CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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sábado, maio 19, 2007

RESCALDO DE UMA VIAGEM DISPENSÁVEL

Antes de sair do Vaticano para a viagem ao Brasil, Bento XVI já sabia que o presidente da República do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, não aceitaria dialogar sobre a questão do aborto, nem sobre a questão do preservativo – pontos de suma importância para o sumo pontífice, que ele, contrariado, teve de riscar da sua agenda de trabalho.
Decidiu, então, desferir a sua raiva lá do alto, literalmente, do avião a meio caminho entre o Vaticano e o Brasil, defendendo a excomunhão dos políticos pró-aborto sentenciada pelos bispos mexicanos.
Diga-se, entre parêntesis, que se depois dos políticos forem excomungados todas as mulheres que já fizeram abortos, os homens coniventes e o pessoal de saúde que, às claras ou às escondidas, os executam, para não falar já dos membros do clero (eles e elas) que ao aborto recorrem, este planeta poderá, muito em breve, ter de mudar o nome de Terra para Terrífico. Por outro lado, se a excomunhão só atinge os católicos, porque em outras coutadas Bento XVI não mete o bedelho, será de uma grande injustiça não poderem irmanar todos na mesma excomunhão geral, como acontecia na Idade Média, quando o Santo Ofício, vulgo Inquisição, não poupava brancos, pretos, amarelos, cristãos, judeus ou sarracenos. Isto deve constituir uma profunda mágoa para SS Joseph Ratzinger, uma vez que ele foi, durante 23 anos, o chefe máximo da Congregação para a Doutrina da Fé, o nome actual da vivíssima Inquisição.
Mas voltemos à viagem papal.
Logo que soube da reacção pública das mulheres do México e do Brasil, os países com maior número de católicos no mundo, mulheres, muitas delas católicas, que disseram alto e bom som que o aborto é uma questão de consciência, individual, pessoal e íntima, quis dar o dito por não dito através do padre chefe da Sala de Imprensa do Vaticano: Bento XVI, ficámos a saber (devemos ter ouvido mal da primeira vez) não defendeu uma excomunhão oficial (pelos vistos também há excomunhões oficiosas) de todos os políticos que votam em favor de leis abortivas (seria, pois, só de alguns; de quais partidos? Quem? Porquê?). Apenas queria justificar a decisão dos bispos mexicanos (isto é, sem mais artifícios de linguagem, abençoar aquela decisão).
Curiosamente, os políticos de Portugal, onde foram recentemente aprovadas as tais "leis abortivas", não mereceram qualquer reparo do Vaticano. Será porque em Portugal existe um santuário chamado Fátima, que enche todos os anos os cofres do Vaticano com alguns milhões de euros?
Em favor da condenação das "leis abortivas", Bento XVI brindou-nos com algumas afirmações que nos indicam que ou não raciocina bem, ou não vive neste mundo (ou talvez as duas coisas). Vejamos:
· (...) "o que está na lei da Igreja, que expressa nosso apreço pela vida e pela existência do ser humano desde o primeiro momento da vida".
Então, por que SS Joseph Ratzinger não aplica excomunhões, de que parece ter muita fartura lá em casa, aos responsáveis – todos – pelos morticínios devidos à guerra no Iraque, incluindo o assassínio político de Saddam, no Afeganistão, em África; pela fome em África, na Ásia e na América Latina; pelo desrespeito pelos direitos humanos na China, em Cuba, nos EUA, na Rússia, na generalidade da América Latina, em tantos países de África; enfim, por que não faz uma ronda séria pelo planeta de caneta vermelha em punho para ver quem precisa de uma excomunhãozinha? Já agora, de uma só penada, Bento XVI poderia excomungar todos os regimes políticos autoritários do globo. Poderia, mas não pode, quanto mais não seja porque a sua Igreja é um exemplo acabado de autoritarismo. Ela impõe censura intelectual e silêncio, com proibição de falar, escrever e ensinar, aos seus clérigos que querem ter o direito de pensar e de exprimir o pensamento. Veja-se os casos mais recentes do teólogo e escritor brasileiro Leonardo Boff e do teólogo Jon Sobrino, de São Salvador.
· (...) "as raízes das legislações pró-aborto são o egoísmo e o medo(...). A vida é um presente, não uma ameaça".
Então, por que SS Joseph Ratzinger falou à multidão em São Paulo de uma janela do mosteiro de São Bento expressamente blindada para a ocasião? Quem tem medo de quê e de quem?
· (...) "a vida é bonita e não há razão para duvidar disso, ela é um presente mesmo quando vivida em circunstâncias difíceis. É sempre um presente".
Pela tradição histórica da Igreja católica, Bento XVI conhece bem o significado da expressão "presente envenenado". Queira Ratzinger partilhar com alguns aposentados brasileiros da sua idade um casebre no sertão Nordestino, ou, se preferir zona mais citadina, na favela da Rocinha ou no morro do Alemão, com todos os tiros, fome, droga, insalubridade e falta de saúde a que tem direito quem lá vive. Vá! Depois falamos...
Para o diário argentino "La Nación", "a visita do Papa Bento XVI ao Brasil foi um fracasso(...). Nestes cinco dias, Joseph Ratzinger não conseguiu reunir as multidões que se esperava (...) o público de 40 mil pessoas no encontro com jovens no Pacaembu, onde se esperavam 70 mil, e os 150 mil que estiveram no domingo em Aparecida, no lugar do estimado 1 milhão".
Segundo o jornal americano "Washington Post", (...) "em contraste, a polícia estimou que uma parada anual organizada por igrejas evangélicas no ano passado atraiu 1 milhão, uma parada de orgulho gay em São Paulo reuniu 3 milhões, e um show grátis dos Rolling Stones no Rio de Janeiro no ano passado foi visto por cerca de 1,5 milhões de espectadores".
Isto não significa que os católicos se afastaram da Igreja; significa, sim, que a Igreja se afastou dos seus crentes, como, de resto, Bento XVI reconhece: (...)"pediu ao clero latino-americano para alimentar a fome espiritual como forma de aliviar a pobreza [sem comentários] e interromper o constante declínio da Igreja Católica na região" (reportagem do jornal americano "The New York Times").
Tudo isto explica a desesperada pressa do Vaticano, desde fins de 2006, para que o Brasil assine um acordo com vínculo de tratado internacional entre Estados, com destaque para:
· Consolidação de todas as isenções fiscais que recebe.
Isto é, os brasileiros que trabalham são obrigados a pagar os seus impostos; os clérigos, na generalidade improdutivos, usufruem de todos os bens, produtos e serviços do país sem pagar taxas.
· Ensino católico nas escolas brasileiras.
E as outras opções, os Baptistas, os Anglicanos, os Luteranos, os Mórmons, todas as seitas religiosas, os Cristãos Ortodoxos, os Budistas, os Hinduístas, os Judeus, os Maometanos, os Gnósticos, os Agnósticos, os Ateus? De novo a expressão do sectarismo do Vaticano de Bento XVI.
· Autorização para que os missionários possam entrar em reservas ecológicas e indígenas.
O Vaticano quer correr atrás das outras Igrejas e seitas que já lá estão. Esquece-se de que as cruzadas já acabaram, e de que a colonização religiosa do Brasil pelos Jesuítas teve lugar há cinco séculos atrás.
· Reconhecimento de que a Igreja tem plenos poderes sobre sua estrutura de poder e hierarquia.
Por outras palavras, o Vaticano pretende isentar os seus clérigos safados, homicidas, pedófilos, e por aí fora, da justiça civil; ficariam sob a coberta do perdão penitencial da Igreja. O Vaticano parece desconhecer que o Direito Canónico diz respeito à Igreja católica, mas que o Direito Civil atinge todos os cidadãos, com ou sem bênção apostólica.
· Responsabilização do governo pela preservação dos patrimónios da Igreja (capelas, igrejas, mosteiros, catedrais).
Ou seja, para além de não pagar impostos, a Igreja católica brasileira pretende que os edifícios onde granjeia os fundos que a sustenta e que sustentam o Vaticano sejam mantidos pelo dinheiro dos contribuintes (católicos ou não).
A perda de prestígio, de influência e, principalmente, de receitas, a tanto obrigaram o Vaticano, com o risco da humilhação de uma recusa por parte do Brasil.
E o risco cumpriu-se.
O ministério das Relações Exteriores do Brasil devolveu o documento, remetendo todas as questões para a Constituição e para o Código Civil – em boa hora.
Além disso, o presidente Lula da Silva adiantou a Bento XVI, para que não restassem dúvidas, que o Brasil não abria mão de continuar sendo uma república laica.
De tanto se ter afastado da doutrina que lhe deu origem, por via de traições e oportunismos ao longo da História, a Igreja católica, representada, talvez abusivamente, pelo Vaticano, deixou de ser Igreja para se transformar em Estado/Empresa.
Cada vez mais assumido aos olhos do mundo como dogmático, autocrático, silenciador de opiniões diferentes, carrasco, entre outras apreciações, o Vaticano vive no delírio da ressurreição, nos dias de Hoje, no séc. XXI, da mentalidade dirigista e inquisitorial da Idade Média do séc XIII.
Mas se é verdade que o Vaticano não só parou no tempo como retrocedeu, com este papa e o anterior, se é verdade que os progressos conseguidos pelo saudoso Papa João XXIII no Concílio Vaticano II estão a ser desmantelados desde João Paulo II, com a mãozinha do cardeal Joseph Ratzinger, não é menos verdade que o mundo continua a sua marcha, indiferente às ameaças caducas e senis do patrão da Santa Sé.
Os resultados da viagem ao Brasil de SS Joseph Ratzinger, cognome Bento XVI, são uma prova disso.



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