Para os leitores que não queiram procurar a crónica com o mesmo nome publicada em 26 de dezembro de 2006, aqui fica o essencial para se perceber o que vem a seguir.
"Muito se encontra ainda por esclarecer e por divulgar quanto ao que acontece nos céus do Brasil, mas o que se passa no dia-a-dia das salas de espera e de embarque dos aeroportos já dá para ter uma ideia do caos em que se tornou o tráfego aéreo brasileiro.
Até aqui, os passageiros do ar viajavam com a serena e inocente confiança que proporciona a ignorância do perigo. As coisas mudaram no dia 29 de Setembro, quando um pequeno jacto táxi-aéreo da classe Legacy, para 13 pessoas, colidiu com um Boeing 737 que acabou por se despenhar na floresta amazónica, resultando daí a morte dos 154 ocupantes.
(...) entrevistas dadas a cadeias de televisão americanas pelo repórter e colunista do diário "The New York Times" Joe Sharkey, um dos passageiros do Legacy. O jornalista denunciou a existência de "zonas cegas" no céu brasileiro, onde as comunicações entre aviões e torres de controlo seriam difíceis e, nalguns casos, impossíveis, tornando as viagens pouco seguras. O local onde se deu a colisão entre os dois aparelhos seria uma dessas zonas cegas.
(...) Mas logo de seguida surgiram depoimentos de comandantes de voo brasileiros, confirmando dificuldades e impossibilidades pontuais de comunicação no espaço aéreo do Brasil.
Foi então que começaram a circular algumas insinuações sobre uma duvidosa competência dos controladores de voo.
Sentindo-se feridos na sua dignidade profissional, os controladores vieram, então, para a praça pública lavar a roupa suja que já não cabia em casa. Foi assim que a população ficou a conhecer as misérias dessa profissão no Brasil: salários baixos, militarização da actividade e controlo de aviões em número muito superior ao aconselhado pelas organizações internacionais especializadas foram as queixas mais em evidência.
(...) Impossibilitados de fazer greve devido ao foro militar da profissão, os controladores adoptaram o que ficou conhecido como "plano padrão": limitaram-se a monitorar apenas o número de aviões estabelecido pelo regulamento (cerca de menos seis aviões por cada profissional) e os restantes ficaram às voltas no ar ou paralisados no solo.
Assim se gerou a balbúrdia nos aeroportos brasileiros, com centenas de voos cancelados e muitas centenas de voos atrasados, alguns com mais de 18 horas de retardamento. Milhares de passageiros a reclamar em vão, sem qualquer apoio das entidades públicas ou privadas envolvidas, aglomerados nas salas de espera e de embarque dos aeroportos, dormindo nos bancos e no chão, misturados velhos com crianças de colo, mulheres grávidas com adolescentes, num ajuntamento indignado, impotente e infeliz.
(...) Mais uma vez os aeroportos são cenários de desordem, confusão e revolta.
Centenas de voos atrasados, dezenas deles cancelados.
Salas de espera e de embarque lotadas, gente espalhada pelo chão.
As bagagens partem e os passageiros ficam.
Não há qualquer apoio aos viajantes, nem de alimentação, nem de alojamento.
As informações, quando chegam, são contraditórias”.
A situação agravou-se ao longo de 9 meses, sem que o Governo do Presidente Lula da Silva consiga (ou queira?) controlá-la, mesmo com o tremendo aviso daqueles 154 mortos. Ou o Governo não tem competência – absolutamente nenhuma – ou é irresponsável e ainda não percebeu que está a pisar "terreno minado" nas rotas do céu.
Vejamos:
- Por diversas vezes houve denúncias de que aeronaves estiveram em rota de colisão devido a falhas do sistema de controlo de terra. Na semana passada isso aconteceu com três aviões lotados de passageiros, no espaço aéreo de São Paulo, o mais congestionado do país, na rota internacional entre Manaus e Brasília (precisamente onde se verificou o desastre de 29 de Setembro). Funcionaram os avisadores de bordo que obrigaram os aviões a manobras de emergência.
- As panes nos sistemas do controlo aéreo de Brasília continuam a ser frequentes, provocando cancelamentos em muitas dezenas de voos no Brasil, e o atraso de várias horas em centenas de outros.
- Na última sexta-feira, alguns dos atrasos chegaram a 36 horas.
- Aviões lotados e prontos para descolar são evacuados sem qualquer justificação aos passageiros.
- Nem os aeroportos nem as companhias transportadoras dão qualquer tipo de apoio no que toca a alojamento e alimentação (incluindo água).
- Homens, mulheres e crianças, bebés e velhos dormem pelo chão das salas de embarque (onde a imprensa está proibida de entrar).
- As reivindicações dos controladores de voo continuam a não ser satisfeitas, o que os leva a realizar "operações padrão", greves que não são juridicamente greves: limitam-se a controlar apenas o número de aviões recomendado pelos organismos internacionais (de 14 aviões para 8), de modo a que não possam ser considerados outra vez o bode expiatório de uma eventual catástrofe futura.
- O ministro da Defesa, que sempre afirmou que tudo estava bem, agora reconhece que, para já, faltam 40% de controladores com experiência, o que significa que só daqui a um ano a situação poderá estar regularizada.
- O director-geral dos aeroportos todos os dias afirma que no dia seguinte a situação estará regularizada.
- O ministro da defesa pede aos cidadãos que rezem para
que não haja mais contratempos.
- O director-geral dos aeroportos continua a fazer promessa que não pode cumprir, sentado a uma vasta secretária (limpa de qualquer papel ou utensílio) de costas para uma parede onde pontua uma magnífica fotografia sua emoldurada.
- As autoridades ora dizem que os controladores fazem boicote, ora reconhecem que há falta de pessoal e que é preciso investimento em novos equipamentos.
- Os controladores queixam-se de que há de tudo nas torres de controlo – incluindo gagos e surdos; a maioria não fala Inglês e o Português não é escorreito; todos os controladores militares (a grande parte) são obrigados a fazer outros serviços, como plantões e vigilância em favelas.
- Por ter dado uma entrevista a um magazine de âmbito nacional sem autorização, denunciando parte do que se encontra por detrás do que é visível, o líder da Federação das Associações de Controladores de tráfego aéreo foi condenado a 20 dias de prisão, o que pode agravar ainda mais o estado das coisas.
- Pouco depois, um dirigente da Associação de Controladores Aéreos é preso também por ter concedido uma entrevista a uma estação de rádio.
- Dentro das torres o ambiente de trabalho é péssimo: os controladores não confiam nos oficiais, e estes recusam-se a dialogar porque entendem que a cadeia de comando foi quebrada (pelo presidente da República, Lula da Silva, que tentou negociar directamente com os controladores, tendo sido obrigado a retroceder).
- A comunicação social, para além de martelar o tema diariamente em todos os noticiários, dá espaço aos seus comentadores para expressarem opiniões duras quanto ao que está a passar-se.
- "É um show de incompetência de cima a baixo" – locutor de televisão num dos noticiários da noite.
- Uma autoridade brasileira em aviação afirma num encontro da especialidade no estrangeiro que "nem sequer dominamos a tecnologia básica de comunicação entre o avião e a torre".
- Uma outra autoridade, também nacional, preconiza que nos próximos anos nenhuma aeronave estrangeira das mais modernas poderá sobrevoar o espaço aéreo brasileiro.
- Um especialista suíço que pertence à organização internacional de controladores, chamado ao Brasil para fazer parte da equipa de peritos que investigam as causas do acidente de 29 de Setembro, permaneceu 1 semana no principal centro de controlo de tráfego aéreo brasileiro. Ele classificou os equipamentos como "antigos e ineficientes". Apercebeu-se de que os radares não têm o alcance suficiente para cobrir toda a área de voo, criando, por isso, as chamadas "zonas cegas", em que a comunicação é impossível. Além disso, no sistema informático haverá um erro de programação que altera automática e bruscamente a indicação da distância da aeronave ao solo, para mais ou para menos, sem que o controlador se aperceba disso. Finalmente, o técnico suíço afirma que não tem conhecimento de que este sistema seja utilizado em qualquer parte do resto do mundo. Enfim, parece que não está tudo tão bem quanto o Governo quer fazer crer, bem pelo contrário, está pior, e que os controladores não estão fora da razão.
- A presidente do sindicato dos aeroviários declarou publicamente que não viaja mais de avião; agora só por estrada.
- A ministra do Turismo, em entrevista em que lhe perguntaram quais as recomendações que daria aos turistas para contornarem a questão do caos aéreo, respondeu "Relaxe e goze; depois vai esquecer todos os transtornos". Uma hora depois foi obrigada a emitir pedido oficial de desculpas à população. Na sexta-feira teve de viajar para o estrangeiro e requisitou um jacto da Força Aérea Brasileira.
- O ministro da Fazenda, que só viaja por jacto da Força Aérea, declarou que o que se passa nos aeroportos é fruto do desenvolvimento e da prosperidade do país. "É o custo a pagar pelo crescimento da economia do Brasil", o que levou alguns analistas a pedir que se retorne a estádios anteriores de desenvolvimento.
- O presidente da República dá murros na mesa e diz que quer resolução imediata – sem dizer qual nem como. E tudo continua na mesma.
- O presidente da República dá um "cala a boca" a todos os ministros que não estão relacionados com o caso, para evitar mais desastres verbais.
- Na sexta-feira 22 o presidente da República reúne com o ministro da defesa e com o comandante da Aeronáutica, e em 1 hora toma medidas de emergência:
> afasta 14 sargentos controladores e um coronel que se recusavam a trabalhar com os equipamentos tidos como obsoletos; não aplica punições;
> afasta todas as lideranças dos controladores;
> manda retirar para Brasília controladores de outras bases (mas como, se já há falta de 40% para completar o efectivo?);
> cria corredores aéreos especiais entre Rio de Janeiro e São Paulo;
> e toma outras medidas avulso sem qualquer impacto na resolução dos problemas de fundo – só paliativos para dar a entender ao povão que está a fazer obra.
- À saída da reunião, o comandante da Aeronáutica declara que o momento é de extrema gravidade, e que as medidas que vão ser tomadas poderão criar transtornos. E o cidadão comum pergunta se será ainda possível mais transtornos...
- O presidente da República diz em entrevista de rádio que as denúncias feitas sobre a situação do tráfego aéreo brasileiro são puro terrorismo.
- O presidente da República promete uma gratificação especial "aos controladores que se portarem bem"...
Enquanto isso, a pouca-vergonha nos meios políticos continua, com a revelação de escândalos financeiros que envolvem parlamentares, governantes e familiares do presidente.
A crise no tráfego aéreo brasileiro mais não é do que uma vertente natural de todo este imbróglio que se chama Brasil.