Multas são coisas muito aborrecidas e incómodas, principalmente por duas ordens de razão: uma, é que elas representam um castigo para um comportamento socialmente incorrecto; ora, ninguém gosta de ser repreendido, muito menos castigado, e quando tal ocorre na praça pública o efeito torna-se, então, devastador; a outra é que, pensando bem, a multa evita-se desde que se ponham de lado a preguiça, o desleixo, o não-te-rales e se cumpram as normas, as regras, as leis em vigor democraticamente aprovadas; já tarde é que se compreende isso.
No entanto, por mais irritante que seja a multa, por mais negro o estado de humor de quem cometeu a infracção no exacto momento da aplicação da penalidade, nada justifica e muito menos permite arrumar questões a tiro. Disto se esqueceu o infractor quando puxou o gatilho sobre a mulher-polícia, do mesmo modo que se esqueceu de algumas outras coisas:
- sendo ele, infractor assassino, um agente da Polícia Militar, corporação cujo objectivo é a manutenção da ordem nas ruas, a segurança e a defesa dos cidadãos, e a perseguição e a prisão dos bandidos, deveria ter sempre presente as regras de utilização da arma que aqueles cidadãos lhe confiaram para que ele, como polícia, os defendesse;
- sendo ele um guardião da Lei empossado, deveria ter dado um exemplo de cidadania, estacionando a sua motorizada segundo as normas em vigor;
- sendo ele agente da Polícia, podia ter conversado com a sua colega de ofício, falado ao coração e à razão, identificando-se, desculpando-se, inventando motivos para que ela lhe retirasse a multa; não seria muito curial, mas enfim, é prática constante no Brasil, e, convenhamos, há situações bem piores do que um simples estacionamento de uma moto em contravenção;
- mas se a colega pusesse acima de tudo as suas obrigações profissionais e mantivesse a multa, restava-lhe, ainda, a defesa por escrito, a justificativa, que o órgão superior de Trânsito concede a todo o cidadão por um período dilatado antes da execução da multa.
De tudo isto se esqueceu o polícia infractor assassino. Mas não só disto.
Esqueceu-se do efeito moral de uma jovem mulher-polícia assassinada em poucos segundos no cumprimento do dever por um colega transgressor e incontrolado.
Efeito moral sobre a família dela.
Efeito moral sobre a família dele.
Efeito moral junto do público que cada vez mais confia menos nas suas Polícias.
Efeito moral sobre as duas corporações policiais: os agentes mais novos tornam-se temerosos quando for necessário fazer cumprir a Lei; os agentes mais velhos vêem no acto uma comprovação de que nada os defende, já viram morrer muitos camaradas por causas semelhantes, e os seus olhos ficam ainda mais míopes para a repressão do crime, quando não pactuam mesmo com ele.
Num país civilizado, civilizado no sentido de harmonizado pela prática interiorizada de civismo e cidadania, é impensável a ocorrência de uma cena destas. E se, por um acaso, acontecesse, a revolta da população exigiria – e veria cumpridos! – um rápido julgamento, um castigo exemplar para o assassino, e um inquérito aberto a toda a corporação policial. Aliás, não seria necessária a indignação popular – bastaria a acção da Justiça.
No entanto, no Brasil, a forma cada vez mais comum de resolver diferendos é a eliminação física do opositor, seja com arma de fogo, com arma branca, com pedras, com varapaus, com as mãos nuas ou com veneno.
Assim terminam por todo o Brasil muitas rixas de trânsito, muitas brigas conjugais, muitos casos de adultério, muitos resultados de futebol, muita necessidade de dinheiro devido à fome, à droga, a dívidas contraídas, ao desemprego, a outros desesperos.
O caso de Olinda não é único nem foi o último.
No Brasil, o diálogo esvaiu-se na ameaça, a condescendência mútua esvaziou-se de sentido, e o apelo à Justiça tornou-se uma piada obscena; não se pode falar em Justiça quando grande parte da população tem de sobreviver com 1 salário mínimo (380 reais, 141 euros) por mês, enquanto os parlamentares, os fazedores da Lei, auferem de ordenados e outras mordomias monetárias, no mesmo período, mais de 100 mil reais (37 mil euros), para uma presença nos plenários de 3 dias por semana.
Esta distribuição de trabalho e de renda é uma das principais razões do clima de insegurança, de intransigência e de crueldade que caracteriza a sociedade brasileira.
Os políticos? Esses, nos vagares dos gabinetes de luxo em que pouco trabalham para o Brasil, entretêm-se a cozinhar pequenos e grandes cambalachos por conta do dinheiro dos eleitores, vigarices dignas de monumentos à corrupção, e a preparar depois as respectivas juras de inocência quando os escândalos rebentam.
Entretanto, jovens e velhos polícias vão procurando, se ainda podem, fazer cumprir a Lei, morrendo em cada esquina, num país sem Lei.
À Família Brasileira, permanentemente enlutada por tudo isto, as minhas profundas condolências.