A conceituada "Veja", revista semanal brasileira de grande circulação, no seu número de 31 de Maio p. p. traz uma crónica da escritora Lya Luft, com o título "Vamos fazer de conta".
Desconhecida para mim no campo da ficção do Brasil, deixou de o ser como cronista; e, com a devida vénia, transcrevo parte de um seu parágrafo em que diz estar tão optimista quanto as autoridades, para quem tudo vai bem, excelente, mesmo quando "aqui e agora, não se sabe de nada, não se explica nada. Nem de onde vieram nem para onde foram os bilhões roubados, que poderiam ter tornado realidade" os sonhos que ela acalenta com o seu optimismo.
E assim o Brasil vai fazendo de conta que se deixa enganar, que ignora o que há muito tempo sabe, enquanto finge, ora angustiado, ora indiferente, que sabe, o que, na verdade, desconhece.
E se há coisas que não sabe, que não consegue descortinar, uma delas é a razão por que ninguém, nem mesmo o presidente da República, consegue pôr cobro à descarada, indecente e obscena corrupção que dita o comportamento pessoal e político da classe dirigente do Brasil que, por contaminação, arrasta para o mesmo tipo de comportamento outros sectores da sociedade brasileira, desde o servente de pedreiro ao grande empresário, passando pelos vários patamares da função pública, tanto no legislativo, quanto no executivo e no judicial.
A esta grande interrogação, o brasileiro agrega outra que a completa: ninguém consegue modificar este estado de coisas, ou ninguém quer, por tirar dessa situação gordos benefícios?
Uma coisa, porém, o brasileiro sabe: dolorosamente sabe que todos os dias é roubado por aqueles em quem depositou a confiança do voto esperançado numa transformação das relações pessoais e institucionais na sociedade brasileira.
Se não sabe em detalhe para onde foi e continua a ir, apesar de todas as denúncias, esse dinheiro, sob a forma de notas de banco ou de bens, isso não é muito importante. A ideia que tem sobre o assunto, a partir da imagem exuberante que os senhores do Poder transmitem é suficiente para se revoltar. Mas, logo de seguida, dona Impunidade o obriga a retroceder, virar costas, dar de ombros, e fazer de conta que está tudo bem.
É nessa perspectiva que a cronista diz "faço de conta que tudo é farra, minha alma já está na Copa [campeonato do mundo de futebol], assim ignoro que a cidade se debate na insegurança, o estado na pobreza, o país na esculhambação geral e nós na desesperança".
E assim vai rolando o país do faz de conta.
Permito-me acrescentar: faz de conta que a maioria dos noticiários da tv são isentos, imparciais, objectivos, que revelam tudo o que é importante e deve ser do conhecimento público, que nada escondem a pedido/imposição dos grupos de pressão, que desprezam o insignificante e o popularucho, que 80% das notícias não são consagradas, com pompa e circunstância, ao mundial de futebol; faz de conta que os bancos não vão ter horários de funcionamento diferentes por causa dessa Copa; faz de conta que o país Brasil, já de si lento, modorrento, preguiçoso, não vai quase parar de todo por causa desse tal campeonato do pontapé na bola; faz de conta, mesmo que não haja mais nada para fazer de conta, que tudo é limpo, são, escorreito, transparente, até no futebol.
Faz de conta que o futebol não vai ser a única razão de viver deste povo durante um mês, pelo menos.
Faz de conta que, em Outubro próximo, nas eleições que aí vêm, o povo vai votar, não pelo saco de cimento ou pela dúzia de tijolos, mas por uma mudança radical da sua vida, escolhendo políticos honestos, com vontade de servir o seu país – fazendo de conta que ainda os há, bem entendido.
Faz de conta...
Bem, para evitar a depressão, vamos todos fazer de conta que se pode fazer de conta.