a medida agora adoptada, apesar dos aplausos de alguns sectores, as luzes do Circo ficaram menos brilhantes, e há sonhos que nunca mais serão sonhados.



terça-feira, setembro 13, 2005

CRIME DE CELEBRIDADE

Surgiu com grandes destaques na imprensa, na rádio e na televisão, não há muito tempo, a notícia de que o filho de uma figura pública, conhecida em todo o país e boa parte do mundo, fora preso por ligação ao tráfico de drogas. A notícia acrescentava que o delinquente, já com barba na cara há muito tempo, aguardava desfecho do julgamento por crime anterior ainda não sentenciado.
Presos por cumplicidade com o mundo da droga e, simultaneamente, por outros delitos existem às dúzias na sociedade, sem que por isso sejam alvo do interesse da comunicação social, pelo menos de forma tão personalizada, excepto em circunstâncias de extrema violência dos acontecimentos.
Este caso ganhou foros de notícia, não pelo sucedido em si mesmo, mas pelas personagens envolvidas, melhor dizendo, o pai da personagem.
A sua importância não é intrínseca ao facto, mas foi-lhe atribuída do exterior, artificialmente, pelo valor de marketing que uma figura com algum relacionamento com o agente, mesmo limitado e distante, pôde trazer para a situação.
O efeito pedagógico e dissuasor que o relato devia desencadear em terceiros acaba por se diluir no foco sobre uma entidade alheia ao acontecido, cujo vínculo com a acção é ser progenitor do sujeito que agiu. Estranho ao crime, mas assim arrastado para ele, como se fosse conivente ou responsável, este progenitor corre o risco de ver o protagonismo do delito transitar do criminoso para si próprio.
Parece-me legítimo que uma notícia percorra este tipo de continuum quando o crime do filho derive de um processo criminoso em que o pai esteja implicado, ou a ele se assemelhe, como foi o caso recente, e imediatamente abafado até agora, de uma figura de elevadíssimo destaque na vida nacional.
A não ser assim, a conduta da comunicação social que tenho vindo a descrever coloca-nos perante uma perspectiva nova da fábula d´O Lobo e o Cordeiro. No conto, era: "se não foste tu, foi teu pai". Nesta ocorrência é: "se não foste tu, foi teu filho".
Juridicamente, a responsabilidade do pai termina com a maioridade do filho. Moralmente, a responsabilidade pode residir noutro ponto, num tempo em que as normas, as regras, as referências, os limites deveriam ter sido comunicados, inoculados no filho, e não foram. Mas esta é uma responsabilidade que se esbate no pai, à medida que o filho, interagindo no contexto social, tem oportunidade de interiorizar essas normas por outras vias, e vai assumindo a responsabilidade pela sua própria vida. A desresponsabilização paterna será ainda maior quando esse conjunto de valores, embora incutido, não foi acatado, ou foi desprezado na maioridade.
Não me parece, pois, justo nem correcto, envolver o pai inocente no delito do filho. Se este procedimento for uma forma de mais facilmente compor notícia e vender informação, convenhamos que é, também, um método perverso de o fazer.
Muitas vezes, já se torna suficientemente grande o sofrimento desse pai perante as infracções do filho, para que seja ainda condenado e punido através da exposição do seu nome na praça pública, ligado a um episódio para o qual não concorreu.
Quantos prejuízos, por vezes não contabilizáveis, por vezes não imediatos, mas de médio ou longo prazo, poderão advir para esse pai, de índole pessoal e no contexto familiar e profissional?
Ninguém deve pagar custos por uma celebridade honesta, e muito menos por causa de um filho de triste celebridade.



sexta-feira, setembro 09, 2005

O SONHO AMERICANO

Quando as primeiras informações chegaram, a reacção foi a de que se tratava de mais um ciclone. O impacto da notícia desfez-se perante o hábito que já acostumara, tanto americanos como o resto do mundo, àqueles assomos súbitos, violentos e periódicos da natureza.
Mas, assim que as reportagens dos correspondentes começaram a divulgar imagens, logo se percebeu que se estava perante uma catástrofe.
Ao mesmo tempo, o mundo todo percebeu, também, confuso e pasmado, que mais uma vez a América, a Grande América, dera provas da sua angustiante fragilidade num período bastante curto de cinco anos.
Da primeira vez, no que ficou conhecido como o 11 de Setembro, a tragédia foi provocada por homens. Agora, o papel de vilão esteve a cargo de elementos naturais. No entanto, em qualquer dos casos, por certo que a demora do governo na resposta não deixou tranquilos os americanos.
Espectáculo deprimente, ver esta nação, que se exibe como a mais poderosa do mundo, a levar na cabeça, de gatas, sem saber o que fazer nem para onde se virar.
A nação que, a pretexto da invasão do Koweit, em poucas horas se mobilizou para acorrer em defesa do "seu" petróleo, a nação que, a pretexto da necessidade de derrubar o regime totalitário dos Taliban, se mobilizou num confronto disfarçado com os Russos para defender o controlo do "seu" petróleo naquela área, a nação que, a pretexto da existência de armas de destruição maciça num país que não as possuía, se mobilizou para desencadear uma das guerras mais sangrentas dos últimos tempos na defesa da influência do dólar e, também, do "seu" petróleo.
Desta vez, esta nação instalou-se, tranquila, em frente do televisor, observando a devastação. Enquanto se empanzinava com hamburgers e coca-cola, muitos concidadãos ficavam sem casa, sem os seus haveres, passavam todo o tipo de privações, ou morriam afogados.
A América, sempre pronta a "ajudar" terceiros, desta vez não quis, não soube ou não foi capaz de se ajudar a si própria.
Se não quis, a que se deve tão maquiavélica opção? Alguém, americano, avançou a hipótese de que os votos do sul, em menor quantidade nas últimas eleições, não valeriam o esforço, e a demora na ajuda poderia, até, servir de castigo. Os americanos conhecem-se uns aos outros, suponho. A ter algum fundo de verdade esta opinião, é quase inacreditável. Mas, por outro lado, na pátria do Ku-Klux-Klan, tornam-se imprevisíveis as formas que o racismo pode assumir, em particular por parte de um texano.
Se não soube prevenir, a que se deve essa incompetência? No país da técnica e da informação, os especialistas de engenharia tinham recomendado há muito a reconstrução urgente dos diques, e os de meteorologia avisaram que daquela zona se aproximava um ciclone.Os diques, preparados para ondas de 5 metros, cederam porque a altura da água ultrapassou os 9 metros. Era sabido que, mais cedo ou mais tarde, isso poderia acontecer. Por que nunca foram reforçados? Por que não havia, ao que tudo indica não havia, um plano de evacuação das regiões previsivelmente atingidas por enchentes? Terá sido por acaso que isso aconteceu em particular com negros, latinos e pobres?
Se não foi capaz de responder rápida e eficazmente, a que ficou a dever-se essa dificuldade? Pelos vistos, a segurança dos cidadãos estava comprometida, pois tiveram de regressar à pressa do Iraque recursos que faziam falta no território americano. O país que atribui a si próprio as funções de polícia do mundo dispersou os agentes pelas ruas e deixou o quartel desguarnecido.
As forças do exército chamadas a intervir em primeira mão não foram hospitais de campanha, brigadas de engenharia, companhias de transporte, reforço policial. Foram operacionais altamente treinados, com instruções de atirar a matar sobre tudo o que mexesse, tudo o que bulisse com a ordem já inexistente, tudo o que pudesse comprometer uma imagem de progresso, eficiência e segurança que a América pretende impingir no consumo interno, e passar para o exterior como imagem de marca.
Porquê este bloqueio, esta paralisação na sua capacidade de iniciativa? Concretização de profecias contidas em filmes tipo Day After/O Dia Seguinte?
Uma semana depois das primeiras enxurradas, mortos e feridos ainda não estavam contabilizados.
A toda soberana e poderosa América, a arrogante defensora e praticante da unilateralidade, vê-se obrigada a estender a mão à caridade pública e a ter de aceitar oferta de ajuda, mesmo de países considerados, pelo menos, antipáticos.
Isto tudo deu para perceber que "o sonho americano" é um tremendo pesadelo para os americanos de segunda. Porque parece haver dois tipos de americanos: os que são iguais perante a Lei, os que pagam impostos, dão votos e engrossam as fileiras militares; e os outros, os que pagam poucos impostos ou estão isentos, dão votos reduzidos ou nenhuns, absorvem Segurança Social, e não servem de carne para canhão.
No 11 de Setembro, Bush esqueceu uns e outros, e fugiu para o céu, literalmente, no seu Air Force One, enquanto ao vice cabia a tarefa de ser um potencial alvo móvel. Agora, esquecendo os de segunda escolha, os de menores recursos, os desamparados, não apareceu tão depressa quanto se impunha, o que é uma outra forma de fuga.
As operações de resgate começaram, embora tarde, quando já havia lojas e casas saqueadas, e motins por causa de comida e água.
Pergunto-me se as manobras de recuperação e salvamento tiveram início por causa das pessoas, ou para restabelecer o funcionamento das unidades de produção de petróleo, seriamente danificadas com o ciclone.
Não faço esta pergunta à Administração Bush, para que eles não se transformem num bando de Pinóquios.



terça-feira, setembro 06, 2005

AGENTE DA POLÍCIA, OU AGENTE DO CRIME?

Se miss Jane Marple, a célebre heroína dos romances policiais da não menos célebre autora inglesa Aghata Christie, ainda estivesse no activo, por certo teria gostado de fazer sociedade com a brasileira D. Vitória.
D. Vitória (nome fictício por razões da sua segurança), empregada doméstica aposentada, deu de bandeja à polícia do Rio de Janeiro provas de um crime que essa polícia fingia ignorar, como quem assobia para o lado, e que, por isso mesmo, se perpetuava com tranquila impunidade. Coisa frequente no Brasil.
Quando esta senhora de 80 anos entrou na loja para adquirir uma câmara de filmar, não tinha como objectivo cobrir o casamento de algum sobrinho ou o baptizado de uma neta. A missão seria outra, por motivos bem mais desagradáveis, mas com alcance cívico suficientemente elevado para que ela se dispusesse a fazer aquele investimento saldado em prestações.
Da janela do apartamento em que vivia, perto do local conhecido como Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, observou durante anos o movimento dos traficantes de droga que submetiam o morro ao seu absoluto controlo. Constantemente iam e vinham consumidores de todas as idades. Crianças eram aí iniciadas na prática da tóxico-dependência. Os traficantes comerciavam em plena luz do dia, e passeavam-se armados de pistolas, revólveres e, até, pequenas metralhadoras, morro abaixo, morro acima, impondo a lei aos moradores.
Tudo isto acontecia nas barbas, pouco respeitáveis, já se vê, das autoridades policiais sediadas ali perto.
Revoltada e inconformada com a situação, espelho da degradação moral, da dominação do crime organizado, da indulgência conivente da polícia, do medo e da insegurança dos habitantes do bairro, situação que caracteriza grande parte da sociedade brasileira, decidiu deixar de ser cúmplice passiva, e procurou arranjar provas inquestionáveis do que acontecia, por forma a pressionar a actuação das autoridades.
Foi assim que, durante dois anos, com a janela como posto avançado de observação, captou em 22 fitas com um total de 33 horas as imagens que constituem hoje um testemunho mais que eloquente das denúncias feitas, e nunca atendidas por quem de direito.
Em Agosto entregou as provas na polícia. Algum tempo depois, mais de 20 indivíduos, alguns deles identificados nos filmes, foram presos, e com eles 9 elementos da Polícia Militar (PM), precisamente a instituição a quem incumbe o policiamento dos bairros, a segurança dos cidadãos e a captura de bandidos.
Não se sabe, e é difícil que alguma vez venha a saber-se publicamente, qual o grau e a extensão do envolvimento da Polícia Militar local neste negócio sujo. A verdade é que há indicações de que eles vendiam armas aos traficantes, encobriam os traficantes, e avisaram os bandidos de que D. Vitória os denunciara, pondo, assim, em risco a vida da senhora.
O comportamento de alguns agentes facilita que se lancem suspeitas sobre toda a corporação do bairro, na medida em que D. Vitória, por sucessivas vezes, foi obrigada a esperar horas infinitas à porta do aquartelamento para poder ser atendida. Provavelmente pretendiam que ela desistisse. Não contavam com a paciência de uma determinada cidadã de 80 anos.
Quatro dias depois desta operação forçada por D. Vitória, tudo voltou à "normalidade" na Ladeira dos Tabajaras, ou seja, os traficantes tornaram a passear-se armados pelo morro e a comerciar, e os visitantes a ser abastecidos.
A imprensa, atenta, denunciou o escândalo. O Secretário Estadual da Segurança, Marcelo Itagiba, viu-se, então, obrigado a "visitar" o morro, e a transferir temporariamente o comando da PM para o alto da Ladeira.
Não se sabe quanto tempo isto vai durar, nem quais os seus resultados práticos.
Itagiba elogiou o espírito de cidadania de D. Vitória, e apontou-a como um exemplo para o país. Foi pena que se tenha esquecido de dizer que o trabalho que ela realizou deveria ter sido desempenhado há muito pelos agentes da PM, a quem competem tais tarefas, e que para isso são pagos com o dinheiro dos contribuintes.
Entretanto, D. Vitória foi viver para outro Estado, ao abrigo do Provita, Programa Estadual de Protecção à Testemunha. Era o mínimo que poderiam fazer por ela. No entanto, aquele quadro e o contexto geral do país permitem-nos analisar esse gesto dum ponto de vista cínico. É que o afastamento da idosa foi de grande conveniência, ao retirar um incómodo de peso para a actividade criminosa de agentes de polícia tão preguiçosos quanto corruptos. Isto prova como no Brasil é, muitas vezes, mais vantajoso estar do outro lado da Lei.
Em países da Europa e nos EUA, há agentes com aspecto de bandidos para melhor cumprirem as missões nesse meio. Aqui, os agentes são os próprios bandidos. E quando se fala com um destes homens fardados para denunciar um delito, nunca se sabe se não vai ele denunciar-nos ao criminoso.
É por isso que o povo não acredita na polícia que tem. Serve-se dela, quando não tem outra alternativa, mas sem confiança. É por isso, também, que há no Brasil tanto crime baseado na justiça feita pelas próprias mãos.
Tudo continuará na mesma enquanto não forem revistas as condições de trabalho destes profissionais, e enquanto não se fizer um expurgo até às últimas consequências em todas as polícias, em todos os escalões hierárquicos, em todos os Estados, em todo o Brasil.
Fornecer instrumentos para o exercício digno e dignificante da função. Aplicar punições exemplares, em presídios militares exemplares, para dignificar a função. Se isso não for entendido, assumido e concretizado pelos responsáveis pelos destinos do país, caberá continuar a perguntar-se: agente da polícia, ou agente do crime?
O problema é que, perante a descoberta recente da corrupção que alastra nesta terra, e que todos os dias traz à praça novos incidentes, envolvendo, precisamente, muitos desses responsáveis pelos destinos do país, será difícil encontrar alguém com autoridade moral para punir outros episódios de corrupção, sejam eles quais forem.



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