CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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quinta-feira, outubro 26, 2006

CRIME ORGANIZADO NO BRASIL

De há uns tempos a esta parte, uma nova forma de crime organizado tem feito a sua aparição em força no meio político, com origem e desenvolvimento nesse meio.
Várias crónicas já aqui foram dedicadas ao assunto.
Noutro ponto da teia social, o crime organizado do pé descalço (que passou a calçar caro), do miserável (que passou a milionário) partilha com aqueles, embora de outra forma, a influência no condicionamento do comportamento dos cidadãos.
Na manhã do dia 12 de Agosto último, um jornalista de TV e um técnico da sua equipa foram sequestrados em São Paulo, a cidade mais populosa do Brasil, por elementos da facção criminosa que se intitula "Primeiro Comando da Capital" (PCC).
Para a libertação, os sequestradores exigiam da Rede Globo de televisão a divulgação de um vídeo gravado em DVD, em que eram expressas críticas ao sistema penitenciário, se pedia revisão de penas e melhoria das condições de encarceramento, e se manifestava o repúdio pelo Regime Disciplinar Diferenciado, prática adoptada nos presídios de segurança máxima, principalmente, para com presos de alta periculosidade, traduzida por um isolamento total, quase permanente.
A emissora cedeu, e a mensagem foi difundida para todo o Brasil, passavam 30 minutos das zero horas do dia 13. Os dois homens estavam libertos sem sevícias em 40 horas.
O texto, lido, ao que se supõe, por um integrante do PCC, revelava, salvo uma ou outra rara palavra mal utilizada, não ter sido obra de analfabetos ou de gente de baixa cultura, mas, ao contrário, de pessoa ou pessoas bem conhecedoras não só do ambiente prisional, mas de vários aspectos da legislação, capazes de expressar esses conhecimentos por escrito com argumentação de natureza jurídica.
"O PCC é uma organização pré-mafiosa que difunde o medo e desprestigia o Estado em busca de vantagens".
A afirmação pesada é de Walter Fanganiello Maierovitch, um juiz de 54 anos, ex-responsável pela Secretaria Nacional Anti-Drogas e ex-representante brasileiro no departamento de combate às drogas da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Aposentado, ele monitora o movimento do crime organizado em todo o mundo, a partir de sua casa, onde está sediado o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Giovanni Falcone (IBGF), por ele criado e dirigido.
O Instituto, com ligações à Fundação Falcone, da Itália, foi fundado pouco depois do assassinato, num atentado, do juiz italiano Giovanni Falcone, um incansável investigador e perseguidor da máfia italiana.
A principal missão do Instituto é a denúncia de actividades do crime organizado e o esclarecimento da sociedade sobre a forma adequada de actuar. Está ligado em permanência a uma rede internacional de ONG's e outras instituições com os mesmos objectivos.
O PCC, criado na década de 90 para, pretensamente, defender os direitos dos presidiários brasileiros e combater a opressão dentro das cadeias, revelou-se, na prática, um grupo de malfeitores, bem organizado, que desencadeia motins dentro das prisões e actos de terrorismo urbano nas ruas.
Surge pela primeira vez em 31 de Agosto de 1993, na penitenciária de Taubaté, considerada na época a mais segura do Estado de São Paulo, a 130 km da capital, para onde eram transferidos os presos considerados particularmente perigosos. Chamava-se, então, Partido do Crime, fundado por oito presos durante uma partida de futebol em que uma briga matou oito detidos.
Em Fevereiro de 2001 tornou-se seu líder um tal "Sombra" que, por telemóvel (no Brasil chamado celular) coordenou uma revolta simultânea em 29 cadeias paulistas, de que resultou a morte de 16 internos. Numa luta pela chefia, cinco meses depois, "Sombra" é espancado até à morte. Assumem a direcção "Geleião" e "Cesinha" que fazem uma aliança do grupo com outro de iguais objectivos sediado no Rio de Janeiro: o "Comando Vermelho", liderado por um dos traficantes de droga mais procurado de todos os tempos, no Brasil e nos EUA, "Fernandinho Beira-Mar", senhor de uma fortuna superior a 40 milhões de dólares, hoje encarcerado numa prisão de segurança máxima.
Da penitenciária onde estavam detidos, aqueles dois fundadores do PCC coordenavam acções violentas contra edifícios públicos e autoridades do sistema prisional. Eram considerados radicais pela corrente "moderada" da organização; e, em Novembro de 2002, após uma guerra interna pelo poder entre as respectivas mulheres, foram apeados e jurados de morte por, alegadamente, terem feito denúncias à polícia.
"Cesinha", considerado pelos próprios colegas um psicopata, e condenado pela Justiça a 144 anos de prisão por homicídio e roubos, contaminado com SIDA/AIDS por uso de seringas com que injectava a droga, quase catatónico, foi assassinado no presídio em que se encontrava.
"Geleião" ainda vive, à base de antidepressivos, numa cadeia de segurança máxima, onde, até ao ano passado, fazia 2000 flexões de braços diariamente. Cumpre pena de 62 anos por homicídio, roubo e estupro.
Os Estatutos do PCC, com 16 itens, defendem "lealdade, respeito e solidariedade" entre os seus membros, e pugna pela luta por "liberdade, justiça e paz" dentro das cadeias brasileiras, em especial as de São Paulo.
Um dos seus objectivos principais é promover rebeliões para "desmoralizar" o governo, e destruir a cadeia de segurança máxima de Presidente Bernardes, que todos os membros do PCC temem.
Um juiz-corregedor que dirigiu esta penitenciária foi assassinado em 2003. Aqui os presos passam 22 ou 23 horas na cela individual, sem jornais, revistas, rádio e televisão, e privados de visitas íntimas (mulheres, namoradas, amantes ou prostitutas). Os contactos com os advogados são feitos apenas por interfone.
No seu ponto 7, os Estatutos prevêem que os integrantes, presos ou em liberdade, devem contribuir para o grupo, sob pena de "serem condenados à morte sem perdão". Os "irmãos" (integrantes do grupo) detidos pagam uma quota mensal de 50 reais (1 real vale cerca de 0,36 euros); os livres pagam 500 e um dízimo percentual sobre os lucros da venda da droga. Para além destas fontes, há integrantes que financiam acções ilegais.
Com o dinheiro subornam guardas prisionais e outros agentes da autoridade, compram armas e droga, e pagam acções de resgate de presos que fazem parte do grupo. Também cobrem as despesas com apoio jurídico, sendo certo que os seus advogados (alguns deles membros do PCC), servem de elo de ligação entre os de dentro e os de fora na passagem de informações e instruções de actuação.
Para entrar no grupo, o bandido tem de ser "baptizado", isto é, apresentado por um que já faça parte da organização, e comprometer-se a cumprir os Estatutos.
A meio deste ano, o Estado de São Paulo, em particular a capital, com o mesmo nome, a maior cidade da América Latina, viveu em ambiente de terror durante semanas, sem que o governo conseguisse controlar a situação: ataques, com armas de fogo e granadas, a bancos, esquadras de polícia (delegacias), viaturas policiais, edifícios ligados à Justiça, agentes da ordem e bombeiros, e fogo posto em 80 veículos de transporte colectivo, com 115 mortos e número indefinido de feridos em todas estas acções, principalmente polícias. Os desacatos só cessaram após negociações do governo do Estado com os bandidos. Os prejuízos materiais, não falando nos humanos, atingiram alguns milhões de reais, directa ou indirectamente.
O cérebro e comandante actual de toda esta organização é Marcos William Herbas Camacho, de 38 anos, conhecido como "Marcola". Está preso por assalto a bancos e carro-forte, homicídio e sequestro, condenado a 44 anos de reclusão.
Este homem silencioso, avesso à ribalta da comunicação social, que a polícia raramente apanha em conversas telefónicas, vive revoltado porque lhe mataram a mulher com dois tiros na nuca, na decorrência de lutas internas, jogos de poder entre mulheres do PCC.
Filho de pai boliviano e mãe brasileira, iniciou-se no crime com nove anos, praticando pequenos furtos no centro da cidade de São Paulo.
Após ter reprovado duas vezes no 7º ano de escolaridade, abandonou os estudos e tornou-se colega de "Cesinha" que o introduziu no PCC.
"Marcola" tem um irmão, Alexandro Camacho Júnior, de 34 anos, preso pelo departamento de Narcóticos.
Ambos são irmãos de Gabriel Herbas Camacho, deputado do MAS, o partido do presidente da Bolívia, o cocaleiro Evo Morales.
"Marcola" comanda um verdadeiro exército de bandidos subjugados pela violência e pelo medo, dentro e fora das cadeias, com uma arma tão simples quanto eficaz: o telemóvel (celular). Para os "bem comportados" há algumas ajudas com alimentos, advogados e transporte para visitas. Para os outros, a implacável condenação à morte.
A principal actividade dos membros do grupo é o narcotráfico. São 6 mil os seus integrantes registados, e um número bastante superior de delinquentes encarregados de trabalhos menores. Crê-se que a maior parte dos 115 mil presos de São Paulo está envolvida com O PCC.
"Marcola" já passou metade da vida na cadeia, onde fez o 8º ano de escolaridade. Gaba-se de ter lido 3 mil livros, e cita trechos de cor, até de Dante. É considerado pelas autoridades que com ele têm privado como detentor de inteligência excepcional. Prima pela boa educação e pela boa apresentação.
Em entrevista dada a uma revista, em 23 de Maio deste ano, diz: (...) "eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível... (...) Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo... Nós somos o início tardio da vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão... (...) Solução? Não há mais solução, (...) A própria ideia de solução já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento económico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma 'tirania esclarecida' que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice (...) e do Judiciário que impede punições. Teria de haver uma reforma radical do processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até conference calls entre presídios...). e tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa mudança psico-social profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não há solução. (...) Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar e me matar... mas eu posso mandar matar vocês lá fora... Nós somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba... (...) Vocês, intelectuais, não falavam em luta de classes, em 'seja marginal, seja herói'? Pois é: chegamos, somos nós! (...) Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó (...) Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivada na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias (...) Estamos diante de uma espécie de pós-miséria. (...) A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares [telemóveis], Internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie social, são fungos de um grande erro sujo. (...) Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem US$ 40 milhões, como o Beira Mar, não manda? Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro? (...) Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila, é despedido e jogado no 'microondas'... (...) Peguem os barões do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? (...) Não há perspectiva de êxito... Nós somos formigas devoradoras, escondidas nas brechas... A gente já tem até foguete anti-tanques... (...) P'ra acabar com a gente, só jogando bomba atómica nas favelas... Aliás, a gente acaba arranjando também 'umazinha', daquelas bombas sujas mesmo... Já pensou? Ipanema radioactiva? (...) Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem de defender a 'normalidade'. Não há mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria incompetência. (...) Estamos todos no centro do insolúvel. Só que nós vivemos dele e vocês... Não tem saída. Só a merda. E nós já trabalhamos dentro dela. (...) não há solução (...) Porque vocês não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o divino Dante: 'Lasciate ogna speranza voi che entrate!' [referência aos que chegam às portas do inferno]. Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno".
Venerado pelas mulheres, a sua alcunha dentro da prisão é "Playboy" ("Marcola" é nome de guerra).
Ao contrário de outros chefões, "Marcola" troca de namorada com alguma frequência, o que é fundamental para iludir a Justiça, já que as namoradas transportam informação e instruções (bem como droga, armas e telefones, com a conivência da polícia corrupta) de e para o exterior.
A sua actual namorada, Cíntia, de 22 anos, foi seleccionada entre familiares dos presos. A escolha dá-lhe prestígio, conforto, roupas de marca e dinheiro, muito dinheiro.
As mulheres dos chefes recebem entre 15 mil e 20 mil reais por mês para gastos pessoais (o salário mínimo é de 350, com que vive grande parte da população) e a cada mês ou mês e meio uma substancial verba acrescida, espécie de "prémio de produtividade".
Mas a maioria das mulheres passa mal, vive rodeada de filhos e dificuldades, e é controlada rigidamente de dentro da cadeia onde estão os seus homens.
"Marcola" casou uma vez com a advogada Ana Maria Olivatto. Por causa de disputas internas pelo protagonismo e o lugar de primeira-dama, as mulheres de "Cesinho" e "Geleião", então líderes do grupo, envolveram-se num conflito em que uma desautorizava as ordens da outra (sequestros, atentados à bomba, assassinatos). Ana Maria programou, então, um encontro com os respectivos maridos presos, para os pôr ao corrente da situação. No ano passado, com 45 anos, foi assassinada com dois tiros na nuca quando saía da garagem de sua casa, ao que consta a mando da mulher de "Cesinha".
"Marcola" decretou luto no presídio e silêncio absoluto. O assassino, irmão da mandante, foi executado.
Mas há quem veja na morte de Ana Maria a mão da mulher do "Geleião", casada com ele há 25 anos, Petromília, a "Petrô", de 51 anos, mãe de um adolescente, mulher exuberante, cabelo pintado de ruivo, personalidade marcada por determinação e comando forte.
Dois dias antes daquele homicídio, "Petrô" preparava-se para fazer saltar a Bolsa de Valores de São Paulo, no centro da cidade, local por onde transitam diariamente 2 milhões de pessoas, por meio de um carro com uma mala transportando explosivos capazes de matar num raio de 30 metros. Ana Maria terá tentado dissuadi-la do intento, e poderá ter sido classificada de traidora.
Tanto "Petrô", mulher de "Geleião", como "Netinha", de 33 anos, viúva de "Cesinha", estão presas e juradas de morte pelo PCC.
"Petrô" era viúva de um militar e fazia trabalho voluntário para a Igreja Católica. Foi assim que conheceu "Geleião", distribuído alimentos na cadeia onde ele se encontrava.
"Netinha" também conheceu o marido na cadeia. Emigrante do Nordeste, era mulher de outro preso de quem apanhava sovas monumentais. O líder do PCC interveio, e "Netinha" mudou de marido. No entanto, não ganhou com a troca: um dia saiu da visita íntima com uma perna e um braço quebrados. Foi ela que acabou com a liderança do marido no PCC quando ele passou ao isolamento e ela ficou impedida (e desobrigada) de o visitar.
O seu passado mergulha cedo no crime. Violentada ainda criança, o irmão vingou-a, matando os estupradores. O mesmo irmão que assassinou a mulher de "Marcola" e que foi, por sua vez, executado pouco depois.
Só quando terminou toda esta guerra de saias é que "Marcola" chegou à liderança máxima do PCC.
Hoje na prisão ele lê "A Arte da Guerra", o célebre livro que o filósofo chinês Sun Tzu escreveu há 2500 anos. Vai ser-lhe, com certeza, muito útil. Afinal, em segurança máxima ou não, em isolamento ou não, "Marcola" continua a ser o grande chefe, embora o negue.
E a pergunta mantém-se: "Será o Brasil um Estado de Direito?".



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