CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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quinta-feira, julho 19, 2007

A MATANÇA DOS INOCENTES, O SILÊNCIO DOS INDECENTES, E OUTRAS DENÚNCIAS URGENTES

O moderno Airbus A 130, um dos 41 do mesmo tipo que a companhia aérea brasileira TAM possui, sai às 17h16 de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, o mais meridional do Brasil, e dirige-se para São Paulo com 186 ocupantes, entre passageiros, tripulantes e alguns técnicos da TAM que ocasionalmente fazem a viagem (a empresa referiu inicialmente 174, depois 176, depois 180 e, finalmente, 186, num assustador indício da calamitosa incompetência dos responsáveis da companhia).
Chove em São Paulo, quando, às 18h46 o avião se faz à pista principal do aeroporto de Congonhas. Toca-a, e depois tudo é muito rápido.
Aparentemente, desliza na pista molhada; o comandante percebe que não consegue fazê-lo deter-se, e tenta pô-lo de novo no ar; o avião descreve uma curva entre 45 e 90 graus para a esquerda, ainda se eleva em grande velocidade, mas não consegue subir; passa por cima duma avenida paralela às pistas, a um nível um pouco mais baixo, a Washington Luís, uma das mais movimentadas de São Paulo, de trânsito intenso àquela hora, e entra totalmente pela lateral do piso térreo dum prédio de três andares, onde funcionava um entreposto de cargas expresso da TAM, que no momento armazenava volumes com material radioactivo, destinados à actividade médica. Estima-se que no edifício se encontrassem entre 50 e 60 empregados (inicialmente foi dito que habitualmente estariam duas centenas e meia).
São 18h50. O avião explode de imediato, o mesmo acontecendo a um posto de gasolina situado junto do entreposto da TAM. Ambas as construções ficaram completamente destruídas. Parte do entreposto desabou.
Poucos minutos decorrem até que cheguem ao local os primeiros contingentes de bombeiros, que só ao fim de sete horas conseguem dar os incêndios por controlados, mas não extintos: continuaram por mais de 24 horas. Vinte e sete prédios foram evacuados, e cinco remetidos a demolição. Depois, começa a tarefa da retirada dos corpos carbonizados – ocupantes do voo JJ3054, e funcionários do entreposto.
Os noticiários nacionais classificaram o desastre de tragédia, considerando-a como a pior de toda a história da aviação brasileira e da América Latina, e a pior do mundo quanto a número de mortos em 2007.
Passaram-se várias horas sem que as autoridades se pronunciassem, ao menos com uma palavra de solidariedade para com as famílias das vítimas – o silêncio dos indecentes. A Infraero, empresa que tem a seu cargo a gestão dos aeroportos do Brasil, começou por dizer que nada tinha acontecido, depois que fora um acidente com um avião de pequeno porte, para, final e tardiamente, reconhecer a dimensão do desastre – outro exemplo acabado de incompetência, desarticulação e irresponsabilidade.
A transportadora, a pretexto de um qualquer clausulado legal, negava-se a dar qualquer esclarecimento quanto à identidade das vítimas, o que criou motins nos aeroportos aonde acorreram amigos e familiares dos ocupantes do avião. As autoridades reagiram da única forma que a sua incompetência lhes permite: ordenando o avanço da tropa de choque para conter os ânimos.
O presidente da República, Lula da Silva, não querendo dar mostras da habitual inércia e inépcia em situações de emergência, manda recado à TAM, por uma nota oficial radiodifundida, para que a companhia divulgue os nomes dos sinistrados, dando a entender que desconhecia a lei que impede tal divulgação pública antes de as famílias serem avisadas, ou que essa lei é uma balela que serve de escudo para retardar informações, ou, ainda, que continua a imiscuir-se em assuntos que não lhe dizem respeito. A TAM ignorou o presidente, e divulgou a lista 7 horas depois.
As primeiras opiniões de especialistas começaram a surgir, confirmando aquilo que era já sabido, e acrescentando novos e escandalosos dados:
- a pista principal do aeroporto de Congonhas esteve fechada por 51 dias para obras de beneficiação, designadamente para o aumento de segurança com tempo de chuva;
- a pista foi aberta ao tráfego quando as obras ainda não estavam concluídas, com o intuito de acalmar a opinião pública, que reclamava pelos transtornos diários causados aos voos, muitos deles adiados e/ou cancelados;
- faltou na obra um elemento fundamental para que a pista pudesse operar com chuva: o "grooving", conjunto de ranhuras destinadas ao escoamento de água, e ao aumento de aderência ao solo dos pneus das aeronaves; essa parte da obra estava prevista para Agosto, mas a pista reabriu em 30 de Junho;
- a abertura antecipada da pista resultou dum conluio entre ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) e Infraero (órgão que faz a gestão dos aeroportos brasileiros), geralmente às turras, empenhadas em jogos de poder, mas desta feita absolutamente de acordo no sentido de favorecerem os empresários ligados directa ou indirectamente ao ramo do tráfego aéreo, que estão a facturar alto no negócio da aviação civil;
- nas reformas do aeroporto de Congonhas, foram gastos em luxo e conforto (centros comerciais, lojas, salas de embarque, salas VIP) 400 milhões de reais (148 milhões de euros), e na segurança menos de 20 milhões (7,4 milhões de euros), apesar de tudo, verba demasiado elevada, se atendermos aos resultados;
- no sábado anterior tinha havido 10 registos de ocorrências de pilotos, relatando dificuldades encontradas no controlo das aeronaves por causa da pista molhada;
- na segunda-feira, um piloto teve dificuldade em travar o seu aparelho;
- na véspera do desastre, vários pilotos avisaram do estado perigoso da pista;
- ainda na véspera, outro avião derrapou após aterrar, e parou no canteiro central;
- "Tudo isto resulta do despreparo absoluto e generalizado das autoridades", diz um especialista brasileiro em aviação;
- "Toda a gente sabia da iminência de um grave acidente", afirma outro perito;
- "Isto não foi coincidência, foi reincidência", palavras de um jornalista;
- "Tudo o que envolve a Infraero [gestora dos aeroportos brasileiros] é corrupção", garante um senador;
- um membro de uma comissão municipal de São Paulo que estuda desde 2001, em reuniões semanais, a segurança de Congonhas, queixa-se de que as autoridades brasileiras convidadas para participarem nas reuniões, ou não aparecem, ou, quando raramente estão presentes, dizem que nada sabem, que não têm informação, que desconhecem tudo sobre os pontos em análise, boicotando o avanço dos trabalhos; e clama amargamente: "Quando este país terá coragem para dizer que Congonhas não pode ser considerado operacional em termos de primeiro mundo?";
- "O risco não acabou com este acidente; é uma bola de neve que está rolando há muito tempo", opinião de um professor universitário ligado à aviação civil.
Algumas horas depois do desastre, o ministro da Justiça ordena à Polícia Federal (PF), que dele depende, que apure responsabilidades para saber se a pista foi entregue fora das condições preconizadas; pura retórica para brasileiro ouvir, já que é público e notório que as obras da pista não tinham terminado.
Quase 18 horas depois, o presidente da República, Lula da Silva, ordena à mesma PF uma investigação para apurar responsabilidades sobre as obras da pista, dando, mais uma vez, a ideia de que não se sabe quem manda o quê e em quem.
Antes de qualquer conclusão, autoridades vêm a público afirmar que a responsabilidade pelo acidente é da companhia aérea, e não do Poder Público, mas recomendam "cautela com as precipitações", quando os pareceres generalizados apontam as graves deficiências da pista, a falta de investimento em pessoal, equipamentos e infra-estruturas, e o descaso absoluto dos governantes e outros responsáveis pelo tráfego aéreo no Brasil.
O Ministério Público Federal intenta uma acção judicial com vista a fechar o aeroporto de Congonhas; este ano é a segunda vez que o faz.
O mundo civilizado critica o sistema aéreo brasileiro.
O povo clama por "vergonha na cara" dos governantes.
O presidente Lula proíbe todos os ministros e outros responsáveis de primeiro escalão de fazerem comentários públicos, para que a sua imagem política não seja prejudicada.
Entretanto, inocentes morrem, à mercê da aviação civil brasileira: 154 em 29 de Setembro de 2006, cerca de 200 em 17 de Julho de 2007.
Alguém, ingenuamente, pergunta: "será que as autoridades agora vão pôr a mão na consciência?". A resposta só pode ser – claro que não! Não, por dois motivos. Primeiro, as autoridades brasileiras já demonstraram não ter consciência, nem racional, nem moral. Segundo, se há que pôr a mão em qualquer coisa, as autoridades brasileiras vão fazer aquilo que melhor sabem e mais têm feito – pôr a mão nos dinheiros públicos.



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