Renan Calheiros é um senador do Congresso Brasileiro, eleito pelo PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), agrupamento político da base de apoio ao actual governo presidencialista chefiado por Luís Inácio Lula da Silva.
Mas Renan Calheiros é mais do que isso: ele é o presidente do próprio Senado, e, nessa qualidade, pela Constituição, a quarta figura do Estado numa eventual substituição da presidência da República, sendo, ainda, o presidente do Congresso (Senado e Câmara dos Deputados).
Estamos, por consequência, perante uma figura pública de elevadas responsabilidades no panorama nacional, que deve incutir um respeito acrescido nos cidadãos, dadas as funções reais e potenciais, e cujos actos resultantes da actividade política são quotidianamente observados, analisados e avaliados pelo contribuinte que lhe paga o salário principesco, e que, em troca, terá direito a resultados práticos para a melhoria da qualidade de vida, e a idoneidade nos procedimentos do Senado e dos senadores, a começar por ele, Renan Calheiros, presidente. Para além disso, pelo tipo de perfil e de posição na sociedade, na nação, pede-se, também, ao presidente do Senado que a sua vida privada, ao menos a que vem à praça, seja digna e impoluta.
Numa recente operação desencadeada pela Polícia Federal – a tão falada "operação Navalha" – que levou à demissão de um ministro e respectivo assessor especial, e à prisão de várias dezenas de personalidades políticas e empresariais, descobriu-se que 100 milhões de reais (37 milhões de euros) foram desviados dos cofres do Estado para obras públicas não realizadas, ou deixadas por metade (ou menos) e não aproveitáveis. Uma grande empresa de construção civil vinha subornando dirigentes políticos e parlamentares desde 2000, ganhando sucessivamente todos os concursos para execução das construções [ver crónica "Uma Diabólica Trindade", publicada em 5/6/07].
A reboque da escandaleira, mais uma das muitas em que a governação de Lula tem sido fértil, surge o nome de Renan Calheiros, embora não relacionado directamente com este caso: ele teria recebido dinheiro de uma outra empresa, também de construção civil, a troco não se sabe ainda de quê. O dinheiro recebido destinar-se-ia ao pagamento da pensão de alimentos de uma filhita de Calheiros e de uma jornalista, nascida há 4 anos fora do casamento do senador – cuja família foi inesperada e desagradavelmente confrontada com a notícia através de uma revista de grande circulação nacional.
Segundo declarações da jornalista mãe da criança e de seu advogado, era um funcionário da empresa de construção que lhe entregava o montante da pensão de alimentos, e quase sempre em dinheiro vivo (cheques são instrumentos comprometedores e foram pouco utilizados...).
Alvoroço no Senado. O respectivo Conselho de Ética, que supostamente existe para julgar questões que possam colidir com o decoro parlamentar, reúne e instaura um processo, nomeando relator um tal Epitácio Cafeteira, homem pouco seguro, medroso, senador amigo de Calheiros e amigo de Sarney, o influente e poderoso ex-presidente da República, também ele senador, também ele amigo íntimo de Calheiros, também ele do PMDB. Enfim, a panelinha...
Mesmo antes de ser ouvido, Renan Calheiros apresenta a sua defesa por escrito, onde assegura que sempre foi ele quem pagou a pensão de alimentos da menina, não esclarecendo cabalmente a razão por que era um funcionário da construtora a entregar o dinheiro; fala vagamente em questões de amizade pessoal e intermediação, e fica-se por aí. O relator do processo, em 24 horas lê a defesa e sustenta que os documentos apresentados por Renan Calheiros atestam a sua inocência; conclui, pedindo que o processo seja arquivado, sem qualquer investigação. Mas não consegue que o Conselho de Ética vote a sua proposta.
A mãe da criança e o advogado tornam a contestar na comunicação social a veracidade das palavras de Calheiros, reafirmando que o dinheiro era da construtora, e não do presidente do Senado. Mas parece que o Conselho de Ética não está interessado em dar crédito ao que eles dizem.
No meio de umas confusões também mal esclarecidas quanto ao património registado na declaração anual de impostos, e que passaram em branco, Renan apresenta ao Conselho de Ética uma série de documentos para provar que tem dinheiro e que, portanto, não precisaria que alguém pagasse a pensão da filha por ele.
Tais documentos, facturas comprovativas da venda de gado a diversas empresas (matadouros e frigoríficos), tornavam-se, em princípio, desnecessários, pois é do conhecimento geral que o senador tem avultadas posses. Para além do mais, o que está em causa não é a capacidade financeira de Calheiros, nem, tão-pouco, o seu adultério de que resultou uma filha com a amante; isso diz respeito exclusivamente a ele, à família dele, e à amante dele. A questão fundamental é o facto de poder estar a ser subornado, ainda que para fins não esclarecidos neste momento, de forma muito bem camuflada.
Mas se o senador pretendia criar uma cortina de fumo à volta do caso, arranjou lenha para se queimar: a imprensa foi atrás das facturas que ele apresentou, e denunciou que são falsas; as empresas compradoras do seu gado, ou não existem, ou não negociaram com ele uma única cabeça bovina, ou, ainda, as transacções são muito inferiores às referidas nas notas e recibos. Além disso, duas das empresas são conhecidas da Justiça por emitiram notas falsas.
O Senado entra em efervescência e o Conselho de Ética explode. O relator do processo, com espasmos de tremores e gaguejos, quer demitir-se da função, mas é instado a continuar. A votação é adiada para que se faça alguma luz sobre o assunto.
Descoberto, Renan Calheiros resolve apresentar outras versões para as facturas falsas, dizendo-se vítima de um esquema engendrado por empresas ligas ao sector das carnes.
Então, o relator torna a insistir em que se arquive o processo, e já avisou que, seja qual for o resultado da investigação, manterá a sua proposta. Na véspera da votação afastou-se por doença, com atestado médico para 10 dias...
Poderia chamar-se a este teatro "Justiça e Democracia num Conselho de Ética", ou, se fosse tema de monografia, "Congresso Brasileiro – uma Corporação ao Serviço dos Parlamentares".
Num país decente, o sr. Renan Calheiros já estaria afastado do cargo há muito tempo, por iniciativa própria, ou a pontapés no lugar anatómico adequado, a bem do asseio e da honradez do Senado e do país; um processo de investigação limpo e escorreito já estaria em curso num Conselho de Ética a sério e nas instituições judiciais competentes; em último caso, o sr. Calheiros estaria já a caminho de uma prisão preventiva.
Mas no Brasil não é assim. No reino da impunidade da malandragem encartada de colarinho branco, parece que todos têm culpas no cartório. É por isso que no Conselho de Ética, de Ética arredia, se notam, a par da defesa incondicional e cega dos correligionários, algumas fingidas indignações que, provavelmente, na hora da verdade vão votar com o relator – arquive-se o processo! Assim cria-se um precedente útil, mais um, porque nunca se sabe o dia de amanhã: amanhã pode ser que lhes caiba a vez de verem descoberta uma qualquer tramóia que aprontaram, e, então, será o momento de cobrar a factura...