CADERNO DE VIAGENS - suplemento de "Aparas de Escrita"

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segunda-feira, maio 07, 2007

A SANTA INQUISIÇÃO VAI AO BRASIL

Três semanas antes da visita de Joseph Ratzinger, SS, cognome Bento XVI, as estações de televisão do Brasil divulgaram uma estatística do Vaticano, supostamente baseada em dados de 2005, segundo a qual o Brasil teria um número de católicos de 86% (o que corresponderia, aproximadamente, a 176 milhões de pessoas). A mesma notícia prometia que o relatório vaticanense seria publicado na íntegra em quatro dias. Passado quase um mês, tal relatório ainda não apareceu.
Na mesma data, o fidedigno IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) registava pouco mais de 70% de católicos, de acordo com o último censo credível sobre a matéria, o de 2003.
No passado dia 3, foi publicada a conclusão dum inquérito feito a nível nacional por uma empresa da especialidade e credenciada no Brasil: os católicos estarão na faixa dos 65%, e, desses, 46% nem sequer conhecem o nome do papa.
Então, várias questões se colocam:
1. Onde, quando, como e por quem foram colhidos os dados que teriam servido de base ao "trabalho estatístico" do Vaticano?
2. Quais os parâmetros para a definição de "católico? Algumas hipóteses possíveis:
· os baptizados; em 99,9% dos casos são crianças sem qualquer poder de decisão e alheias a tudo que não seja mais do que as suas necessidades fisiológicas básicas;
· os casados pela Igreja; na maioria escolhem esse cenário de pompa e circunstância como auto-promoção nos órgãos de comunicação social, ou, os mais modestos, como meio possível de destaque dentre os quase iguais da sua colectividade;
· os da primeira comunhão, comunhão solene e crisma; para estes, a cerimónia vale, acima de tudo, pela festa que vem a seguir; e para as famílias e convidados também;
· funeral católico; aqui funciona, em primeiro lugar, a tradição urbana, a repugnância de ter um morto em casa, o medo supersticioso, e a opinião pública;
· a missa dominical; quantos são, como são, por que estão, ninguém sabe.
3. Por que o prometido relatório para daí a quatro dias, que esclareceria tudo isto, nunca foi publicado?
Outras perguntas se impõem:
· Porquê esta "revelação" estatística do Vaticano, tão desacertada, para não dizer mentirosa, em vésperas da visita de SS Bento XVI?
· Se for (ou fosse) tamanha a fidelidade da gente do Brasil ao Vaticano, por que se daria SS ao trabalho e à despesa, que não é pouca (embora a maior parte seja por conta do pobre país visitado) de se deslocar a terras brasileiras?
· Porquê SS visita apenas alguns dos grandes centros urbanos do Brasil, deixando para lá, deliberadamente, os sertões, as terras secas e famintas, o chão dos miseráveis, dos defavorecidos pela política e por uma Igreja que do alto dos seus tronos opulentos enxota os pobres, as terras esquecidas dos turismos papais?
Se a percentagem de católicos apregoada pelo Vaticano para o Brasil fosse essa, segundo a lógica do Vaticano SA não faria sentido a deslocação de SS Joseph Ratzinger ao Brasil.
Aliás, o Vaticano nunca esclareceu de uma forma concreta e/ou apostólica quais os motivos da visita de Bento XVI a este país da América Latina.
No entanto, para quem tenha seguido com atenção o percurso da Igreja católica desde João XXIII, a questão não será tão obscura assim.
Quando o actual chefe do Vaticano foi eleito pelo Colégio dos Cardeais, ou melhor, confirmado no cargo que vinha exercendo na sombra, a primeira visita oficial foi à Alemanha. Por ser sua terra natal? Isso terá servido de pretexto. A verdadeira razão centrava-se no afastamento das igrejas, por parte de uma preocupante percentagem de católicos alemães. Vindo da Alemanha, um país rico, tal afastamento representava uma espectacular quebra nas receitas do Vaticano.
A viagem do papa à Alemanha, visava, pois, repor a solidez financeira das dádivas dos católicos alemães. Missão que acabou por originar um incidente diplomático, um grave conflito com o mundo islâmico, o segundo em menos de dois anos de papado, quando Joseph Ratzinger, demagogicamente, ao tentar reconquistar adeptos, foi ao encontro dos sentimentos racistas dos alemães a quem se dirigia.
De igual modo é a óptica contabilística que o leva ao Brasil.
Malgrado o pregão triunfalista do Vaticano sobre a percentagem de católicos no Brasil, é sabido que, neste país, igrejas e seitas religiodas nascem como cogumelos no chão húmido.
Em qualquer vão de escada ou fundo de quintal, todos os dias aparece um novo culto cujos "pastores", na maioria sem qualquer tipo de preparação mas com esperteza que sobra, viram aí uma forma cómoda de sobreviver sem trabalhar. Tão bem sobreviver que muitos fizeram fortuna; e, alguns, de tal forma ostensivamente criminosa que acabaram na cadeia, acusados de formação de quadrilha, falsidade ideológica e exportação ilegal de divisas.
Num país de fome, doença, miséria, com a pior distribuição de rendimentos do mundo (à excepção da Serra Leoa, que acabou de sair de uma guerra civil de 10 anos), onde os muito ricos são poucos e os muito pobres são a maioria, onde os órgãos do Poder são formados por gente apenas interessada no seu próprio enriquecimento, a esperança de dias melhores centraliza-se na religião. Se a católica não cumpre o compromisso nem dá esperança, outras vão tomando o seu lugar, com propostas novas, embora do mesmo modo sem consequência para a qualidade de vida material e espiritual dos fieis.
E é essa sangria diária de milhões de cifrões que preocupa o presidente director-geral do Vaticano SA.
Por isso aí vai ele ao Brasil, para separar o trigo (a Igreja católica) do joio (as igrejas e seitas concorrentes).
Por outro lado, ele vai também como guardião "da moral e dos bons costumes", ou não fora, durante 23 anos, o patrão da Congregação para a Doutrina da Fé (o novo nome da tenebrosa Inquisição), ou seja, o Inquisidor-mor.
Nessa qualidade, reprimiu tudo o que era teólogo que saísse da sua linha de doutrina rígida, medieval; proibiu a livre expressão do pensamento filosófico e teológico de membros do clero que ousassem pôr em causa os cânones instituídos; condenou sem remissão todas as denominações cristãos foragidas da Igreja católica, incriminando-as de não serem igrejas verdadeiras.
Durante os muitos anos da prolongada doença do reaccionário João Paulo I, foi Joseph Ratzinger quem cuidou dos negócios do Vaticano. Nessa época a pastoral da Igreja católica começou a mostrar-se ainda mais retrógrada e monolítica, a ponto de se pôr em bicos de pés para proibir o livro "O Código da Vinci"; não o conseguiu, mas impôs aos seus fieis que não o lessem – o que constituiu uma excelente publicidade para o livro, diga-se de passagem.
É esta personalidade que visita o Brasil, na dupla função de cobrador de impostos e zelador das virtudes no comportamento.
E a lógica das virtudes é, ainda, a do cifrão.
Como inquisidor, SS Bento XVI aproveitará para dar uns puxões de orelhas aos bispos da Conferência episcopal brasileira por não se terem empenhado para erradicar da comunicação social, da publicidade e das instituições o aconselhamento do uso do preservativo.
Num país de grande liberalidade sexual como é o Brasil, onde o deboche tem a sua prática permitida (quando não mesmo subrrepticiamente estimulada) em época própria, o Carnaval, a "camisinha" é o veículo para uma desestruturação familiar ainda maior do que a que já existia.
Bento XVI não concebe a Família fora dos padrões da família nuclear, una e indivisível, mesmo que todos andem ao tabefe dentro de casa. Não só não aceita como condena segundos casamentos (terceiros e quartos, impensáveis, são obra demoníaca). Não só não aceita como condena famílias homossexuais, e de forma muito particular, com filhos.
Por tudo isto as famílias não canónicas se afastaram de uma Igreja que as escorraçou, que não as quis compreender e integrar, que as estigmatizou e rotulou perante o mundo, o mundo que começa no bairro onde se vive.
Tais famílias marginalizadas deixaram de pagar o dízimo, e de fornecer vocações para os seminários – locais de formação de futuros cobradores de dízimo por delegação.
Esta é a outra vertente das preocupações financeiras de Ratzinger.
Esta é outra das razões da visita papal ao Brasil.
Mensagens novas Bento XVI não apresentará, já porque não as tem, já porque esse não é o seu objectivo na viagem.
Ao que se diz, vai canonizar um santo brasileiro.
Folclore.
Mas que mais se poderia esperar de um chefe de uma Igreja que há muito cultiva o ritual por não ser capaz de – ou não querer – coerentemente, com resultados práticos, se colocar ao lado dos tristes e infelizes contra a arrogância das injustiças?



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