Sete horas da manhã. Dia pleno. O calor ameaça já o sufoco que será no resto da jornada.
Bairro da Boa Viagem, um dos bairros distintos da cidade, onde o poder de compre ocupa os inúmeros e imensos blocos de apartamentos de betão à beira mar, ou próximo. O alinhado do conjunto residencial e dos seus elementos contrasta com o descaso e a decadência generalizados nos bairros limítrofes. Numa coisa, porém, são idênticos: nos seus meninos da rua.
Sete horas da manhã. Num cruzamento de trânsito intenso, a bordejar um dos muitos canais que irrigam a cidade, perto de três dos mais caros colégios da capital, à hora do começo das aulas, dúzia e meia de meninos da rua fervilha na esquina, fala alto, simula luta e cheira cola – cola de sapateiro cuja compra lhes está interdita - derramada em pequenas garrafas de plástico que contiveram refrigerante. Parece terem atravessado a noite a pé, ou saído dela às primeiras horas do alvorecer para espantar os pesadelos com que são obrigados a conviver dia após dia. Para eles, o estatuto da criança e do adolescente é letra morta. Para eles, só o código da rua.Meninos à solta, vivem em bandos, não de pardais: mais como pequenos aprendizes de ave de rapina. Meninos e meninas, muito mais meninos. Negros e brancos, muito mais negros.Procuram-se e encontram-se por idades afins, e a cada grupo etário sua actividade.
Sujos, descalços ou mal calçados, quase nus por força da roupa exausta e do clima, ágeis, afoitos, atrevidos, olhos vivos, mãos ágeis, pés ligeiros.
Adoram a rua, o sol, o mergulho lançado da ponte sobre o rio. Não gostam da escola e fogem dela ou nem sequer lá vão.
Cedo conheceram o lado negro da vida, em lares desfeitos à pressa, refeitos ao acaso e desfeitos outra vez, à velocidade das semanas. Cedo conheceram o lado negro da vida em lares nunca construídos.
Os pais, quando os têm, aos dois, ou, ao menos, um deles, não os querem na escola; preferem trazê-los na rua a angariar o bocado do pão, roubado, esmolado ou trabalhado, às vezes duro, duro de roer. Catam o papelão, o papel, o plástico depositados nos lixos das esquinas dos prédios. Puxam carroças, gado humano, pejadas de desperdício, até aos centros de escolha para reciclagem. Outros, postados nos semáforos, limpam pára-brisas, mesmo a troco de nada, ou fazem malabarismos com utensílios toscamente artesanais, à frente dos carros, quase sempre a troco de nada, quase nunca a troco de um olhar de atenção. Os mais pequeninos vendem guloseimas industriais, com uma lenga-lenga decorada e repetida num ritmo monocórdico e sem sentimento. Se alguém lhes diz que deveriam estar na escola àquela hora, fogem da conversa; passam a outro carro a oferecer os doces "para ajudar a comprar os livros da escola". O Governo instituiu a “bolsa-escola”, um salário mínimo (cerca de 72 Euros) por cada filho a frequentar a escola pública. Mas os filhos da escola pública são filhos de pobre a quem a bolsa-escola, desviada da escola, não chega a minorar a fome. Além disso, também aqui – por que não? – chegou a fraude. Imprensa recente denunciou muitas inscrições na bolsa-escola de grávidas e lactantes... que eram homens.
Alguns meninos da rua cedo ingressam no mundo do crime: correios de droga, vigias de favela quando a polícia se aproxima, ladrões de pequena monta ou ajudantes em acções maiores de furto ou roubo, confessos, porque inimputáveis, de crimes cometidos por adultos, e, muitas vezes, sequestradores, violadores, assassinos eles próprios.
A lei 8069, sob a forma de Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, impede que o menor seja mantido em regime prisional. Quando necessário, recorre-se ao internamento em instituição. Mas o que é esta instituição, por mais lindo que seja o nome que lhe deram, senão um estabelecimento prisional para menores, com todos os vícios e defeitos dos do adulto? Dentro dos seus muros se aprende o crime e o crime se pratica sobre internados e sobre o pessoal da instituição. Ainda há bem pouco tempo foi noticiada a violação de uma funcionária por quatro adolescentes internados na instituição em que trabalhava. Nestes autênticos vespeiros se organizam motins, e, quando há fugas em massa, nem todos os foragidos são capturados.
Por paradoxo, a lei brasileira permite que votem todos os jovens a partir dos 16 anos, reconhecendo-lhes, pois, com esta idade, capacidades e sentido de responsabilidade para decidir num dos actos mais sérios (pelo menos em princípio) da vida do cidadão. Mas, por outro lado, considera-os inimputáveis até aos 18 anos, caso ceifem a vida de um seu semelhante. Pontua, pois, a hipocrisia política e o falso pretexto da falsa aplicação dos falsos direitos humanos.
Menino da rua que tão bem corres, ninguém te ensina a correr para fugires ao destino que te traçam uns quantos que não sabem que também já foram meninos.