CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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terça-feira, setembro 06, 2005

AGENTE DA POLÍCIA, OU AGENTE DO CRIME?

Se miss Jane Marple, a célebre heroína dos romances policiais da não menos célebre autora inglesa Aghata Christie, ainda estivesse no activo, por certo teria gostado de fazer sociedade com a brasileira D. Vitória.
D. Vitória (nome fictício por razões da sua segurança), empregada doméstica aposentada, deu de bandeja à polícia do Rio de Janeiro provas de um crime que essa polícia fingia ignorar, como quem assobia para o lado, e que, por isso mesmo, se perpetuava com tranquila impunidade. Coisa frequente no Brasil.
Quando esta senhora de 80 anos entrou na loja para adquirir uma câmara de filmar, não tinha como objectivo cobrir o casamento de algum sobrinho ou o baptizado de uma neta. A missão seria outra, por motivos bem mais desagradáveis, mas com alcance cívico suficientemente elevado para que ela se dispusesse a fazer aquele investimento saldado em prestações.
Da janela do apartamento em que vivia, perto do local conhecido como Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, observou durante anos o movimento dos traficantes de droga que submetiam o morro ao seu absoluto controlo. Constantemente iam e vinham consumidores de todas as idades. Crianças eram aí iniciadas na prática da tóxico-dependência. Os traficantes comerciavam em plena luz do dia, e passeavam-se armados de pistolas, revólveres e, até, pequenas metralhadoras, morro abaixo, morro acima, impondo a lei aos moradores.
Tudo isto acontecia nas barbas, pouco respeitáveis, já se vê, das autoridades policiais sediadas ali perto.
Revoltada e inconformada com a situação, espelho da degradação moral, da dominação do crime organizado, da indulgência conivente da polícia, do medo e da insegurança dos habitantes do bairro, situação que caracteriza grande parte da sociedade brasileira, decidiu deixar de ser cúmplice passiva, e procurou arranjar provas inquestionáveis do que acontecia, por forma a pressionar a actuação das autoridades.
Foi assim que, durante dois anos, com a janela como posto avançado de observação, captou em 22 fitas com um total de 33 horas as imagens que constituem hoje um testemunho mais que eloquente das denúncias feitas, e nunca atendidas por quem de direito.
Em Agosto entregou as provas na polícia. Algum tempo depois, mais de 20 indivíduos, alguns deles identificados nos filmes, foram presos, e com eles 9 elementos da Polícia Militar (PM), precisamente a instituição a quem incumbe o policiamento dos bairros, a segurança dos cidadãos e a captura de bandidos.
Não se sabe, e é difícil que alguma vez venha a saber-se publicamente, qual o grau e a extensão do envolvimento da Polícia Militar local neste negócio sujo. A verdade é que há indicações de que eles vendiam armas aos traficantes, encobriam os traficantes, e avisaram os bandidos de que D. Vitória os denunciara, pondo, assim, em risco a vida da senhora.
O comportamento de alguns agentes facilita que se lancem suspeitas sobre toda a corporação do bairro, na medida em que D. Vitória, por sucessivas vezes, foi obrigada a esperar horas infinitas à porta do aquartelamento para poder ser atendida. Provavelmente pretendiam que ela desistisse. Não contavam com a paciência de uma determinada cidadã de 80 anos.
Quatro dias depois desta operação forçada por D. Vitória, tudo voltou à "normalidade" na Ladeira dos Tabajaras, ou seja, os traficantes tornaram a passear-se armados pelo morro e a comerciar, e os visitantes a ser abastecidos.
A imprensa, atenta, denunciou o escândalo. O Secretário Estadual da Segurança, Marcelo Itagiba, viu-se, então, obrigado a "visitar" o morro, e a transferir temporariamente o comando da PM para o alto da Ladeira.
Não se sabe quanto tempo isto vai durar, nem quais os seus resultados práticos.
Itagiba elogiou o espírito de cidadania de D. Vitória, e apontou-a como um exemplo para o país. Foi pena que se tenha esquecido de dizer que o trabalho que ela realizou deveria ter sido desempenhado há muito pelos agentes da PM, a quem competem tais tarefas, e que para isso são pagos com o dinheiro dos contribuintes.
Entretanto, D. Vitória foi viver para outro Estado, ao abrigo do Provita, Programa Estadual de Protecção à Testemunha. Era o mínimo que poderiam fazer por ela. No entanto, aquele quadro e o contexto geral do país permitem-nos analisar esse gesto dum ponto de vista cínico. É que o afastamento da idosa foi de grande conveniência, ao retirar um incómodo de peso para a actividade criminosa de agentes de polícia tão preguiçosos quanto corruptos. Isto prova como no Brasil é, muitas vezes, mais vantajoso estar do outro lado da Lei.
Em países da Europa e nos EUA, há agentes com aspecto de bandidos para melhor cumprirem as missões nesse meio. Aqui, os agentes são os próprios bandidos. E quando se fala com um destes homens fardados para denunciar um delito, nunca se sabe se não vai ele denunciar-nos ao criminoso.
É por isso que o povo não acredita na polícia que tem. Serve-se dela, quando não tem outra alternativa, mas sem confiança. É por isso, também, que há no Brasil tanto crime baseado na justiça feita pelas próprias mãos.
Tudo continuará na mesma enquanto não forem revistas as condições de trabalho destes profissionais, e enquanto não se fizer um expurgo até às últimas consequências em todas as polícias, em todos os escalões hierárquicos, em todos os Estados, em todo o Brasil.
Fornecer instrumentos para o exercício digno e dignificante da função. Aplicar punições exemplares, em presídios militares exemplares, para dignificar a função. Se isso não for entendido, assumido e concretizado pelos responsáveis pelos destinos do país, caberá continuar a perguntar-se: agente da polícia, ou agente do crime?
O problema é que, perante a descoberta recente da corrupção que alastra nesta terra, e que todos os dias traz à praça novos incidentes, envolvendo, precisamente, muitos desses responsáveis pelos destinos do país, será difícil encontrar alguém com autoridade moral para punir outros episódios de corrupção, sejam eles quais forem.



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