CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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quinta-feira, novembro 09, 2006

A PROPÓSITO DO DIA DO PROFESSOR NO BRASIL

Criou-se o mito de que todo o ensino público no Brasil é mau. Como todo o mito, apesar do fundo de verdade, não corresponde à realidade. Como todo o reducionismo, despreza as excepções que merecem consideração.
Com base neste mito, criou-se outro: o de que todo o ensino particular no Brasil é bom. Também aqui, razões objectivas obrigam a dizer que não é assim. Quando muito, o ensino particular poderá ser menos mau, e, mesmo asim, nem sempre, havendo situações em que a sua qualidade, em muito e de muito perto, se assemelha ao público, quer nos aspectos negativos, quer nos positivos; neste caso, principalmente quando no ensino público se encontram professores empenhados, para quem a sua actividade profissional não visa em exclusivo a obtenção de um salário, mas tem como meta superior o cumprimento de uma missão. Estes não confundem emprego com trabalho.
Se o objectivo da Escola se centrasse na relação ensino/aprendizagem (de ciência, tecnologia, filosofia e cidadania), todo o ensino, público ou privado, seria muito bom. A infra-estrutura, ainda que considerada, com justiça, uma variável a ter em conta, não deve ser classificada como fundamental, nem, muito menos, como prioritária, até para não converter um processo que deverá ser biunívoco e dinâmico em algo de estático, monolítico e rígido. A experiência tem mostrado que o rendimento da aprendizagem numa palhota ou ao ar livre pode ser maior do que numa sala de aula moderna, bem equipada, climatizada e iluminada.
A questão está no ensinar, no ensinar a aprender, e nas condições materiais e mentais criadas para isso no tocante ao elemento humano. Os resultados deveriam ser medidos mais em função do que o estudante – termo preferível ao de aluno – conseguiu aprender por si, do que, unicamente, como se faz, pela quantidade de matéria que decorou, muitas vezes sem qualquer sentido, ligação ou utilidade na sua vida e, por isso mesmo, condenada ao esquecimento a muito breve prazo.
A escola pública gira à volta de um eixo chamado orçamento, pelo qual tem de prestar contas ao Estado, que o atribuiu. Não pensa, sequer, em prestar contas da preparação, melhor, da formação que proporcionou àqueles que, em primeiro lugar, os estudantes e seus responsáveis, nela confiaram quanto ao cumprimento dos objectivos para que foi criada – confiaram assumidamente, ou, por força das circunstâncias, foram obrigados a confiar, o que implica uma responsabilidade acrescida para a escola neste caso. Aquele orçamento é, muitas vezes, comodamente utilizado para "justificar" o insucesso escolar do estabelecimento, quando não de toda a rede.
Mas a linha orientadora das escolas particulares, na generalidade, não é melhor.
Comportando-se como uma empresa privada cujo fim restrito é o lucro, a escola particular perde de vista – se alguma vez a teve – a noção de "papel social". Para ela, aprendizagem é conceito vago, difuso, freqüentemente e, não raro, propositadamente ignorado; e o ensino, mesmo esse, é preterido face ao propósito capital de ganhar dinheiro depressa, à custa da necessidade que sempre acompanhou e há-de acompanhar o ser humano de aquisição de conhecimentos.
As empresas privadas terão de ganhar dinheiro, dir-me-ão. Sem dúvida. A possível discussão não está aí, mas sim na forma como o ganham, na relação custo/benefício que disponibilizam e, conseqüentemente, nos preços que praticam num mercado que, em média, é de baixos rendimentos (a distribuição de rendimentos no Brasil vem em penúltimo lugar no ranking mundial, sendo o último ocupado pela Serra Leoa). Apesar de inúmeros e completamente lotados, os colégios particulares, não é por acaso, lutam com elevados índices de endividamento por parte dos utilizadores.
Por outro lado, se é verdade que todas as empresas desempenham um papel no quadro amplo das inter-relações que ocorrem na sociedade, quer directa, quer indirectamente, a "empresa escola", pelo tipo de actividade a que se dedica, pelo menos nos estatutos, ao perder de vista esse conceito de papel social especial defrauda os destinatários, não obtém, senão artificial e ardilosamente, os resultados esperados nos construtores do futuro e, assim, burla a comunidade no seu todo.
Seria injusto, no entanto, atribuir a culpa pelo estado de coisas, exclusivamente, aos colégios particulares.
Muitos dos "responsáveis" pelos estudantes desses estabelecimentos são completamente alheios ao necessário acompanhamento dos seus "educandos": uns, demasiado ocupados, e alegando que já pagam o suficiente para poder furtar-se a determinado tipo de preocupações, delegam no colégio a responsabilidade única e última pela aprovação ou reprovação, sendo esta rara porque nenhum colégio quer ter na praça a fama de reprovador, mesmo quando isso pudesse resultar da falta de aproveitamento real do aluno; para outros, aqueles que seguem pela vida à procura de permanente oportunidade de exibir um estatuto, o colégio particular, determinado colégio particular à altura das suas posses, ou adequado às suas possessões, constitui mais um elemento de ostentação, como quem só consegue afirmar-se atirando constantemente o saldo bancário à cara dos seus semelhantes; outros, ainda, ingénuos ou com menos instrução, confiam cegamente na publicidade, que eles próprios pagam a partir do momento em que se tornam utilizadores da instituição, e no disse-que-disse sobre exemplos que alguém tem sempre para mostrar, mesmo sem qualquer ponta de verdade, ou feitos de uma verdade deformada.
Assim se torna difícil para os "consumidores da educação" aperceberem-se de que os professores têm, necessariamente, de ser mal pagos, mal pagos em relação à responsabilidade e à dignidade das suas funções, e mal pagos em relação às receitas colhidas pelos colégios junto dos utentes. Mal pagos, antes de mais, porque a ganância do lucro avultado e imediato tanto quanto (im) possível, encontra satisfação num meio de elevada concorrência, não através da qualidade, mas da resignação fácil perante o fantasma do desemprego.
Naturalmente que o processo de selecção e o ambiente onde são recrutados estes "agentes de ensino" conduz à contratação de mercenários – a grande fonte de sucesso financeiro dos colégios particulares no Brasil.
Noutra vertente do processo está o "acantonamento" em sala de aula. Quando as organizações especializadas em pedagogia, não governamentais como estatais, nacionais e estrangeiras, defendem turmas de 15 ou 20 alunos, 25 em casos extremos e excepcionais, as dos colégios particulares apresentam grupos entre 45 e 60.
Que interacção, em termos de crítica, criatividade, trocas de experiências e opiniões, poderá esperar-se em conjuntos de crianças e jovens com tais dimensões? Como poderá um professor, honestamente, "atender", ou seja, prestar atenção personalizada a 45 alunos, na melhor das hipóteses?
Não será de estranhar que o rendimento escolar seja baixo na sala de aula.
Só a falta de sentido crítico de alunos, de pais ou outros responsáveis, e dos próprios professores, é bom dizê-lo, aliada a medo de perseguições e outras represálias, a comodismo e a falta de ética permitem a hipocrisia daninha de aceitar que o ensino no colégio particular é, forçosamente, de qualidade.
Os próprios colégios admitem isso implicitamente, quando, de modo abusivo e sem pudor, "oferecem" aos encarregados de educação, pagando, já se vê, aulas de reforço para os respectivos educandos. Enfiam-se cinco ou seis turmas numa única sala com o professor da cadeira, o mesmo que não consegue obter resultados satisfatórios nas aulas normais, e aí se concentram 300 alunos entretidos a atirar bolinhas de papel uns aos outros, enquanto o professor, por um processo de auto-sugestão, assume a postura de quem consegue tirar as dúvidas que se foram acumulando (que ele próprio deixou acumular) ao longo do seu infeliz magistério.
Outra hipocrisia: se um professor não pode, não consegue com um mínimo de decência e docência, prestar atenção a 45 alunos, muito menos o poderá fazer com 300, além de que nem estará motivado para isso.
Perante os indicadores ruins que se vão projectando nos boletins escolares ao longo do ano lectivo, e de eventuais queixas dos estudantes, os respectivos responsáveis lançam mão do recurso que consiste em contratar para suas casas professores de reforço particulares, explicadores que vão repetindo as matérias das aulas e tirando (ou tentando tirar) as dúvidas que ali nunca foram resolvidas.
Escusado seria dizer que esses explicadores são, por sua vez, professores de colégios particulares na maioria dos casos.
O Dia do Professor poderia ser o momento exacto para reflectir e procurar pistas, meios e vontades para transformar este cenário. Mas não. Tal como outro dia comemorativo qualquer, como, por exemplo, o do comerciante (aqui chamado de comerciário), é o dia tão esperado de não abrir a loja para passar o dia a dormir, ou a bronzear, o que vem a dar no mesmo em termos de desenvolvimento.



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