Muito se encontra ainda por esclarecer e por divulgar quanto ao que acontece nos céus do Brasil, mas o que se passa no dia-a-dia das salas de espera e de embarque dos aeroportos já dá para ter uma ideia do caos em que se tornou o tráfego aéreo brasileiro.
Até aqui, os passageiros do ar viajavam com a serena e inocente confiança que proporciona a ignorância do perigo. As coisas mudaram no dia 29 de Setembro, quando um pequeno jacto táxi-aéreo da classe Legacy, para 13 pessoas, colidiu com um Boeing 737 que acabou por se despenhar na floresta amazónica, resultando daí a morte dos 154 ocupantes.
Mesmo sem que se tenha iniciado qualquer inquérito, foram atribuídas responsabilidades aos pilotos do pequeno jacto, dois americanos que conduziam o aparelho comprado no Brasil a um fabricante brasileiro. Muitas e variadas foram as acusações veiculadas pela comunicação social: que não respeitaram o plano de voo, que não responderam aos pedidos de comunicação da torres de controlo, que desligaram o equipamento anti-colisão, o mesmo que, ao mesmo tempo, permite obter em cada instante o posicionamento do avião, e, finalmente, que fizeram manobras radicais.
Nem todas as acusações, estas e outras, foram ainda cabalmente provadas.
Os pilotos ficaram retidos no Brasil até que, cerca de dois meses após o acidente, puderam regressar aos EUA depois de ouvidos pela primeira vez pela Polícia Federal que os indiciou por responsabilidade na morte das 154 pessoas que seguiam no Boeing.
Ao mesmo tempo, tentou-se justificar, em parte, o acidente pela má qualidade da aparelhagem anti-colisão do Legacy, que teria sido já substituída por outros equipamentos nos aviões europeus.
Também isto não ficou provado.
A catadupa de explicações que encharcaram a comunicação social antes de qualquer inquérito sério, rigoroso, técnico, concludente devem-se, por uma lado, à avidez de notícias em primeira mão por parte dos órgãos de informação; por outro, à tentativa de abafar o impacto das entrevistas dadas a cadeias de televisão americanas pelo repórter e colunista do diário "The New York Times" Joe Sharkey, um dos passageiros do Legacy. O jornalista denunciou a existência de "zonas cegas" no céu brasileiro, onde as comunicações entre aviões e torres de controlo seriam difíceis e, nalguns casos, impossíveis, tornando as viagens pouco seguras. O local onde se deu a colisão entre os dois aparelhos seria uma dessas zonas cegas.
O governo brasileiro considerou mentirosas e irresponsáveis as declarações de Sharkey. Mostrou-se melindrado com os americanos, e argumentou que a sua pretensão seria a de ilibar de culpas os dois patrícios que conduziam o táxi-aéreo.
Mas logo de seguida surgiram depoimentos de comandantes de voo brasileiros, confirmando dificuldades e impossibilidades pontuais de comunicação no espaço aéreo do Brasil.
Foi então que começaram a circular algumas insinuações sobre uma duvidosa competência dos controladores de voo.
Sentindo-se feridos na sua dignidade profissional, os controladores vieram, então, para a praça pública lavar a roupa suja que já não cabia em casa. Foi assim que a população ficou a conhecer as misérias dessa profissão no Brasil: salários baixos, militarização da actividade e controlo de aviões em número muito superior ao aconselhado pelas organizações internacionais especializadas foram as queixas mais em evidência.
O Governo não gostou, tanto mais que os controladores de tráfego aéreo estão sujeitos ao regime militar, e colocou-os em prontidão permanente por tempo indeterminado, sem permissão de abandono dos postos de trabalho – as torres de controlo.
Impossibilitados de fazer greve devido ao foro militar da profissão, os controladores adoptaram o que ficou conhecido como "plano padrão": limitaram-se a monitorar apenas o número de aviões estabelecido pelo regulamento (cerca de menos seis aviões por cada profissional) e os restantes ficaram às voltas no ar ou paralisados no solo.
Assim se gerou a balbúrdia nos aeroportos brasileiros, com centenas de voos cancelados e muitas centenas de voos atrasados, alguns com mais de 18 horas de retardamento. Milhares de passageiros a reclamar em vão, sem qualquer apoio das entidades públicas ou privadas envolvidas, aglomerados nas salas de espera e de embarque dos aeroportos, dormindo nos bancos e no chão, misturados velhos com crianças de colo, mulheres grávidas com adolescentes, num ajuntamento indignado, impotente e infeliz.
O fim-de-semana prolongado em que tudo começou contribuiu para aumentar a confusão e a ira dos passageiros: cirurgias adiadas após uma espera de muitos meses ou anos, negócios perdidos depois de tão cuidadosamente planeados, férias há tanto desejadas e acabadas sem terem começado, marcações hoteleiras e circuitos turísticos cancelados.
Figuras da Aeronáutica são chamadas a dar público testemunho de que tudo está em vias de normalização, mas vão deixando cair algumas dicas de que há graves falhas no sistema.
O presidente da República, chefe do Governo, recém-reeleito Luís Inácio Lula da Silva, dá sinais de irritação. São feitas substituições na hierarquia da Força Aérea.
O ministro da Defesa, de quem dependem os controladores, declara a torto e a direito que tudo está bem, quando tudo vai de mal a pior. Perante perguntas incómodas dos jornalistas, diz não ter dados sobre o assunto. De tanto negar a s evidências, acaba por tornar-se ridículo e dar uma acabada imagem de incompetência.
O Governo vê-se obrigado a fazer promessas aos controladores e cedências em áreas delicadas, como a do regime militar que passaria a civil. Efectuam-se, à pressa, transferências de pessoal, convocam-se reservistas, e procede-se a um recrutamento que já deveria ter sido feito há muito. São desbloqueadas verbas cortadas em anos anteriores.
E quando tudo parecia encaminhar-se para a normalização, nova crise explode no mês do Natal.
Mais uma vez os aeroportos são cenários de desordem, confusão e revolta.
Centenas de voos atrasados, dezenas deles cancelados.
Salas de espera e de embarque lotadas, gente espalhada pelo chão.
As bagagens partem e os passageiros ficam.
Não há qualquer apoio aos viajantes, nem de alimentação, nem de alojamento.
As informações, quando chegam, são contraditórias.
"O aeroporto de Congonhas [o principal de São Paulo] está operando normalmente", diz o alti-falante da sala de embarque. E, logo a seguir, outra voz pelo mesmo alti-falante: "Não há previsão de horário para nenhum voo da TAM" [uma das operadoras aéreas brasileiras].
Uma menina de dez anos demorou 30 horas para fazer a viagem de Brasília para Belém (cerca de 2000 km). Dormiu na sala de embarque do aeroporto, embora a companhia aérea informasse a família de que a alojara num hotel. De facto, providenciara-lhe alojamento, mas não num hotel e sim num motel, local onde, no Brasil, se encontram os casais casuais que pretendem estada de curtíssima duração.
A norte do Rio de Janeiro, numa zona que é considerada a de maior número de pousos e descolagens de helicópteros "acidentes só não acontecem por acaso, porque há mais de um mês os controladores trabalham sem radares" – denúncia de um piloto com mais de 18 anos de profissão.
Por todo o Brasil aviões pousam sem que os controladores se apercebam, por falha nas comunicações e por cegueira temporária dos radares.
Apurou-se que o jacto Legacy que abalroou o Boeing tentou sem êxito, por 19 vezes, o contacto com a torre de controlo.
Numa entrevista às televisões, o chefe da Aeronáutica declarou, sem margem para dúvidas, que o material de comunicações, apesar de ter apenas 6 anos, estava desgastado. Pouco depois, ao ser confrontado com a afirmação, negou aos jornalistas que dissera tal. Tanto a afirmação quanto a negação passaram nos écrans.
O Tribunal de Contas da União (TCU) apresentou um relatório preliminar em que atribui o colapso aéreo à falta de investimento do Governo em pessoal, equipamento e manutenção. Nos últimos três anos não foram desbloqueados 520 milhões de reais (cerca de 192,5 milhões de euros) que constavam do Orçamento do estado para a segurança aérea.
A última crise foi desencadeada por uma avaria no sistema de comunicações. O técnico de manutenção da Aeronáutica que o "reparou" colocou uma placa de forma invertida, o que agravou a situação e dilatou o tempo de diagnóstico e reparação.
Uma comissão de deputados fala em sabotagem na actuação dos controladores de voo.
Agências públicas de direito dos consumidores aconselham os passageiros a exigirem compensações das transportadoras aéreas.
As operadoras recusam-se a pagar indemnizações, atribuindo todas as responsabilidades da crise ao Governo.
O ministro da Defesa, que nunca sabe de nada, tal como o seu chefe, o presidente Lula, em entrevista concedida no passado dia 11, recomendou "reza e muita fé para que o colapso não se repita no fim do ano".
O mesmo ministro, no meio da confusão, aproveitou para pedir aumento de salário para os controladores... e para si próprio...
Inacreditável? Nem por isso: como quase tudo no Brasil, também a aviação anda nas nuvens.