CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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quinta-feira, abril 28, 2005

MORTE DE CRIANÇAS POR NEGLIGÊNCIA HOSPITALAR

Morreu uma criança. Outra. Mais uma. É o terceiro caso de que tomo conhecimento, em menos de 1 mês, de morte de crianças por negligência clínica na urgência de pediatria de um mesmo hospital público do Recife.
Três casos, três crianças, três mortes evitáveis.
Três mortes evitáveis se tivessem sido providenciados a tempo, com determinação e competência, os cuidados imediatos que as respectivas situações exigiam.
Três crianças que deixaram de ser a alegria de outras crianças e que dessas outras deixaram de colher a sua própria alegria.Três casos encerrados com displicência na frieza da rotina hospitalar.
Nos hospitais públicos estaduais, neste caso no Estado de Pernambuco, nordeste brasileiro, o pessoal médico e de enfermagem é pago, praticamente, ao preço de qualquer caixa de supermercado ou balconista de loja de centro comercial (aqui pomposamente chamado shopping center), isto é, pouco mais de 1 salário mínimo (260 Reais, ou 81,25 Euros); no caso dos médicos, poderá ir a perto de 2 salários mínimos.
Dada a exiguidade da remuneração e o miserabilismo dos aumentos anuais, médicos e enfermeiros vêem-se obrigados a dispersarem-se ao longo do dia por vários empregos, com todos os custos inerentes, quer para a sua saúde, quer para a qualidade do atendimento dos pacientes, não falando já da impontualidade crónica motivada pela correria de hospital para hospital no meio de um trânsito intenso e perigoso (aqui não há a obrigatoriedade de seguro automóvel contra terceiros nem de responsabilidade civil). Os serviços que mais se ressentem são os de maior grau de stress, ou seja, os plantões da noite (banco hospitalar nocturno).
Por excesso de trabalho, faleceu recentemente uma enfermeira com pouco mais de 40 anos, casada, com dois filhos menores, que contraíra pela segunda vez uma tuberculose pulmonar. Com o objectivo de juntar dinheiro para a compre de uma casa de férias, desdobrou-se em empregos, descurando a alimentação, o descanso, os cuidados consigo própria. Esqueceu-se de que já tivera uma tuberculose mas a tuberculose não se esqueceu dela.
Disse-me um enfermeiro, a trabalhar apenas em plantões de emergência nocturnos, ou seja, trabalhando uma noite, das 19 horas de um dia às 7 horas da manhã do dia seguinte, e descansando dois dias, ser sobejamente cansativa e desgastante esta actividade: a carência de pessoal; a pressão física e psicológica provocada pelo tipo de situações em presença, grande parte tornando-se uma luta feroz com a morte; o clima, nem sempre compensado eficazmente pelos reguladores de temperatura (de humidade não há) das áreas de intervenção; a ausência dos meios adequados que, muitas vezes, se faz sentir consomem por si só demasiadas energias para que se queira pensar em trabalho suplementar. É aqui que entra a outra variável: a necessidade obriga a dois, três e quatro trabalhos suplementares.
A emergência médica, em que o tempo de actuação é decisivo, exige, para além de reflexos rápidos, completa disponibilidade física e mental, pois disso depende o êxito do resgate de vidas humanas. No caso de crianças, precisamente por serem crianças (isto parece nada dizer mas acho que diz tudo o que em nós está inscrito como instinto de conservação) o insucesso desse resgate torna-se mais frustrante e confrangedor.
No caso da morte de uma destas três crianças, a enfermeira responsável pelo paciente bloqueou; em vez de fazer a aspiração que se impunha, virou-se para uma colega e exclamou "estou estressada"; a colega, dedicada inteiramente a outro paciente que não podia abandonar, viu, num misto de raiva, angústia e dor, o pequenito morrer porque quem fora treinada e era paga para lhe manter a vida estava "estressada".
Os pais das crianças que acorrem à urgência de pediatria dos hospitais públicos são, na generalidade, pessoas de fracos recursos económicos e culturais, desconhecedoras dos mais simples procedimentos clínicos de emergência e, acima de tudo, desconhecedoras dos seus direitos e/ou sem força psicológica, monetária ou jurídica para os fazer valer.
É por isso que acontecem casos, de crianças, de mortes evitáveis. Casos encerrados com displicência na frieza da rotina hospitalar.



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