Quando as primeiras informações chegaram, a reacção foi a de que se tratava de mais um ciclone. O impacto da notícia desfez-se perante o hábito que já acostumara, tanto americanos como o resto do mundo, àqueles assomos súbitos, violentos e periódicos da natureza.
Mas, assim que as reportagens dos correspondentes começaram a divulgar imagens, logo se percebeu que se estava perante uma catástrofe.
Ao mesmo tempo, o mundo todo percebeu, também, confuso e pasmado, que mais uma vez a América, a Grande América, dera provas da sua angustiante fragilidade num período bastante curto de cinco anos.
Da primeira vez, no que ficou conhecido como o 11 de Setembro, a tragédia foi provocada por homens. Agora, o papel de vilão esteve a cargo de elementos naturais. No entanto, em qualquer dos casos, por certo que a demora do governo na resposta não deixou tranquilos os americanos.
Espectáculo deprimente, ver esta nação, que se exibe como a mais poderosa do mundo, a levar na cabeça, de gatas, sem saber o que fazer nem para onde se virar.
A nação que, a pretexto da invasão do Koweit, em poucas horas se mobilizou para acorrer em defesa do "seu" petróleo, a nação que, a pretexto da necessidade de derrubar o regime totalitário dos Taliban, se mobilizou num confronto disfarçado com os Russos para defender o controlo do "seu" petróleo naquela área, a nação que, a pretexto da existência de armas de destruição maciça num país que não as possuía, se mobilizou para desencadear uma das guerras mais sangrentas dos últimos tempos na defesa da influência do dólar e, também, do "seu" petróleo.
Desta vez, esta nação instalou-se, tranquila, em frente do televisor, observando a devastação. Enquanto se empanzinava com hamburgers e coca-cola, muitos concidadãos ficavam sem casa, sem os seus haveres, passavam todo o tipo de privações, ou morriam afogados.
A América, sempre pronta a "ajudar" terceiros, desta vez não quis, não soube ou não foi capaz de se ajudar a si própria.
Se não quis, a que se deve tão maquiavélica opção? Alguém, americano, avançou a hipótese de que os votos do sul, em menor quantidade nas últimas eleições, não valeriam o esforço, e a demora na ajuda poderia, até, servir de castigo. Os americanos conhecem-se uns aos outros, suponho. A ter algum fundo de verdade esta opinião, é quase inacreditável. Mas, por outro lado, na pátria do Ku-Klux-Klan, tornam-se imprevisíveis as formas que o racismo pode assumir, em particular por parte de um texano.
Se não soube prevenir, a que se deve essa incompetência? No país da técnica e da informação, os especialistas de engenharia tinham recomendado há muito a reconstrução urgente dos diques, e os de meteorologia avisaram que daquela zona se aproximava um ciclone.Os diques, preparados para ondas de 5 metros, cederam porque a altura da água ultrapassou os 9 metros. Era sabido que, mais cedo ou mais tarde, isso poderia acontecer. Por que nunca foram reforçados? Por que não havia, ao que tudo indica não havia, um plano de evacuação das regiões previsivelmente atingidas por enchentes? Terá sido por acaso que isso aconteceu em particular com negros, latinos e pobres?
Se não foi capaz de responder rápida e eficazmente, a que ficou a dever-se essa dificuldade? Pelos vistos, a segurança dos cidadãos estava comprometida, pois tiveram de regressar à pressa do Iraque recursos que faziam falta no território americano. O país que atribui a si próprio as funções de polícia do mundo dispersou os agentes pelas ruas e deixou o quartel desguarnecido.
As forças do exército chamadas a intervir em primeira mão não foram hospitais de campanha, brigadas de engenharia, companhias de transporte, reforço policial. Foram operacionais altamente treinados, com instruções de atirar a matar sobre tudo o que mexesse, tudo o que bulisse com a ordem já inexistente, tudo o que pudesse comprometer uma imagem de progresso, eficiência e segurança que a América pretende impingir no consumo interno, e passar para o exterior como imagem de marca.
Porquê este bloqueio, esta paralisação na sua capacidade de iniciativa? Concretização de profecias contidas em filmes tipo Day After/O Dia Seguinte?
Uma semana depois das primeiras enxurradas, mortos e feridos ainda não estavam contabilizados.
A toda soberana e poderosa América, a arrogante defensora e praticante da unilateralidade, vê-se obrigada a estender a mão à caridade pública e a ter de aceitar oferta de ajuda, mesmo de países considerados, pelo menos, antipáticos.
Isto tudo deu para perceber que "o sonho americano" é um tremendo pesadelo para os americanos de segunda. Porque parece haver dois tipos de americanos: os que são iguais perante a Lei, os que pagam impostos, dão votos e engrossam as fileiras militares; e os outros, os que pagam poucos impostos ou estão isentos, dão votos reduzidos ou nenhuns, absorvem Segurança Social, e não servem de carne para canhão.
No 11 de Setembro, Bush esqueceu uns e outros, e fugiu para o céu, literalmente, no seu Air Force One, enquanto ao vice cabia a tarefa de ser um potencial alvo móvel. Agora, esquecendo os de segunda escolha, os de menores recursos, os desamparados, não apareceu tão depressa quanto se impunha, o que é uma outra forma de fuga.
As operações de resgate começaram, embora tarde, quando já havia lojas e casas saqueadas, e motins por causa de comida e água.
Pergunto-me se as manobras de recuperação e salvamento tiveram início por causa das pessoas, ou para restabelecer o funcionamento das unidades de produção de petróleo, seriamente danificadas com o ciclone.
Não faço esta pergunta à Administração Bush, para que eles não se transformem num bando de Pinóquios.