Eram 16h45 da sexta-feira 29 de Setembro de 2006.
O Boeing 737-800 comercial com apenas 200 horas de voo, recebido pelo fabricante em 18 desse mesmo mês, da companhia brasileira Gol, deslocava-se de Manaus, capital do Estado da Amazónia, para Rio de Janeiro com escala em Brasília onde deveria aterrar às 18h12 com 154 pessoas a bordo, entre passageiros (149) e tripulantes (6). Era o voo 1907.
À mesma altitude e em sentido contrário, um pequeno jacto modelo Legacy com capacidade para 13 pessoas, recém fabricado pela empresa Embraer, do Brasil, aterraria em Manaus para reabastecimento, antes de ser entregue nos EUA aos proprietários que o tinham encomendado, a empresa de táxi aéreo Excel Aire. Para além dos dois pilotos americanos, seguiam a bordo sete passageiros, entre eles Joe Sharkey, repórter e colunista do diário "The New York Times".
O Legacy fracturou e arrancou parte de uma asa e da cauda do comercial, mas conseguiu, apesar de avariado, um poiso de emergência na base aérea da Serra do Cachimbo, em São Félix do Xingu, Estado do Pará, sem vítimas.
O Boeing perdeu estabilidade, começou a soltar partes fundamentais da estrutura, afundou de bico em queda livre e, poucos segundos depois, desintegrou-se na floresta entre o norte de Mato Grosso e o sul do Pará, em plena floresta amazónica.
Eram quase cinco da tarde.
Após as primeiras horas de esperança em sobreviventes, e de notícias contraditórias e desarticuladas, a realidade desapiedada impôs-se: ninguém se salvara.
As equipas de resgate, militares, partiram de imediato. Ajudadas por índios da região, bem conhecedores da mata, durante semanas recolheram restos de corpos, de bagagens, de partes do avião. A pouco e pouco as vítimas foram identificadas pelos Institutos de Medicina Legal – nesta data, apenas um passageiro, ou o que dele é possível, se mantém em local ignorado, algures na floresta.
Ainda antes de ser avançada qualquer hipótese sobre as causas da colisão, o jornalista americano dava duas conferências de imprensa a cadeias de tv nos EUA, queixando-se da periculosidade dos voos no espaço aéreo brasileiro, por falta de segurança nas comunicações, em particular na região da Amazónia.
As autoridades brasileiras repudiaram as afirmações do sr. Sharkey, alguma imprensa insurgiu-se contra ele, pilotos vieram a público dizer que nunca tinham tido problemas, mas outros reiteraram, com firmeza, a existência de uma zona cega naquela área que já lhes criara dificuldades de contacto com as torres de controlo do percurso durante as viagens.
Nada de seguro e concreto foi comunicado à opinião pública pelos responsáveis na matéria, para além da referência à possibilidade de ser dado conhecimento à sociedade do relatório de apuramento das razões do acidente, mas nunca antes de 90 dias.
Os funerais começaram a realizar-se com grande destaque nos noticiários da televisão, e, paralelamente, as acções judiciais de pedidos de indemnização por parte das famílias, tanto à transportadora brasileira como à proprietária do jacto executivo, porque, entretanto, foi posta a correr a notícia de que a responsabilidade cabia aos pilotos americanos – até agora sob custódia das autoridades brasileiras, e impedidos de deixar o Brasil – na medida em que teriam desligado o detector de aproximação de outra aeronave, não teriam respondido à chamada de uma torre de controlo, e não teriam respeitado a altitude imposta pelo plano de voo.
Neste momento é confusa a situação quanto às verdadeiras responsabilidades: as caixas negras dos dois aparelhos, dos últimos despojos a encontrar, estão ainda no Canadá em fase de descodificação por peritos desse país acompanhados por uma equipa de brasileiros; foi referido que o sistema de detecção de colisão iminente que equipa os Legacy apresenta deficiências, pelo que teria sido substituído por outros mais fidedignos nos aviões europeus; as declarações dos dois pilotos americanos são, por vezes, contraditórias entre si e com as de alguns passageiros;as próprias autoridades brasileiras vão deixando cair pingos de informação que de nada servem senão para criar maiores dúvidas.
Por coincidência, ou não, nos dias seguintes novos acidentes, alguns também com vítimas, embora em número reduzido, tiveram lugar entre a aviação brasileira, mas, de certa forma, ofuscados pela tragédia recente.
À medida que o tempo foi passando e que comentários e teorias se multiplicaram nos órgãos de comunicação social, começaram a surgir alusões ao papel dos controladores de tráfego aéreo que, no Brasil, funcionam sob jurisdição militar e dependentes do ministro da Defesa. Sentindo que estavam a ser acuados e a sua competência a ser posta em causa, romperam o cerco e vieram para a praça pública, através dos seus representantes laborais e de testemunhas não identificadas, expor as misérias da profissão: salários baixos, regime militar, ausência de carreira profissional, sobrecarga de trabalho e número limite de aviões a controlar largamente excedido.
Depois do acidente com o Legacy e o Boeing registou-se um AVC (acidente vascular cerebral) em serviço, ataques de vómitos e crises de choro em várias torres de controlo do país.
Dez controladores entraram de atestado médico e dez que estavam de serviço no dia do acidente foram afastados.
Para evitar outros acidentes de profissão, e sem jeito para representar o papel de bodes expiatórios, os controladores de tráfego aéreo desencadearam a "operação padrão" que consiste em controlarem em simultâneo apenas o número de aviões definido no regulamento – 14.
Esta medida provocou o caos no tráfego aéreo brasileiro, tanto no ar como em terra. A situação agravou-se com a aproximação do fim-de-semana prolongado (chamado feriadão) pelo feriado no Brasil do dia 2, dia de finados.
Controladores reformados tiveram de se reapresentar ao serviço.
O presidente Lula, alarmado, convocou no dia 31 de Outubro um gabinete de emergência composto por alguns ministros e colaboradores próximos para encontrarem uma solução imediata. E a solução chegou às páginas dos jornais em grandes manchetes no dia seguinte: "Governo não garante aviões no feriadão".
Ora aí está uma decisão governamental firma.
Como dizia um passageiro brasileiro revoltado num aeroporto: "Fazer o quê? Isto é Brasil".
No telejornal da noite podia ver-se Lula e amigos numa praia paradisíaca de uma base naval da Bahia, a descansar ao sol. Do esforço da decisão, obviamente...